por Priscila Ferreira Perazzo
A professora e pesquisadora Priscila Ferreira Perazzo, autora do livro O Perigo Alemão e a Repressão Policial no Estado Novo (Arquivo do Estado de São Paulo, 1999), dá continuidade à série que discute os 450 anos de São Paulo e revela, em conversa com o Conselho Editorial da Revista E, que durante a Segunda Guerra Mundial o Brasil era vigiado por espiões alemães e que algumas cidades do interior do País sediaram campos de concentração para “súditos do Eixo”. A seguir os principais trechos da conversa.
Campos de concentração no Brasil “As pessoas chegavam às delegacias da polícia política por meio de denúncias, eram fichadas e passavam por um processo de qualificação. Algumas permaneciam alguns dias e outras dormiam apenas uma noite. Havia casos de alemães que eram presos e levados para o que eu particularmente chamo de campos de concentração. Locais onde os detentos sofriam algumas restrições, ficando ali de meados de 1942 até 1945, inclusive por um período após o final da guerra. Segundo os meus levantamentos, em São Paulo esses locais funcionavam na Estação Experimental de Produção Animal de Pindamonhangaba, um estabelecimento zootécnico, e na Escola de Agricultura Paula Lima de Guaratinguetá. Ambos eram ligados à Secretaria de Agricultura e foram cedidos por ela para a Secretaria Estadual de Segurança, para a organização desses presídios. As pessoas presas nesses espaços foram recolhidas de um único navio, chamado Windhuk, que aportou em Santos em 1939 e lá ficou por três anos, com a tripulação trabalhando e recebendo seus honorários. Em 1942, esses tripulantes foram levados para esses dois estabelecimentos. A existência desse navio e dos campos de concentração em São Paulo foi muito divulgada pela imprensa em 1995, por ocasião dos 50 anos do final da Segunda Guerra. Até hoje várias pessoas que me procuram para falar sobre campos de concentração o fazem motivadas pelo que ocorria em Guaratinguetá e Pindamonhangaba. Mas com o meu doutorado, fiz outro levantamento e descobri inúmeros estabelecimentos da mesma natureza.”
Espionagem e nacionalismo “A organização dos espiões alemães no Brasil - que trabalhavam para o serviço de inteligência alemão - em nada se parece com a que a gente vê nos filmes de TV sobre a guerra fria, nos quais as pessoas são treinadas pelas agências de inteligência antes de começarem a agir. O que aconteceu no período da guerra - e isso era uma coisa rotineira - não foi apenas uma espionagem nazista, mas alemães, descendentes, e até alguns poucos brasileiros envolvendo-se com essa atividade para passar informações. Uma pergunta muito recorrente é se eles eram espiões de fato. No livro O Perigo Alemão e a Repressão Policial no Estado Novo isso se mostra em duas dimensões: uma que eu chamo de espionagem individual e amadora e outra de espionagem organizada. A segunda era formada por uma vasta rede que se estendeu por todo o Brasil e era relacionada ao serviço de inteligência alemão. No entanto, havia também a espionagem individual, amadora, digamos assim, feita por imigrantes alemães. Havia um sentimento patriótico e nacionalista muito forte por parte dos imigrantes alemães e italianos naquele momento. Até a década de 1930, essas comunidades estrangeiras se mantinham efetivamente fechadas. Não só no caso da Alemanha, mas também entre os japoneses. As suas condições culturais, políticas e de vida faziam parte do jogo. É interessante perceber também - e hoje há vários estudos nesse sentido - a ligação que os imigrantes tinham com Hitler e Mussolini. Ligação que nem passava tanto pela questão política, mas por esse sentimento nacionalista. Não era uma filiação ideológica ou política, mas sim uma opção mais sentimental, por assim dizer. Na verdade, a pesquisa histórica ainda está tentando dimensionar esse componente nacionalista na relação entre esses imigrantes alemães e o Partido Nazista, mas o que já se sabe é que era algo muito forte. As pessoas interessadas em integrar esse trabalho de espionagem para o serviço alemão procuravam a embaixada ou os consulados, como era o caso em São Paulo, para levar as informações que detinham. Às vezes, entravam para o trabalho organizado - há casos de imigrantes que já estavam no Brasil antes da guerra e exemplos de famílias inteiras. Tudo isso antes de 1941. Por vezes, essas pessoas passavam algum tempo na Alemanha fazendo curso de escrita invisível, operação de rádio, entre outras coisas. Cursos feitos lá, mas tendo como ponto de partida o Brasil.”
Polêmica do termo “O que costuma gerar muitas perguntas em relação a esses campos de concentração é justamente o uso da expressão, alvo das maiores críticas e das maiores dúvidas. Exatamente por não existir material e quase ninguém falando sobre esse assunto, minha pesquisa teve que ser feita não com o apoio da bibliografia, mas como pesquisa mesmo. Fiz um levantamento em praticamente todo o Brasil, do Pará ao Rio Grande do Sul, e em meio à vasta documentação consultada eram duas as expressões absolutamente recorrentes: campos de concentração e prisioneiros de guerra. O conceito de prisioneiro de guerra refere-se a membros do exército presos pelo inimigo. Mas durante a Segunda Guerra essa idéia se estendeu também aos civis que passaram a estar protegidos pela Convenção de Genebra de 1929, tanto no Brasil quanto no resto do mundo. A idéia de campo de concentração alude ao local propriamente dito e foi utilizada pela Alemanha nazista até seu extremo, eles chegaram ao auge desse processo. No Brasil, nos Estados Unidos, na África ou no Japão, esses locais não eram como os campos de concentração nazistas. Aqui muitos presídios foram adaptados para serem campos de concentração, internando alemães, italianos e japoneses. A idéia original era eles serem locais abertos, mas vigiados, concepção que vem desde o final do século 19, quando esse procedimento foi adotado pela primeira vez, durante a Guerra dos Boyers na África do Sul. Os ingleses criaram os tais campos e internaram os ‘boyers’, os perdedores da guerra. É o primeiro vestígio que se tem notícia do uso moderno desse tipo de prisão. Houve na história outros momentos em que se aplicou a prática do internamento, como os hospícios dos séculos 18 e 19 e os leprosários de épocas ainda mais antigas. Usou-se muito isso no Brasil imperial, para degredar pessoas, e também na República, período em que o conceito é largamente difundido. Essa versão moderna do século 20 destinava-se a civis indesejáveis, por qualquer motivo ou situação, em função de um determinado contexto, e não incluía o extermínio de forma sistematizada e premeditada. Em nenhuma época da história se pôde dizer que esse ‘método’ se justificava, mas nem sempre os confinados eram torturados ou exterminados. Na Primeira Guerra há também experiências nesse sentido. Há reportagens de jornais que mostram que o presídio da Ilha das Flores, local onde os imigrantes recém-chegados ficavam de quarentena, foi adaptado para campo de concentração. Durante a Segunda Guerra os japoneses retirados da costa do Pacífico nos Estados Unidos foram levados para locais com essa denominação. Fui descobrindo que isso era uma prática recorrente no mundo da primeira metade do século 20. Governos usaram esse termo, a imprensa usou esse termo, as pessoas usavam esse termo, os prisioneiros... O que aconteceu na Alemanha foi que Hitler se apossou desse procedimento, que era prática comum no seu tempo, e agregou a ele todo o seu aparato exterminador. O que é preciso ficar claro é que a prática de internamento em campos de concentração era comum na primeira metade do século 20, cada qual a sua maneira. A experiência nazista foi uma das maneiras de levar essa prática às últimas conseqüências. Desde então, o mundo passou a não admitir o internamento em campos de concentração. Na minha opinião, a experiência nazista é abominável, e por isso nenhuma forma de campo de concentração pode ser aceita. Nesse sentido, não podemos nos eximir de utilizar essa expressão nas suas diferentes experiências.”
A pesquisadora Priscila Ferreira Perazzo esteve presente na reunião do Conselho Editorial da Revista E, que traz na seção Encontros uma série sobre São Paulo e seus 450 anos
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