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Ratos da cidade
IMMACULADA LOPEZ
No Parque Santa Madalena, periferia das periferias no extremo leste de São Paulo, os "nóias" não são novidade. Nas "bocas" de distribuição de drogas, esse é o nome dos que usam crack, desprezados até pelos usuários de outros tóxicos. "São os ratos", diz o padre Savério Paolillo, do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e Adolescente Mônica Paião Trevisan, no Parque Santa Madalena, que tem duas grandes favelas. Lá, onde a droga faz parte de uma rotina de muitas carências, ele conhece pelo menos 20 crianças nessa situação, algumas com 8, 9 anos.
"Quem usa crack é conhecido por sujar muito a área, no sentido de criar confusão, roubando a própria família, o varal do vizinho, ou até mesmo o toca-fitas do traficante", conta Savério. Os roubos sempre visam dinheiro imediato para comprar a pedra de crack. "Seu único interesse passa a ser a dose seguinte. Desfazem-se de tudo o que têm, dormem fora de casa, não comem. Deixam de se cuidar, ficam sujos e, muitas vezes, se enfiam nas lixeiras, em buracos... Por isso, são chamados de ratos", continua Savério. O vínculo com suas casas se rompe. Trabalho ou escola, muitos já não tinham. Ficam então "entocados" nas ruas distantes da periferia.
Outras crianças - muitas - vão encontrar o crack no centro da cidade. Sem casa nem escola, fazem da rua seu espaço. O que quase sem escapatória significa usar alguma droga. "Talvez apenas aqueles que acabam de chegar não estejam envolvidos", diz Joana Pundyk, educadora de rua da Associação de Apoio às Meninas e Meninos da Região Sé, ligada à Pastoral do Menor.
Expansão geográfica
"Dizer que a criança faz uma opção ao usar a droga é não entender o que acontece", alerta o sociólogo Rubens Adorno, da USP. "O crack se tornou signo de identidade, faz parte da cultura da rua. É difícil ficar de fora." Em São Paulo, há pelo menos dois anos o crack vem tomando o lugar da cola de sapateiro e dos solventes. Foi a cidade aonde a droga chegou primeiro, e de onde logo se espalhou pelo Brasil. Apesar de ainda não haver um levantamento nacional, diferentes grupos de trabalho revelam sua disseminação.
"O crack já está presente entre as crianças e jovens de Natal há mais de um ano e agora está se expandindo", informa a educadora social Genilda Araújo, do S.O.S. Criança do Rio Grande do Norte. Especialmente desde dezembro, meninos a partir de 7 anos, que moram nas ruas ou na periferia, vêm relatando o uso do crack. "Ele está substituindo a cola e a maconha, e quem começa não volta mais para outra droga", diz Genilda.
Em Pernambuco, o Movimento Nacional de Meninas e Meninos de Rua fez uma pesquisa, em abril, com moradores de rua e de favelas de Olinda e Recife, de 10 a 18 anos. Entre eles, 30 usavam cocaína inalada; 14, cocaína injetável; e 17, crack. "Ainda não está muito visível, mas a chegada da droga está nos preocupando muito", diz Helena Silva Jansen, coordenadora do movimento no estado.
Em Belo Horizonte, o crack já é a droga da moda entre as crianças das classes mais baixas. Lá, substituindo um tipo de solvente, o thinner. "Infelizmente, de maio para cá, o uso vem crescendo muito", informa a coordenadora de Minas Gerais, Maria Eneidi Teixeira. "É a novidade. Usar crack é conseguir um certo status." Os meninos contam que o acesso está fácil e que a droga está dando dinheiro. Ao mesmo tempo, Maria Eneidi vê as crianças emagrecendo, não só nas ruas, mas também nas favelas.
Circuito ilícito
Além dessas cidades, há notícias de crianças de Ribeirão Preto, Santos, São José do Rio Preto, Campinas, Goiânia, Florianópolis, Itajaí, usando crack. Dependendo do lugar, ele substitui a cola, os solventes ou a maconha. Mas em nenhum caso significa simplesmente a troca de uma droga por outra.
Para Adorno, "o crack fechou o cerco". A venda da cola e outros solventes a crianças é proibida, mas os produtos não são ilegais. "Com o crack, estamos falando de um circuito ilícito, mais rentável e violento. Começou um esquema de distribuição diferente, envolvendo pessoas externas ao universo da rua", diz o sociólogo.
A disponibilidade da mercadoria parece ser essencial para o consumo tanto entre os que vivem nas ruas como entre os que vão às bocas buscar outra droga. Em 95, a pesquisadora Solange Nappo, do Centro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas de São Paulo, entrevistou vários usuários de diferentes perfis e muitos afirmaram que começaram com o crack por não encontrar outra droga. "O crack passou a ser a droga do traficante paulista", diz Solange.
Quinze minutos
A falta de opções pode explicar a entrada no mundo do crack, mas não é suficiente para entender a rápida difusão do vício. As razões para isso talvez estejam nas características da própria droga. Seu preparo é fácil: cloridrato de cocaína, água e geralmente bicarbonato de sódio aquecidos numa panela. Quando a água evapora, a mistura se solidifica e quebra, fazendo "crack". Está pronta para ser fumada, explica Sandra Scivoletto, coordenadora executiva do Grupo de Estudos de Álcool e Drogas do Hospital das Clínicas (Grea), em São Paulo, onde os pacientes de 11 a 17 anos envolvidos com crack representam 68% do total.
Em menos de 15 segundos, a droga causa uma potente sensação de euforia, bem-estar e força física. Em menos de 15 minutos, ela termina. Logo vem uma depressão intensa. "O processo não é gradual", diz Sandra. É como ligar e desligar de uma vez todas as luzes de um arranha-céu. Como os efeitos são tão imediatos, o organismo associa mais facilmente causa e efeito.
Nas palavras dos usuários, eles ficam dominados pela pedra. "O crack dá mais possibilidade à dependência", explica Sandra. "Não é como outras drogas, que eles compram para usar depois. A 'fissura' (desejo intenso de consumir a droga) é tanta, que usam na hora em que compram", diz a psiquiatra do Grea.
Tratamento possível
A cada uso, os vasos sangüíneos se contraem, a pressão sobe, o coração dispara, a respiração acelera, os neurônios se estimulam. Pode haver convulsão, infarto, derrame ou má oxigenação. De qualquer forma, coração, cérebro e pulmão ficam debilitados. Sem se cuidar ou comer, o usuário fica ainda mais vulnerável. Mas esse quadro, segundo Sandra, pode ser enfrentado. "Como no caso de outras drogas, não falamos em cura, mas em controle." Ela explica que 72 horas são suficientes para a desintoxicação, e num período de 15 a 30 dias é possível reequilibrar o sistema neurotransmissor. Um tratamento que muitas vezes não precisa de medicamentos nem de internação.
Entretanto, é possível contar nos dedos os serviços de atendimento existentes numa cidade como São Paulo. "Quando finalmente alguma criança quer se tratar, quase não temos alternativas, e as poucas instituições existentes ficam longe das periferias ou não têm vagas", diz Savério. Ele está convencido de que a melhor alternativa seria o atendimento de bairro, com acompanhamento da família. "Mas ninguém quer investir. Aqui faz tempo que tentamos um movimento para enfrentar a violência. Não no grito e sim na criação de oportunidades. Mas poucos nos apóiam", desabafa.
De qualquer forma, a abordagem médica não resolve o principal motivo de recaída: o significado da droga na vida de quem a usa. "Nosso grande desafio é entender o valor de 15 minutos de prazer para a garotada", diz Savério. "Mesmo vendo os resultados em seus amigos, eles arriscam. Por quê?" Ele lembra uma menina que, sob o efeito do crack, dizia ver muito verde, belos animais e um rio. Na verdade, estava sentada junto ao mato, entre ratos, na beira do esgoto. "A ânsia de alegria e paz é muito grande", diz Savério.
"Há carências fundamentais", diz o psiquiatra Auro Danny Lescher, coordenador do projeto Quixote, da Universidade Federal de São Paulo, na capital paulista. Desde o final do ano passado, o projeto abriu as portas de uma casa de apoio para meninos e meninas de 4 a 18 anos em situação de risco social. A grande maioria vive perto do crack, ou com ele. "Chegam aqui sem nenhuma referência afetiva. Alguém com quem possam estar sem medo. Não sabem em que ano estão. Não se sentem com direitos nem capazes de desejar", diz.
Segundo a Associação de Apoio às Meninas e Meninos, o crack dificulta qualquer trabalho de apoio às crianças carentes. "Saímos para a rua e não conseguimos nem falar com elas. Ou estão pipando (fumando crack) ou desmaiadas", diz Elda Munari, membro da organização. No Parque Santa Madalena, Savério também relata a dificuldade de reação. "Ainda não achamos nada de bom para oferecer à criança envolvida com crack." Não tem sido possível despertá-los nem para atividades como o rap (estilo musical muito apreciado na periferia) e o futebol. "Apenas conseguimos ser uma presença ou oferecer um lanche", conta Savério.
Vítima punida
"O crack não pode ser encarado apenas como uma questão médica ou policial, e sim social", resume o sociólogo Rubens Adorno. "Ele é sinal da vergonhosa e total falência das políticas públicas, que expõem a criança à rua, não dão outras alternativas e, ao mesmo tempo, não impedem a chegada da pedra."
Os problemas nas iniciativas oficiais de combate ao crack são reconhecidos até mesmo por representantes de entidades ligadas ao governo, como Charles Pranke, vice-presidente do Conanda (Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente). Pranke diz que o assunto ainda está sendo tratado como uma questão de segurança, e as autoridades agem como se o usuário precisasse ser punido. Atribuem, com isso, a culpa a ele, sem reconhecer o contexto social. "Parece que é a sociedade que precisa ser protegida dos riscos da droga, e não a criança usuária", diz Pranke.
Em paralelo, os órgãos públicos não resolvem quem vai assumir a tarefa do atendimento ao usuário, e as escolas não realizam programas preventivos. Ana Maria Azevedo, coordenadora de programas e projetos da Secretaria Estadual da Criança, da Família e Bem-Estar Social paulista, admite que as medidas tomadas até o momento são tímidas. "Nós, das diferentes secretarias (da área social, de educação e saúde), ainda estamos trabalhando de forma desarticulada", diz ela. Mas Ana Maria adverte que não basta responsabilizar o poder público. "O caminho da mudança é uma ação coletiva e solidária."
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