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Esporte II
A caminho


Quem não se emocionou com aquela pequena ginasta, durante a Copa do Mundo de Ginástica Artística, realizada em abril deste ano, no Rio de Janeiro, que rodopiou no ar e no solo ao som de Brasileirinho, do compositor Waldir Azevedo? Daiane dos Santos se transformou na mais nova sensação do esporte nacional. Antes da etapa do Rio, em que levou o título na prova de solo, ela já havia conquistado o ouro no Mundial Pré-Olímpico de Anaheim, nos Estados Unidos, em 2003, e nas etapas da Copa do Mundo de Ginástica Artística que aconteceram em Stuttgart (2003) e Cottbus (2004), ambas na Alemanha, e em Lyon, na França (2004). É nela que o Brasil inteiro estará de olho nos Jogos Olímpicos de Atenas, em agosto. Afinal, pela primeira vez, o País tem chances reais de conseguir uma medalha em ginástica olímpica. A pressão é grande e Daiane sabe disso, ainda que pareça não se importar. “Nunca prometi nenhuma medalha”, afirma categórica. O tipo mignon - 1,45 m de altura e 41 quilos - a faz parecer mais nova ainda do que seus poucos 21 anos, completados em fevereiro. Apesar da aparência adolescente, essa gaúcha de Porto Alegre, filha de uma cozinheira e de um funcionário público, já tem conquistas que vão ficar para sempre na história da ginástica. Ela foi a primeira ginasta do mundo que realizou o duplo twist estendido, movimento em que ela salta de costas e por duas vezes dá voltas no ar sem colocar pés ou mãos no chão, o que configura o salto mortal. Chama-se “estendido” porque o corpo fica reto no ar e é exatamente aí que reside a maior dificuldade desse salto. No Mundial de Ginástica Artística de 2003, nos Estados Unidos, Daiane consagrou-se como um fenômeno único desse esporte ao executar o duplo twist carpado, uma manobra altamente difícil, porém mais “simples”. Em vez de ficar reto, o corpo se dobra durante o duplo mortal, com o tórax num ângulo de 45 graus em relação às pernas, o que facilita o giro. O movimento recebeu o nome de Dos Santos, em homenagem a ela. “A chance de Daiane conseguir uma medalha olímpica inédita para o Brasil é considerável”, avalia o ucraniano Oleg Ostapenko, técnico da Seleção Brasileira de Ginástica Olímpica Feminina, por quem a ginasta tem um grande carinho. “Já estou tão acostumada com a maneira de trabalhar dele que não sei se iria me adaptar a outro treinador”, confessa ela. Quanto a isso, nossa habilidosa ginasta não terá de se preocupar. “Acabei de renovar contrato com o COB - Comitê Olímpico Brasileiro e a Confederação Brasileira de Ginástica, até 2008”, esclarece o técnico. Isso significa que ainda veremos Daiane voar por alguns anos. “Pretendo participar dos Jogos Panamericanos de 2007, no Rio de Janeiro, e, se tudo ser certo, dos Jogos Olímpicos de 2008, em Pequim”, diz ela, ciente de que, até lá, aos 25, estará acima da idade média das atletas dessa modalidade. Dá para imaginar que a rotina de quem sonha com o ouro olímpico esteja mais para a disciplina espartana - Esparta era uma das cidades-estado da Grécia antiga, conhecida pelo duro treinamento militar de seus habitantes - do que para a vida efervescente de Atenas, a mais poderosa cidade-estado do antigo Império Grego. Vivendo em Curitiba, no alojamento do Centro Brasileiro de Ginástica, a atleta treina quase oito horas por dia. Diversão, só aos finais de semana. Quando a segunda-feira chega, começa tudo de novo. Daiane retoma a disciplina para cavar um lugar no Olimpo dos que alcançam façanhas com o próprio corpo, como faziam os próprios heróis gregos. A nós, simples mortais, resta torcer. Em depoimento exclusivo à Revista E, a ginasta falou de sonhos, medalhas e do futuro. A seguir trechos e...Boa sorte, Daiane.


Sonho de infância
“Quando eu era criança, gostava de futebol e pensava que ao crescer seria uma professora de educação física. Mas desde 1996, quando comecei a treinar ginástica olímpica em tempo integral, percebi que meu rumo seria outro. Foi paixão à primeira vista. Tanto que, no início dos treinamentos, todo mundo insistia para que eu praticasse atletismo. Como a paixão já estava consumada, teimei e continuei na ginástica olímpica. Hoje não consigo me imaginar fazendo outra coisa.”


Admiração incondicional
“Geralmente todas as ginastas da minha época admiram a Nadia (Comaneci, famosa ginasta romena que teve seu auge no final dos anos de 1970), porque ela teve seus méritos, foi a primeira a ganhar nota 10 e era uma ótima ginasta. Mas hoje as regras são outras, e não podemos comparar, por exemplo, a Nadia comigo ou com a Daniele Hypólito. As regras evoluíram muito. O que antes era muito difícil hoje é mais fácil. Fora da ginástica olímpica, meu grande ídolo é Ayrton Senna.”


Rotina exaustiva

“Treino de segunda a sexta. O dia já começa puxado, com o treino da manhã, que vai das oito ao meio-dia. Até às quatro da tarde almoço e faço duas horas de fisioterapia. Depois treino por mais duas horas. É um dia-a-dia duro, passei boa parte da minha vida me dedicando à ginástica olímpica, mas olhando para trás não sinto falta de nada de que tenha aberto mão para dedicar-me ao esporte. Gosto da minha vida como ela é.”



O risco não assusta
“Confesso que de tanto repetir os movimentos já não sinto mais medo. Já me acostumei com os elementos da modalidade, como as barras, e eles também já não me assustam. Mesmo quando estou a quase três metros de altura do chão, não penso em nada. Quando termino a série, fico feliz. Sou tranqüila mesmo. Até na véspera de uma prova importante, consigo dormir sem nenhum problema. Às vezes alguns sonhos me assustam mais que as próprias provas. Como os que eu tenho com a imprensa escondida dentro do meu quarto! (risos).”


A luta pelo movimento perfeito
“As pessoas acham que um elemento desses é criado da noite para o dia. Na verdade, vários meses são necessários, para chegar até a perfeição. O Oleg (Ostapenko, técnico da Seleção Brasileira de Ginástica Olímpica Feminina) viu que eu poderia fazer o duplo twist estendido, que é com as pernas estendidas e mais difícil que o duplo twist carpado, daí fui tentando fazer na cama elástica até conseguir, demorou uns seis meses. Treinei somente duas vezes, e daí apresentei na Copa do Mundo da Alemanha, em novembro de 2003, e ganhei mais um ouro no solo.”


Não é fácil estar no auge
“A fama tem seu lado bom e ruim, como tudo. Tive que abrir mão da convivência com a família e meus amigos lá de Porto Alegre para conseguir essa posição no esporte mundial. Gostaria de ter mais tempo para me divertir, mas não me arrependo, porque mesmo treinando muito temos nossas horas de folga. Como qualquer outra garota da minha idade, também vou ao cinema, ao shopping, adoro dançar, mas só no final de semana.”


O fantasma da dor
“Com o tempo você aprende a conviver com a dor, com as lesões. Elas deixam de ser tão dramáticas, deixam de assustar. Tem gente que suporta mais, outras pessoas menos - acho que suporto mais as dores, já me acostumei a lidar com elas, e isso acontece com todo esporte de alto rendimento.”


União do grupo e planos para o futuro
“Faço parte de uma equipe permanente de ginástica brasileira. Sem essa equipe, com certeza, eu não teria chegado aonde cheguei. Somos uma equipe unida, amigas, uma sabe da vida da outra, sabemos quando uma está com problemas, tentamos ajudar, quando uma está cansada incentivamos para não desistir, e nossa convivência é muito boa. Graças à Confederação Brasileira de Ginástica, hoje estou na seleção e consegui esses resultados. Quando parar, quero ser técnica ou quem sabe dar aulas de educação física para crianças carentes ou especiais.”


Promessas
“Muitos esperam que eu consiga trazer uma medalha olímpica de Atenas para o Brasil. Faço o possível para essas expectativas não me angustiarem. Não tenho essas preocupações, pois, afinal de contas, nunca prometi essa medalha a ninguém. São os outros que estão falando, devido ao meu desempenho no Mundial e nas etapas da Copa do Mundo.”