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Agricultura responsável

Avanços científicos na produção de alimentos ocupam cada vez mais espaço na mídia, e a polêmica se instala quando o assunto é transgênicos. Porém, a manipulação do DNA de plantas para torná-las mais resistentes a pragas - como acontece com a soja - é apenas um dado das experiências que vêm revolucionando a agricultura. A biotecnologia também está presente em lavouras que, em vez de agredir a biodiversidade, ajudam na sua preservação - caso do cacau cultivado na Mata Atlântica. Apesar da importância da pesquisa na área e dos interesses econômicos envolvidos, a população ainda é carente de informação sobre prós e contras do uso dessa tecnologia. É esse o tema abordado nos textos a seguir pelo diretor da Universidade Livre da Mata Atlântica, Eduardo Athayde, e pelo professor do Departamento de Alimentos e Nutrição Experimental da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP, Franco Maria Lajolo



A polêmica ajuda a esclarecer - por Franco Maria Lajolo
A agricultura sempre passou por desenvolvimentos. Os alimentos que nós consumimos nem sempre foram, há cem ou duzentos anos, como são hoje. Eles foram evoluindo, o homem foi modificando os vegetais para que pudessem ser usados como alimentos, tornando-os maiores, mais duráveis, resistentes e nutritivos. E isso se deu graças às técnicas convencionais de cruzamento entre plantas de uma mesma espécie - transferência de pólen de uma para outra, por exemplo. Dessa forma, selecionam-se os melhores representantes, cada um por meio de um processo de seleção. Dentro disso, a ciência foi desenvolvendo técnicas cada vez mais sofisticadas, mas ainda dentro desse cruzamento de elementos da mesma espécie, por não ser possível cruzar elementos de espécies ou gêneros diferentes. Mas o que trouxe realmente a engenharia genética, ou a chamada tecnologia do DNA recombinante? Trouxe a possibilidade de tirar uma característica de uma planta distante, que não se cruzaria normalmente, e trazer essa característica para uma planta que interessa. Com o tempo, tornou-se possível até realizar essas experiências entre gêneros diferentes ou mesmo entre bactérias e plantas. Como exemplo, posso citar o milho resistente ao caruncho, praga que causava perdas importantes à safra. Esse gene foi extraído de uma bactéria e introduzido no milho, que passou a produzir uma proteína que o defende contra esse caruncho - na verdade, contra a lagarta que se transforma no caruncho. Esse milho é muito mais resistente e aumenta o rendimento agrícola, ou seja, uma vantagem nítida. A técnica usada nesse caso foi bastante simples: extraiu-se um gene de uma outra espécie, introduzindo-o no milho. A vantagem nesse caso foi o fato de a produção, além de ficar mais resistente a esse inseto, passar a exigir menor uso de pesticidas, que, por sua vez, não são seletivos, matam em geral todos os insetos. Em suma, esse procedimento aumentou o rendimento desse milho, tornou-o mais resistente a insetos e ainda resultou na diminuição do uso de pesticidas convencionais, uma vantagem para todo o meio ambiente. Outro caso é o do algodão. A versão transgênica reduziu também para quase a metade o uso de agrotóxicos nas plantações da China. Contudo, em ambos os exemplos, trata-se de produtos que apresentaram benefícios principalmente no âmbito da produção agrícola e do meio ambiente. O benefício para o consumidor ainda não é muito evidente - afinal, a maioria das pessoas não nota aumento de rendimento -, isso interessa, de imediato, ao produtor. Por outro lado, há os benefícios para o meio ambiente, esses procedimentos não são tão agressivos como os pesticidas químicos. Em alguns casos, como o do milho, viu-se também que há uma redução de nicotoxinas. Em uma experiência feita aqui no Brasil, o milho transgênico apresentou menor presença dessas nicotoxinas, o que seria uma outra vantagem indireta. Há um grande potencial nessa tecnologia, exemplos concretos que podem ser vistos na produção do milho, do algodão e ainda da soja. Porém, não é possível ignorar que há um debate muito grande em torno desse assunto, uma polêmica que se estabeleceu. A nossa população não é informada acerca dos reais passos da ciência, de como ela trabalha e dos métodos científicos utilizados. Faltam informações sobre os transgênicos, sobre como eles são produzidos e avaliados, e mesmo sobre todos os seus prós e contras - sim, porque há, como em tudo, prós e contras. Há radicalismo por parte de certos grupos, que trabalham a questão de um ponto de vista mais filosófico. Novamente, o que parece faltar é um maior esclarecimento da população. A própria imprensa reverbera opiniões de todo tipo, algumas fundamentadas, outras nem tanto. No que concerne aos possíveis riscos à saúde, causados pelo consumo desses alimentos, é preciso lembrar que qualquer alimento apresenta riscos. O sujeito pode comer uma empadinha em um bar e ser acometido por uma disenteria porque essa empadinha pode estar contaminada. Há, inclusive, alimentos que naturalmente apresentam substâncias tóxicas, como o feijão, por exemplo. Consumir feijão cru pode causar uma intoxicação por uma toxina que ele tem chamada lectina. Ou seja, todos os produtos, mesmo os alimentos mais naturais, apresentam algum tipo de risco, que nós eliminamos processando, cozinhando esses alimentos, em muitos dos casos. Os riscos dos transgênicos são iguais aos riscos dos alimentos convencionais. Não há uma nova categoria de riscos. O gene introduzido no transgênico não apresenta, em si, nenhuma toxina - mesmo porque nós comemos genes todos os dias. Tudo o que se come é vivo - os animais têm genes -, mas nosso organismo digere, trata esses genes, eliminando-os, metabolizando-os. O simples fato de o alimento conter um gene, um pedaço de DNA introduzido de maneira artificial, não altera em nada a sua composição do ponto de vista da segurança para a saúde. O que ocorre é que esse gene introduzido vai produzir uma proteína, que igualmente não conterá nenhuma toxidade. Além do que essa proteína é produzida em quantidades muito pequenas; mesmo que fosse tóxica, esse efeito seria insignificante. Mas, claro, tudo isso é avaliado no exercício dessas experiências. É sobre essas bases científicas que toda essa tecnologia é produzida, e os ensaios feitos até hoje nunca mostraram nenhum risco. Mas qualquer inovação tecnológica sempre traz dúvidas, simplesmente porque o novo sempre traz dúvidas e insegurança. E isso acontece em qualquer caso. Quando o leite foi pasteurizado, as pessoas não queriam consumi-lo porque achavam que o processo destruía o leite. Da mesma forma, quando se colocou flúor na água de beber para tratar dos dentes, as pessoas achavam que isso iria intoxicar a água. Osvaldo Cruz quase foi crucificado no Rio de Janeiro porque queria vacinar a população. Sim, sem mencionar a irradiação de alimentos que, embora seja uma tecnologia benéfica, ficou parada por cinqüenta anos porque se associava essa radiação à radiação da bomba atômica. Esses exemplos mostram que há noções provenientes da cultura e do ideário da população que não se pode dizer que estão erradas, mas acabam criando um movimento de resistência. Daí a necessidade de esclarecer essas populações sobre os aspectos científicos da questão. Afinal, diante das dúvidas, as pessoas sempre se voltam para as instituições, sejam elas o governo, a imprensa ou as universidades. No caso do Brasil, o próprio governo não deixou clara essa questão. A população quer respostas do Ministério da Saúde. Porém, ocorre que o governo ainda não acabou de regulamentar a questão, existe ainda polêmica dentro do próprio governo. E isso gera ainda mais insegurança. É preciso que algumas dessas instituições se posicionem diante das discussões, como fez a Academia de Ciência do Brasil, que já se pronunciou dizendo que os transgênicos não causam riscos à saúde. Isso é importante para que a população tenha referenciais de credibilidade: a academia, o governo ou mesmo a própria imprensa. E é interessante ver como a população, quando é informada, muda de opinião. No entanto, há um lado positivo em toda essa polêmica: ela ajuda a esclarecer. Se, por um lado, ela levanta medos, por outro, ela força os organismos de saúde a estabelecerem critérios cada vez mais rigorosos para avaliação. Desde o surgimento dos transgênicos até hoje, os protocolos e as exigências de avaliação foram ficando cada vez mais rigorosos. Hoje existem protocolos internacionais da Organização Mundial da Saúde que exigem desde análises químicas e biológicas até avaliação de alergias, ou seja, uma descrição completa do gene utilizado, das proteínas produzidas e de todo o restante do processo. Procedimentos avaliadores que vão além até das análises feitas nos alimentos convencionais. Os transgênicos não são seguros ou inseguros em geral, cada um é cada um. O milho e a soja, por exemplo, já estão aí, e são seguros. Um produto transgênico que surgir amanhã não é seguro por definição, ele vai ter que ser avaliado segundo esses protocolos, e aí poderá se mostrar seguro ou não.

Franco Maria Lajolo é professor titular do Departamento de Alimentos e Nutrição Experimental da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP e autor de Transgênicos, bases científicas da sua segurança (SBAN - Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição), escrito em parceria com a professora Marília Regina Nutti, da Unicamp


O chocolate da Mata Atlântica - por Eduardo Athayde

O Brasil produz cerca de 5% do cacau do mundo. Na região cacaueira da Mata Atlântica está a área mais rica de todo o bioma, chamada hot spot (áreas de maiores concentrações de biodiversidade do planeta em alto risco de extinção). Quanto vale, como laboratório, para as indústrias da biotecnologia e farmacêutica? Como políticas públicas podem atuar neste cenário? Governos estão investindo em programas de incentivo à rotulagem ambiental, levando o mercado consumidor a privilegiar os produtos ecorrotulados. O governo alemão lançou em 1977 o programa de rotulagem ambiental chamado de Blue Engel, para estimular a ecoeficiência nas empresas. Em 1988, o Canadá lançou o Environmental Choice, logo seguido pelo Japão, com o Ecomark; pela Noruega, Suécia e Filândia, com o Nordic Swan; e pelos Estados Unidos, com o Green Seal. Hoje, mais de duas dezenas de países conduzem programas de rotulagem ambiental, formando o GEN-Global Ecolabelling Network (Rede de Ecorrotulagem Global). Reconhecendo a importância da ecoeficiência para a geração de empregos e riquezas, o governo brasileiro pode promover dentro do seu programa o Chocolate da Mata Atlântica (Atlantic Forest Chocolate), ecorrotulado, emitindo sinais da sua vocação como ecopólo, voltado à biotecnologia e à biodiversidade. O que ainda teimamos em chamar de floresta, os países industrializados, com a ampliação da percepção da realidade impulsionada pela ciência e tecnologia, chamam de bancos de germoplasma. Quando recebemos as bem-vindas “doações” externas para criação dos corredores ecológicos, precisamos estar atentos em como transformar esta preservação - uma imperiosa necessidade - em negócios. Junto com as doações chegam os interesses da indústria farmacêutica e de biotecnologia, que juntas movimentam cerca de 800 bilhões de dólares/ano, para pesquisar as áreas que querem preservar. Os nossos ecossistemas são ativos ambientais, oportunidades de negócios únicos no planeta. Ainda estamos despidos da visão e de políticas públicas voltadas para preservação com geração de econegócios. O chocolate é um produto carismático que movimenta globalmente 60 bilhões de dólares/ano. O cacau produz, entre várias substâncias benéficas ao bem-estar e à saúde humana, o antioxidante flavonoide, que ajuda na desobstrução do sistema circulatório, diz o professor Kris-Etherton, da Universidade da Pennsylvania, estudioso dos benefícios das propriedades do cacau. O Chocolate da Mata Atlântica é um gostoso convite e uma porta de entrada para outros negócios sustentáveis, especialmente o reflorestamento. As áreas de cacau plantadas em baixo da mata raleada, chamadas de cabruca, são importantes para a formação dos corredores ecológicos, reintegradores dos ecossistemas florestais. O mundo está investindo cada vez mais em conhecimento: educação, ciência e tecnologia. Os Estados Unidos ganham mais com a produção de conhecimento do que nas outras áreas da sua economia; 61% do PIB americano é formado de ativos intangíveis, como comércio eletrônico, direitos autorais, marcas, tecnologias e sistemas de gestão. No início da década de 1980, essa participação era de 30%. A participação de bens intangíveis na economia brasileira é cerca de 8%. Qual o conhecimento que o país tem sobre o valor da sua biodiversidade? A adoção de políticas públicas voltadas à preservação, à biotecnologia e ao reflorestamento pode atrair os vultosos capitais internacionais interessados nos negócios ecoeficientes e estimular investimentos privados. Num país com as desigualdades sociais que o Brasil tem, a única forma de preservar é através da econologia (visão sócio-econômica-ecológica integrada). Econegócios preservam gerando ocupação e renda. Enquanto governos de todo mundo impulsionam suas instituições geradoras de conhecimento, a instituição de pesquisa do cacau - Ceplac, rica em valores profissionais e com valioso acervo de informações - agoniza, escanteada pelo Ministério da Agricultura. A adoção de novos cenários pode ajudar no seu soerguimento. Além de ser um centro de excelência na produção de conhecimento sobre o cacau, pode abraçar o ecorrótulo do chocolate e de outros produtos agroflorestais, envolver-se na biotecnologia, na preservação e no reflorestamento das matas - hospedeiras do cacau -, argüindo para si o direito de usar o atrativo nome de Universidade do Chocolate. O cacau é como a uva para o vinho, pode atender ao sabor popular e ao sofisticado. “Chocolate não é comida, é prazer”, diz Alessio, chocolatier italiano dono de grande clientela de chocolates finos, produzidos com cacau do Equador e da Venezuela. Enquanto empresários estrangeiros transformam o cacau em lucrativos negócios alternativos além-mar, brasileiros desapercebidos deixam passar os mercados alternativos e o potencial da eco-onda que varre o mundo, consumindo produtos ecorrotulados. O marketing do futuro está mais preocupado em melhorar o bem-estar socioambiental do que simplesmente satisfazer desejos dos consumidores. O cacau produzido nas matas, se ecorrotulado com inovações biotecnológicas, poderá ter um valor adicional pela preservação dos ecossistemas. Associações locais estão liderando iniciativas visando à retomada do desenvolvimento sustentável das áreas de cacau, com preservação da biodiversidade. São embriões de econegócios que começam a nortear a gente do hot spot do chocolate, um momento comparável à metáfora da crisálida, em que a lagarta não mais existe e a borboleta ainda não nasceu.

Eduardo Athayde é diretor da Universidade Livre da Mata Atlântica (UMA) e do Worldwatch Institute (WWI) no Brasil (www.wwiuma.org.br)