Postado em
Frankenstein no laboratório mental
A psicologia da agressão e da violência
Samuel Pfromm Netto é psicólogo e pedagogo, professor titular de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. É autor de mais de uma centena de pesquisas, estudos teóricos e conferências publicadas em revistas especializadas do país e do exterior, e dirige presentemente a revista "Estudos de Psicologia". Tem 25 livros publicados nas áreas de psicologia, comunicação de massa, mídia educativa, tecnologia do ensino e pedagogia. A palestra que publicamos nestas páginas foi apresentada em 8 de maio deste ano, na reunião do Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo.
"Há qualquer coisa fermentando na minha alma que não consigo compreender." Esta frase sombria figura na introdução do livro Frankenstein e serve de pórtico para as considerações que faremos a propósito de psicologia da agressão e da violência. Poderíamos começar igualmente com outras expressões da autora desse clássico da tradição da novela gótica, tiradas de suas páginas finais: "Eu era escravo e não o senhor de um impulso que detestava e entretanto não podia desobedecer... O mal dali por diante tornou-se o meu bem... O crime degradou-me, colocando-me abaixo do mais mesquinho dos animais... Sou uma aberração que deve ser desprezada, atirada a pontapés e espezinhada".
Este é o ano do segundo centenário de Mary Wollstonecraft Shelley, a autora de Frankenstein, que nasceu na Inglaterra a 30 de agosto de 1797. O livro Frankenstein ou O moderno Prometeu, que a esposa do poeta Shelley e amiga de lorde Byron escreveu para distrair-se durante um verão chuvoso e frio nos arredores de Genebra, está prestes a completar 180 anos, se considerarmos a data do prefácio, que é de setembro de 1817. Logo após sua publicação, em março do ano seguinte, o livro se impôs como best-seller, sucedendo-se as numerosíssimas reedições ao longo destes quase dois séculos, assim como as muitas traduções nas principais línguas cultas do mundo.
Mescla de romance gótico e de ficção científica (a autora, aliás, é uma das pioneiras da ficção científica), a estranha história de um homem artificial feito de partes de cadáveres converteu-se em 1931 numa produção cinematográfica notável, interpretada por Boris Karloff. Esta é a caracterização, mais, talvez, do que o próprio livro, que fez com que Frankenstein se tornasse conhecido do público, das platéias do mundo inteiro. A história de Frankenstein na verdade mereceu nada menos do que três dezenas de versões cinematográficas, desde o cinema mudo, no começo do século, até as refilmagens mais recentes. Frankenstein era, no entanto, não o nome do monstro, mas o de seu criador, um jovem estudioso de ciências ocultas que terminaria assassinado por sua criatura. Esse nome sinistro, entretanto, acabou por identificar popularmente o próprio monstro.
Mary Shelley descreveu o jovem criador do ogro com estas palavras, referindo-se, portanto, ao doutor Frankenstein: "Seus olhos têm geralmente uma expressão selvagem, quase de loucura, mas há momentos, quando alguém se mostra bondoso para com ele ou lhe presta o mais insignificante serviço, em que toda a sua aparência parece iluminar-se, como por obra de um raio, de benevolência e meiguice que nunca vi iguais. Mas está geralmente melancólico e desesperado, às vezes chega mesmo a ranger os dentes, como que impaciente pelo peso das desgraças que o afligem".
As alusões iniciais ao livro famoso de Mary Shelley parecem-me justificadas, nesta breve incursão num dos mais férteis territórios da psicologia científica contemporânea. Não somente nas passagens aqui pinçadas, mas em todo o seu conjunto, a obra de Mary Shelley acena para algo que se aproxima de um paradigma ou de um modelo útil para concatenar uma estranha e extraordinária massa de resultados de pesquisas psicológicas que, em sua maioria, datam da segunda metade deste século, a propósito de comportamentos violentos e agressivos, desde manifestações sutis, disfarçadas, relativamente inofensivas, até atos de extrema crueldade e brutalidade. Desde, portanto, a agressão verbal, o beliscão, o tapinha de reprimenda até o assassínio mais monstruoso.
Numa versão muitíssimo simplificada, o modelo ou, se quiserem, o paradigma que proponho se apóia nas concepções de processamento de informação na mente humana, que são de fundamental importância na psicologia de hoje. Sugere que consideremos a existência, dentro de cada um de nós, de uma espécie de "laboratório mental" sob o nosso controle um laboratório mental incumbido de processamento de informações de múltipla natureza a respeito do mundo que nos cerca, de nós mesmos, dos nossos semelhantes, dos nossos planos, impulsos, expectativas, idéias, valores, atitudes, sentimentos. Normalmente, as pessoas são capazes de exercer autocontrole sobre o seu laboratório mental. Tal como o laboratório de química que reúne grande número de apetrechos, equipamentos, recursos, substâncias, materiais para realizar análises, combinações e transformações, nosso laboratório mental se encarrega de analisar, de combinar, de transformar nossas representações mentais e envolve uma integração assaz complexa de componentes genéticos, bioquímicos e neurais - hoje, está na ordem do dia a literatura sobre neurotransmissores, que desempenham um papel fundamental nesse laboratório -, ou aspectos de ordem estritamente psicológica, como os nossos conhecimentos, nossas atitudes, nossos sentimentos, nossos valores e assim por diante. O funcionamento normal desse laboratório mental humano é assegurado pelo que os psicólogos chamam função executiva, um conjunto de processos que, de acordo com Pennington, num livro recém-saído, inclui o autocontrole a que me referi, habilidades de planejamento e organização, manutenção de uma disposição ótima, atenção seletiva e controle inibitório, auto-inibição de comportamento, para os quais as regiões pré-frontais do cérebro parecem ser especializadas.Pennington esclarece que "esses processos obviamente se estendem por múltiplos domínios de conteúdo e são igualmente importantes para algo que seja puramente cognitivo, como, por exemplo, escrever um programa para computador, ou algo muito mais social, como liderar uma reunião de um comitê" (B. F. Pennington, Diagnóstico de distúrbios de aprendizagem, São Paulo, Pioneira).
A função executiva inclui habilidades organizacionais, planejamento, comportamento orientado para o futuro, manutenção de disposição, auto-regulação, atenção seletiva, manutenção de atenção ou vigilância, inibição, até mesmo criatividade e (voltemos a insistir no termo) autocontrole.
Propõe-se que a manifestação de comportamentos violentos, notadamente nas formas mais lesivas à integridade física de outrem, seja imaginada como um descontrole da função executiva, em que há malogro de inibição ou algum outro tipo de alteração, como se subitamente um Frankenstein assumisse o comando do laboratório mental. O funcionamento deste é então perturbado momentaneamente ou reiteradamente ou ainda intermitentemente. O ato violento constitui uma ruptura de equilíbrio ou da normalidade das coisas no laboratório mental individual e resulta em dano físico numa ou em mais de uma vítima, obviamente contra a vontade dessa vítima ou dessas vítimas.
Violência aprendida
Existe hoje uma literatura científica riquíssima a propósito da psicologia da violência e da agressão, infelizmente pouco ou nada divulgada entre nós, no Brasil. Em sua quase totalidade, são textos em inglês e em outros idiomas que, com muita acuidade e profundidade, analisam as múltiplas facetas dessa temática. Boa parte dessa literatura explora as origens e o desenvolvimento do comportamento agressivo e violento em crianças e adolescentes, como o volume organizado por Ferris e Grisso, Understanding aggressive behavior in children ("Compreendendo o comportamento agressivo em crianças"), saído em 1996 e, aliás, magnificamente resenhado pela doutora Maria Helena Figueiredo Steiner no último boletim da Academia Paulista de Psicologia. Na obra são examinados os correlatos biológicos da agressão, as relações entre agressão, estresse, serotonina, impulsividade; as interações psicossociais e o comportamento agressivo; personalidade e agressão em crianças de alto risco; e um programa de intervenção junto à família, à escola e à comunidade.
Outro exemplo de literatura séria e recente, este no âmbito da juventude, e não menos importante, é um volume que a American Psychological Association publicou no ano passado com o título muito sugestivo de Reason to hope - A psychological perspective on violence and youth ("Razão para esperança - Uma perspectiva psicológica a respeito de violência e juventude"), organizado por L. D. Eron, J. H. Gentry e P. Schlegel. Convém, entre parênteses, lembrar que Eron é uma autoridade internacional, um dos nomes mais respeitáveis em pesquisas sobre mídia e violência. Ele tem meia dúzia de livros fundamentais sobre o assunto e uma grande quantidade de artigos de pesquisas que indicam uma relação causal indiscutível entre mídia e violência, entre a exposição da criança à mídia, particularmente a televisão, e comportamento violento. Esse volume de que Eron é um dos coorganizadores explora principalmente os modos pelos quais o comportamento violento se desenvolve e é aprendido, realçando os fatores sociais e culturais que atuam nesse sentido, assim como os meios graças aos quais a prevenção e o controle do comportamento violento podem ser realizados. Seus autores, aliás, estão convencidos de que "a psicologia oferece uma base científica para sermos otimistas, porque um estudo aprofundado do comportamento violento mostra que ele é predominantemente aprendido e, tendo sido aprendido, pode ser desaprendido". Ainda mais: os psicólogos constataram que é possível estabelecer condições para que as pessoas não aprendam a agir de maneira violenta logo de partida, nos primeiros anos de vida.
Dessa forma, a mensagem central do livro aqui citado é de esperança e de confiança na prevenção da violência. Podemos e devemos fazer com que haja menos agressão, menos violência no mundo. Convém acrescentar que a obra aqui mencionada originouse das atividades de uma comissão sobre violência e juventude criada em 1991 pela American Psychological Association. Essa comissão foi organizada com o fim específico de lidar com os problemas emergentes ligados ao número crescente de jovens que vêm sendo vítimas, testemunhas ou perpetradores de violência interpessoal e, ainda mais, estão vivendo sob um clima de constante ameaça de violência. As tarefas que a comissão se propôs são cinco: integrar e dar a conhecer o estado atual dos conhecimentos psicológicos sobre violência e juventude; definir problemas práticos existentes e como os conhecimentos psicológicos podem ser usados para resolver esses problemas ou intervir de modo construtivo; descrever modelos de intervenção eficazes; recomendar orientações promissoras para os poderes públicos, as pesquisas e o desenvolvimento de programas; e recomendar políticas, projetos ou programas capazes de influenciar construtivamente a pesquisa psicológica, a prática e a educação em relação aos problemas existentes.
As obras aqui lembradas são apenas duas das muitas contribuições recentes que a psicologia vem oferecendo no que respeita às origens e ao desenvolvimento de comportamentos agressivos e violentos em crianças e jovens e ao que pode e deve ser feito em matéria de prevenção e intervenção eficazes. No que respeita aos fatores etiológicos que contribuem para o desenvolvimento da violência e sua prevenção, ganha relevância, primeiro, o ponto de vista da chamada socialização evolutiva da criança e do adolescente, considerando, por exemplo, as influências do temperamento da pessoa, da família, da escola, do grupo de amigos e das características de papel que correspondem a cada sexo.
Em segundo lugar, quanto a fatores etiológicos, é lembrado o ponto de vista da socialização sociocultural, em que são considerados, por exemplo, fatores étnicos, diferentes contextos culturais e assim por diante na causação da violência, no surgimento e no desenvolvimento do comportamento agressivo.
Sabemos hoje em dia, com segurança, que há vários tipos de experiência social que aumentam o risco de uma criança ou jovem envolver-se mais e mais em comportamentos e situações violentos. Faz parte, aliás, do vocabulário contemporâneo da psicologia a expressão "criança de risco" em relação à violência. Entre esses fatores que são apontados pelos pesquisadores figura, com destaque, o malogro na realização de tarefas evolutivas apropriadas a cada fase do desenvolvimento psicológico da criança. Cada etapa do desenvolvimento humano impõe um certo conjunto de tarefas evolutivas que o indivíduo deve realizar satisfatoriamente para progredir em direção à etapa seguinte de sua vida, isso desde praticamente o nascimento até a morte. Quando a pessoa malogra na realização dessas tarefas próprias de sua idade, temos a dinamite social. Outro aspecto: relações familiares ou com amigos que deixam muito a desejar. Outro ainda: condições socioculturais desfavoráveis, e em particular quando extremamente desfavoráveis.
Um dado relatado por numerosos pesquisadores mostra que tanto os agressores como as vítimas tendem a compartilhar uma experiência social comum de forte rejeição pelos seus pares, como, por exemplo, amigos e companheiros de brinquedo, colegas, etc. na infância e na adolescência.
São igualmente abundantes os resultados de investigações que apontam para a relação entre maus-tratos e violência, vitimando a criança, e a propensão acentuada nessa criança, mais tarde, quando adolescente e quando adulta, para o comportamento violento. São também apontados os efeitos danosos da permissividade, da indulgência excessiva, da inconsistência e da negligência dos pais na criação dos filhos como componentes importantes nesse caldo de cultura que gera pessoas muito agressivas, pessoas violentas.
Outra direção significativa da literatura científica a respeito da agressão e da violência diz respeito aos avanços quanto às teorias nesse domínio. Como lembram Parke e Slaby, numa revisão que fizeram há pouco sobre tudo o que existe a respeito de teorias da agressão, numerosas teorias foram elaboradas para explicar a aquisição, a manutenção e o controle do comportamento agressivo e têm sido submetidas a testes e experimentos de pesquisas psicológicas. Antigamente, a psicanálise marcava bastante essa literatura, mas hoje em dia as contribuições mais respeitáveis e produtivas não têm nada a ver com a psicanálise. Essas contribuições mais recentes podem ser agrupadas principalmente sob duas rubricas: a da aprendizagem social e a dos modelos cognitivo-sociais. A linha mais representativa da primeira - a agressão e a violência à luz da aprendizagem social - é fornecida por um emérito autor, psicólogo contemporâneo, chamado Albert Bandura, e foi formulada inicialmente em fins da década de 50 e acrescida e aperfeiçoada nestas últimas décadas.
Ainda há pouco, em 96, Bandura lançou um novo livro em que retoma essa problemática. De acordo com Bandura (note-se como isso contrasta vivamente com a psicanálise e com outras concepções antigas sobre a agressão), o comportamento agressivo é essencialmente aprendido, quer por experiências diretas da pessoa, quer pela observação que ela faz de comportamentos agressivos exibidos por outras pessoas na vida real ou na mídia, particularmente na televisão e/ou no vídeo, ou ainda por influências que Bandura denomina "influências auto-reguladas pelo sujeito", que se auto-recompensa ou pune a si próprio em virtude de seu comportamento agressivo. Essas três fontes primárias de aprendizagem social da agressão - a aprendizagem por observação, a aprendizagem por experiência direta e a aprendizagem por influências que o próprio indivíduo auto-regula - originaram aplicações sob a forma de programas bem-sucedidos (é bom que se realce aqui) de intervenção e de tratamento, notadamente no caso de crianças e de adolescentes agressivos.
A mente do outro
Quanto ao segundo grupo de teorias mais em destaque presentemente, as teorias do tipo cognitivo-social, existe uma variedade de modelos que de modo geral realçam o papel dos fatores cognitivos na manifestação e no controle do comportamento agressivo, mas vários deles também incluem fatores emocionais como a cólera, a hostilidade e o despertar ou a ativação emocional. Um dos mais influentes modelos contemporâneos de caráter cognitivo-social a respeito de violência e agressão se apóia na formulação do processamento de informação social. De acordo com essa formulação, em cada fase do processamento mental de informações, desde o input de informação e suas representações mentais até a saída ou manifestação de comportamento, crianças e jovens agressivos (e pessoas agressivas em geral, de qualquer idade) exibem déficits cognitivos e um viés hostil na interpretação dos sinais que eles percebem, assim como dificuldades em matéria de autocontrolar-se e assumir a perspectiva de outrem, dificuldade de empatia, dificuldade de experimentar sentimentos pró-sociais de comiseração, de piedade, de empatia. Geralmente, isso vem sendo caracterizado como "teoria da mente do outro". É poder, portanto, não só conhecer a minha mente, mas imaginar o que se passa, e com correção, na mente do outro e sentir como ele sente, sofrer como ele sofre, preocupar-me como ele se preocupa, e assim por diante. Tradicionalmente, o termo "empatia" era usado para designar esse compreender simpaticamente o que está se passando na mente de outra pessoa, isso tanto do ponto de vista afetivo como do ponto de vista social. Um recente livro que, aliás, é sucesso de livraria, de Daniel Goleman, intitulado Inteligência emocional, se filia exatamente a essa linha cognitivo-social no que respeita à agressão.
Goleman realça particularmente o que ele chama de distorções perceptivas da pessoa agressiva: ela vê ofensa onde não existe ofensa e reage com exagero às provocações e ao que ela encara como ofensas ou injustiças. Além disso, Goleman acrescenta que o caminho para a violência e a criminalidade começa com crianças agressivas, difíceis de lidar nos primeiros anos de escolarização.
Outra área que teve uma expansão considerável ultimamente é a que se refere à análise dos tipos de agressão. De há muito se reconhece que palavras como "agressão" e "violência" são, na verdade, termos "guarda-chuva", que englobam uma variedade muito grande de conceitos, de problemas, de fatores causais, de condições, de manifestações comportamentais. Têm sido propostas distinções entre, de um lado, agressão hostil e, de outro, agressão instrumental, em que o componente hostilidade está pouco ou nada presente, ou ainda entre agressão emocional e agressão instrumental, ou ainda entre agressão reativa e agressão proativa, e outras distinções. Um autor emérito nessa área, Buss, propôs uma matriz de dupla entrada que combina dois tipos básicos de agressão - agressão ativa e agressão passiva -, ambos subdivididos. Essas duas vertentes são combinadas com as duas formas de agressão: agressão física e agressão verbal. Temos assim oito modalidades principais de comportamentos agressivos, para os quais Buss dá os exemplos que aparecem na tabela. São meros exemplos. Evidentemente, é imensa a lista do que poderia ser incluído em cada uma dessas divisões.
Essa combinação proposta por Buss tem, evidentemente, vantagens porque amplia consideravelmente o âmbito do que se considera agressão e violência, mas apresenta também desvantagens. Ela tem sido criticada por, talvez, ao invés de esclarecer, confundir mais as coisas, porque de certo modo aproxima e põe dentro do mesmo saco tanto formas muito sutis - que teríamos até dificuldade em reconhecer como comportamento agressivo e violento - como manifestações extremamente violentas. Uma agressão ativa física direta seria um assassínio, para se ter uma idéia da extrema gravidade a que podemos chegar nessa história.
Os psicólogos que têm explorado a natureza dos comportamentos agressivos, sua etiologia e suas modalidades reiteradamente acentuam os inconvenientes de concepções simplistas que advogam uma causa única (por exemplo, os pais são os culpados, a culpada é a injustiça social ou a culpada é a mídia), ou que adotam formas reducionistas (por exemplo, o biologismo, o geneticismo, em que tudo se explica pelo biológico ou pela genética), ou ainda que postulam pseudo-soluções que perdem de vista a multiplicidade de fatores e processos envolvidos e a complexidade dos comportamentos associados à ação desses fatores e processos.
Chegou-me às mãos recentemente um trabalho que tenta fazer uma integração entre, de um lado, a concepção do que é violência e agressão e, de outro, como isso se desenvolve no ser humano.
Em um estudo publicado em 97, Loeber e Hay propõem uma separação inicial entre o que chamam de escalada da agressão e da violência a curto prazo e a escalada a longo prazo. Na escalada rápida, a curto prazo, a violência tem geralmente um início tardio e se caracteriza por episódios temporários ou transitórios. É o caso do indivíduo adulto ou jovem que não tem uma história pregressa de comportamento agressivo ou violento e que subitamente explode, repentinamente tem um comportamento extremamente violento ou de gravidade média, mas que é temporário, episódico, e pode não voltar a se repetir. Já a escalada gradual, a longo prazo, começa às vezes até no primeiro ano de vida e se estende até a idade adulta ou ao longo de toda a vida humana. Note-se que nesse segundo modo de conceber a problemática da agressão e caracterizar tipos de comportamento agressivo, se olharmos a coluna verde da esquerda da figura, veremos na parte inferior a idade da ocorrência, precoce, nos primeiros anos de vida, e, no extremo superior, tardia, na adolescência ou idade adulta. Na coluna verde da direita temos a porcentagem de meninos que os autores encontraram envolvidos nessa escalada a longo prazo, nas pesquisas que realizaram com mais de 4 mil crianças e adolescentes. Assim, no extremo superior direito, temos poucos casos, contra muitos casos no extremo inferior. Segundo os autores, há um aumento do nível de gravidade cada vez maior quando passamos da base da figura para o seu extremo superior.
Os autores propõem uma interpretação da violência e da agressão que caminharia, nessa escalada a longo prazo, por três vias relativamente independentes, mas que pode, no caso de determinadas pessoas, representar melancolicamente uma combinação de todas essas três vias.
De qualquer maneira, dizem eles que existe uma via, representada pelo triângulo inferior, que é a via do conflito com a autoridade. Isso começa cedo, com manifestações, na criança bem pequena, de comportamentos de teimosia, e prossegue em idades um pouco mais avançadas do desenvolvimento infantil e juvenil com o desafio ao adulto e a desobediência, culminando com evitar a autoridade - crianças que apresentam episódio de vadiagem, de fuga ou ficar fora de casa até muito tarde, e assim por diante. Essa primeira via é, portanto, a via do conflito com a autoridade, que pode progredir em direção ao que está mais acima dela, cruzando-se ou combinando-se com aquelas outras duas vias que estão à esquerda e à direita. A que está à esquerda é a via aberta, e a que está à direita é a via encoberta. Se lermos a figura de baixo para cima, no triângulo maior, veremos que a via aberta começa com formas menores de agressão, do tipo intimidar uma criança ou um adolescente, aborrecer outras pessoas. Pode alcançar um nível mais sério com brigas físicas, com lutas entre gangues, etc. E pode, finalmente, atingir o auge sob a forma de comportamento altamente violento: estupro, ataque físico, brutalidade, e assim por diante. Na via encoberta, que os autores colocaram na parte da direita da figura, se lermos também de baixo para cima, veremos que as coisas começam com comportamentos menores, do tipo encoberto ou disfarçado, pouco visível, como pequenos furtos em loja, furtos de objetos de pequeno ou nenhum valor, furtos em supermercados, mentir freqüentemente, e similares. Seriam formas menores desse comportamento encoberto de tipo problemático, delinqüente, e que constituiria um primeiro momento dessa escalada da via encoberta. Num segundo nível, as coisas se agravam com o dano à propriedade: vandalismo, provocar incêndio, e atos semelhantes. E num terceiro e gravíssimo nível, as coisas podem chegar ao aparecimento do delinqüente, com a delinqüência de tipo moderado a sério, delinqüência grave, como fraude, arrombamento, roubo sério, e assim por diante. Note-se que o que caracteriza esse lado direito do triângulo superior é o caráter encoberto, escondido, da forma agressiva de se comportar. Já do lado esquerdo encontram-se formas bem manifestas, bem abertas de agressão, que culminam com expressões de violência bastante graves.
Finalmente, atenção para o triângulo inferior, que os autores apontam como um núcleo a partir do qual, nas relações da criança com adultos e com outras crianças, pode estar nascendo e crescendo alguma coisa que progredirá com maior ou menor grau de gravidade, dependendo de fatores facilitadores ou, pelo contrário, de obstaculizações ou restrições.
Slaby, Barham, Eron e Wilcox lembram que "a violência, da mesma forma que todos os outros comportamentos, se nutre, desenvolve-se e manifesta-se dentro de um amplo contexto ambiental, social e individual..." Visto que muitos fatores interagem de maneiras complexas para influenciar o comportamento violento, não existe um esforço simples ou único que possa resolver de uma vez por todas o problema da violência no mundo. "É necessário", dizem eles, "considerar um conjunto amplo e coordenado de políticas, se desejamos efetivamente reduzir a violência."
Os autores que mencionei e que publicaram, a pedido da American Psychological Association, uma obra de síntese de tudo o que se sabe sobre o assunto, com prescrições, recomendações e programas para diminuição da violência da agressão entre os seres humanos, apontam cinco itens essenciais.
Primeiro: embora a violência seja uma ameaça potencial a todos os menores, alguns grupos são mais vulneráveis do que outros. Existem menores de altíssimo risco e, diga-se de passagem, eles podem ser identificados bastante cedo, de maneira a reduzir esse risco. O risco decorre também de condições sociais e econômicas que criam circunstâncias difíceis de vida, nas quais a violência prospera. Há igualmente grupos particularmente vulneráveis, em virtude de preferências sexuais, de crenças religiosas ou de condições físicas, que são encaradas com preconceito e hostilidade.
Segundo ponto lembrado por Slaby e colaboradores: experiências infantis, nos primeiros anos de vida, desempenham um papel decisivo na aprendizagem de comportamento violento ou de comportamentos não-violentos e eficazes. As crianças têm mais possibilidades de se tornarem agressivas e se envolverem em violência mais tarde quando experimentam em si mesmas ou testemunham violência e abuso dentro da sua casa ou na sua comunidade, quando não contam com supervisão consistente e com apoio emocional dos adultos ou ainda quando recebem encorajamento ou pressões de companheiros para que sejam violentas.
Terceiro ponto: a exposição à mídia que glorifica a violência, o acesso mais ou menos fácil a armas em geral - e particularmente armas de fogo que aumentam a letalidade de envolvimentos agressivos - e a disponibilidade e o consumo de bebidas alcoólicas e outras drogas que contribuem para a freqüência de comportamentos agressivos poderão, em separado ou em conjunto, ajudar a perpetuar a violência entre os menores.
Quarto ponto: intervenções eficazes na prevenção e no tratamento da violência podem ser implementadas de vários modos, entre os quais pelo treinamento de pais e apoio a estes, programas pré-escolares ou centrados em escolas de nível elementar, médio e até superior, monitoria e apoio para grupos de companheiros e apresentações por meio da mídia com atividades de extensão positivas, pacíficas, pró-sociais, como é preferível denominar esse tipo de atividade na linguagem psicológica. Atividades pró-sociais são esporte, recreação, lazer, acentuadíssimos pelos autores como fundamentais nesse sentido. As oportunidades para a criança aprender, adotar e usar os seus recursos interiores são tanto mais eficazes quanto mais cedo possam ser introduzidas em sua vida, apresentadas de modo coordenado ao longo de muitos domínios sociais, ajustadas a prioridades comunitárias e culturais e repetidas e expandidas de modo sistemático a longo prazo, durante os seus anos de crescimento.
Resiliência
Por fim, quinto item. As pesquisas psicológicas demonstraram que, embora seja cada vez mais freqüente e letal, a violência não é inevitável. A maioria das crianças que crescem sob as circunstâncias mais adversas não se tornam violentas. Precisamos saber mais a respeito dos mecanismos que protegem essas crianças de adversidades ambientais. É o fenômeno batizado com um nome muito sugestivo, a resiliência: crianças que surpreendentemente parecem ser mais resistentes a essas adversidades do que as demais. Precisamos saber o que é que faz com que outras crianças se encaminhem, pelo contrário, de modo acelerado para as vias que conduzem à violência.
Além desses cinco pontos, Slaby e colaboradores, a pedido da American Psychological Association, enumeraram alguns pontos, como recomendações para que se reduza a violência.
Os aspectos da problemática psicológica da violência que consideramos aqui, não obstante a sua irrecusável importância, de nenhum modo esgotam tudo o que a psicologia tem oferecido para que se compreenda melhor a natureza da agressão e da violência, o seu desenvolvimento nos seres humanos e o que pode ser feito em programas preventivos e de intervenção, desde a mais tenra idade. Inclusive, um dos programas citados por Eron é junto a futuras mães; antes de ser mãe, a mulher já é envolvida num programa de prevenção de violência em relação aos filhos que ainda vai ter.
Existem domínios específicos do conhecimento psicológico atual que vêm sendo intensa e extensamente trabalhados nestas últimas décadas e que, ressalte-se mais uma vez, aparentemente permanecem ignorados entre nós, notadamente entre os que se acham direta ou indiretamente envolvidos na problemática de lidar com a violência na nossa sociedade. Cada um desses domínios é surpreendentemente vasto e rico em matéria de teorização, resultados de pesquisas, implicações e aplicações que mereceriam um tratamento em separado, ainda que sumário.
A mera enumeração desses domínios do conhecimento psicológico, que devem ser acrescentados aos mencionados inicialmente, mostra como à luz dos conhecimentos atuais é impossível conceber agressão e violência nos termos superficiais com que boa parte da mídia vem explorando esses temas e problemas e quanto deixam a desejar certas formulações simplistas, ingênuas, que campeiam por aí, sobre como resolver o problema da violência. Serve também para realçar duas ordens de contribuições que, infelizmente, não têm sido levadas em conta em nosso meio como recursos que deveríamos mobilizar, que deveríamos intensificar extraordinariamente a serviço da prevenção, intervenção e controle de violência. A primeira é, coerentemente com o teor desta exposição, eminentemente psicológica; a segunda refere-se à educação no seu sentido mais amplo.
Primeiro, a psicologia. Aparentemente os nossos governantes continuam alheios em relação ao que os psicólogos e a psicologia têm a oferecer, particularmente no contexto escolar mas também junto a serviços e instituições voltados para a saúde e o bem-estar social, no sentido de prevenção, intervenção e controle de comportamentos agressivos. A psicologia escolar conta no Brasil com uma história cujas origens pertencem a um passado distante. Lembro-me agora, numa nota de saudade, de Durval Marcondes, Norberto de Souza Pinto e tantos outros que, já nos anos 20, 30 e 40, trabalhavam por uma psicologia escolar ativa, presente nas escolas junto a crianças e professores. A despeito desse passado ilustre da psicologia escolar no Brasil e do seu alto grau de desenvolvimento e refinamento em numerosos países (a França tem psicólogos em todas as escolas desde o final da Segunda Guerra Mundial), inexiste no Brasil a figura do psicólogo escolar na quase totalidade das escolas, notadamente nas pertencentes à rede de ensino público.
Veto infeliz
No último número do jornal oficial da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, sua presidente, a doutora Raquel Souza Lobo Guzzo, começou o editorial com esta frase: "Se o presidente da República não sabe quem somos nós, o que fazer?" O editorial em questão refere-se ao veto do presidente Fernando Henrique ao projeto de lei que introduziria os psicólogos no sistema brasileiro de ensino, a fim de prevenir distúrbios e desajustamentos, ajudar profissionalmente crianças e adolescentes, colaborar com os professores, trabalhar dificuldades de aprendizagem, emocionais, intelectuais, sociais, etc. O presidente vetou isso. A atuação do psicólogo no sistema brasileiro de ensino ajudaria, evidentemente e em não pequena escala, a prevenir distúrbios e desajustamentos, auxiliaria profissionalmente crianças e adolescentes, serviria como uma colaboração com os professores para trabalhar dificuldades de aprendizagem, emocionais, intelectuais e sociais dos alunos. Trata-se de um veto infelicíssimo, particularmente quando se pensa no trabalho que o psicólogo escolar poderia orientar junto a alunos, professores e pais no âmbito da prevenção da agressão e em programas de intervenção com a ajuda desses pais e professores. Se desejamos sinceramente uma sociedade menos agressiva, menos violenta no futuro, precisamos contar com psicólogos na escola, nos serviços, nas instituições voltadas para a saúde e o bem-estar, nos estabelecimentos correcionais, nas delegacias, nas prisões, etc., psicólogos que trabalhem com técnicas, procedimentos e instrumentais que são de sua competência, para a redução da violência na sociedade.
Quanto à responsabilidade que cabe aos educadores nesse empenho pela redução da violência e da agressão, o professor Américo Menezes lamentava ainda há pouco, em artigo de grande veemência intitulado "Educação e violência", a precariedade da educação proporcionada às crianças e aos jovens de hoje em boa parte das escolas e dos lares, indagando se não existiriam sérios e graves vínculos "entre as raízes da famigerada violência de hoje e a inegável falta de educação" que se implantou no país nestes últimos anos. Uma educação verdadeiramente digna desse nome seria, na verdade, como acentua Menezes no seu artigo, "uma grande força em favor da redução de crimes, assaltos e roubos". E acrescenta: "Violência é brutalidade oriunda de subeducação... Prioritariamente, cuide-se de fazer educação, neste país, através de escolas, que é o que não se tem feito... Eduquem-se as crianças de hoje e não será preciso castigar os homens de amanhã".
Termino lembrando que cabe a todos nós, pais, educadores, cidadãos responsáveis, líderes comunitários e assim por diante favorecer e encorajar valores, conhecimentos, atitudes, iniciativas que estimulem, que favoreçam relações construtivas e não destrutivas entre as pessoas, que preparem as crianças e os jovens para viver num mundo pacífico. Um dos derradeiros livros de Karl Popper intitula-se Em busca de um mundo melhor, na tradução portuguesa editada em Lisboa pela Fragmentos. Nessa obra luminosa e surpreendente, Popper se insurge contra a tese da maldade radical do mundo e da sociedade e registra que "a falsa fé na maldade é ela mesma maligna, desencoraja os jovens, as crianças, e arrasta-os para a dúvida e o desespero ou mesmo a violência". Contra essa ideologia pessimista, ele sugere que o nosso norte seja um objetivo de paz e de não-violência. E isso, a seu ver, "não é apenas um sonho, mas é um alvo que pode e deve a humanidade atingir, um alvo possível e numa perspectiva biológica claramente necessário nos dias que correm". É quase que um testamento que Popper nos passa com essas palavras. Ele morreu pouco depois de ter escrito essa obra.
Aprendamos com os nossos erros e com as nossas fragilidades, como lembra Popper. Proponhamos a nós mesmos como meta a moldagem de um mundo melhor e empenhemo-nos, de fato e não apenas com palavras (palavras, o vento as leva), na construção desse mundo melhor, fundamentado no respeito à vida, no respeito ao caráter sagrado da vida e na não-violência.
![]() | |