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A dor silenciosa

IMMACULADA LOPEZ

Ser espancada, queimada com cigarro, agredida sexualmente, humilhada ou abandonada pelos pais. Para a criança, essa não é a maior violência. "O pior é ser agredido por quem devia proteger", diz a advogada Lia Junqueira, coordenadora do Centro de Referência da Criança e Adolescente (Cerca), do governo paulista, que acompanhou mais de 4 mil casos de violência doméstica no ano passado. Segundo Lia, nem sempre o melhor lugar para a criança é sua própria família. Se ninguém interfere, os abusos podem se repetir por anos e empurrar as crianças para outro mundo de violência.

Contudo, segundo a psicóloga Maria Amélia de Azevedo, coordenadora do Laboratório de Estudos da Criança (Lacri), da USP, "muitos juízes resistem em afastar o agressor da casa - uma medida garantida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente - porque acham que acima de tudo está a família".

Entre vizinhos e amigos, vale o ditado "roupa suja se lava em casa". Ao chegar à escola, creche, posto de saúde ou até mesmo hospital, o silêncio se repete. Os professores não estão atentos, não sabem o que fazer ou acham que não devem se meter. "Outros não acreditam na criança quando ela supera o medo e a vergonha e conta o que acontece em casa - principalmente nos casos de abuso sexual", completa Maria Amélia. Com os médicos, não é muito diferente.

"O diagnóstico de violência familiar não é difícil", informa o pediatra Evandro Baldacci, diretor do grupo de Epidemiologia e Desenvolvimento de Qualidade do Instituto da Criança, em São Paulo. Quem traz a criança não conta a história verdadeira, mas vários sintomas, como o tipo de fratura ou forma da queimadura, revelam a possibilidade de agressão. No instituto já é rotina: se há suspeita, o caso é encaminhado ao serviço social do hospital, que o comunica à Vara de Infância e Juventude competente. Se há risco de repetição da violência, a criança só sai do hospital com ordem judicial. Em seguida, o caso é acompanhado por médicos, psicólogos e assistentes sociais. Mas esse procedimento é uma exceção no sistema de saúde brasileiro.

"Geralmente, o médico vê a violência como caso policial. É difícil ele agir, muitas vezes enfrentando a família, se não tiver respaldo da estrutura hospitalar", destaca o pediatra. E raramente essa estrutura existe.

Encontrar vítimas desses problemas não é difícil. "Quase todas as meninas que hoje estão vivendo aqui nas ruas do centro de São Paulo contam histórias de abuso sexual em casa, principalmente por parte do padrasto", diz Joana Pundyk, da Associação de Apoio às Meninas e Meninos da Região Sé, ligada à Pastoral do Menor. Às vezes - conta Joana -, as crianças voltam para casa, passam alguns dias, mas como percebem que nada mudou vão para a rua de novo. "O caminho, portanto, não é só denunciar, mas acompanhar a criança violada para romper o ciclo e mudar o referencial de amanhã", conclui Lia Junqueira, que cumpre esse compromisso no Cerca.

A relação entre violência familiar e prostituição infanto-juvenil também se confirma. "O maior motivo da exploração sexual de crianças é a violência dentro de casa. Só depois vem a miséria", diz a educadora social Cecy Prestrello, do Coletivo Mulher Vida, em Olinda (PE).

O problema, de fato, não é exclusivo das classes de baixa renda. Marlene Vaz, consultora do Unicef, conversou com crianças e jovens de Salvador (BA) e Aracaju (SE), entre outras capitais nordestinas. Ela se espantou com o número de meninas de classe média, média-alta e alta se prostituindo. "É um provável indicador de abuso sexual nessas famílias. As meninas acabam expulsas, engravidando ou criando uma vivência sexual desequilibrada", diz Marlene.

Para combater as causas e conseqüências das agressões domésticas, vêm surgindo em todo o país diferentes projetos de apoio, como o Núcleo de Referência às Vítimas de Violência. O interesse de profissionais parece estar aumentando. O Coletivo Mulher Vida, por exemplo, coordena um trabalho dirigido a mais de 600 meninas, em dez comunidades, para prevenir mais violência. "Através de terapia, conversas, oficinas e aulas profissionalizantes, procuramos fortalecê-las para que dêem um basta no abuso", conta Cecy, coordenadora da entidade. "Elas descobrem que não precisam se desrespeitar, que têm valor e poder." A própria menina decide, então, como enfrentar o problema, recorrendo ao Judiciário ou impondo limites em casa.

O Lacri, por sua vez, tem se dedicado a formar equipes especializadas há quatro anos. Já são 90, apenas em São Paulo, reunindo 1,8 mil profissionais de variadas áreas. A idéia é que cada equipe crie na sua cidade uma rede de atendimento que integre todos os órgãos existentes de saúde, justiça, educação, serviço social, etc.

Mas tudo isso, por enquanto, ainda não passa de um sussurro diante do grande silêncio.

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