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Canais da permissividade

MILU LEITE

Discussões calorosas a respeito da influência da TV sobre a formação infantil já renderam páginas de jornais e revistas em diversas partes do mundo. Seminários e congressos internacionais abordam o tema há dezenas de anos, mas, no Brasil, o assunto tem merecido pouco destaque, com prejuízo de todos os que de certa forma contribuem para o desenvolvimento saudável das crianças.

O psicólogo e pedagogo Samuel Pfromm Netto, atualmente professor da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, é um estudioso do tema e acena com um dado alarmante: estudos feitos por alguns de seus orientandos mostraram que cada vez mais crianças estão assistindo a novelas e filmes violentos pretensamente dirigidos ao público adulto. A palavra "pretensamente" exprime o agudo grau de leviandade dos responsáveis pelas redes de TV, que, calculadamente, alardeiam sua programação "para maiores" nos intervalos de programas infantis.

"A criança deseja crescer, tornar-se um adulto. A sofreguidão, a fome com que ela quer isso encontra um respaldo no consumo daquilo que os adultos consomem - fumar e beber, por exemplo, como o pai e a mãe. Não obstante isso, os adultos lhe dizem que não lhe é permitido fumar nem beber, pois são coisas que fazem mal à sua saúde. É curioso que com relação à TV a permissividade seja total", diz o professor Pfromm numa referência clara ao despreparo de pais que acreditam que qualquer proibição deve ser abolida da educação mais moderna.

Há teóricos que defendem essa postura partindo do pressuposto de que a criança deve estar exposta a tudo o que há no mundo, pois assim ela estará sendo "vacinada" contra os males que surgirem num futuro não muito distante.

Entretanto essa postura não encontra o respaldo da psicóloga Sandra de Souza Lobo Stirbulov, que atende crianças há 20 anos. "Filmes com conotação sexual, desenhos violentos e grande parte das telenovelas prejudicam a formação da criança. Se os pais têm um critério claro, devem mesmo proibir alguns programas, ainda que sejam questionados pelos filhos. Se não proíbem, que ao menos ofereçam outras alternativas."

Mas num país com uma média de escolarização de 2,5 anos, como é o caso do Brasil, parece muito distante a idéia de "critério claro". São milhões de cidadãos analfabetos e semi-alfabetizados convivendo com um aparelho eletrônico que, por esforço de alguns, tenta melhorar de aparência, ficar mais compacto, mais bonito e oferecer a imagem mais próxima possível do real.

Colocada desse modo, a afirmação parece carregada de certo maniqueísmo. Contudo, não se trata de demonizar a televisão, mas de lhe dar o papel que ela não pretende assumir. A TV faz parte do mundo (hoje em dia goza de um lugar só para ela em algumas casas) e, como tudo, tem um lado positivo e outro negativo.

Mas então o que assistir, quando assistir e quanto assistir? Não há uma receita geral que os pais possam adotar, mas o bom senso e um bom número de pesquisas ditam que há idade para tudo. A criança pequena é extremamente receptiva. Colocá-la diante de telejornais, brutalidades e novelas de forte apelo sexual só vai prejudicá-la, pois ela não está preparada física e emocionalmente para receber tais impressões.

"Impressões", nesse aspecto, é o termo exato para explicar o que resta à criança em tenra idade após uma exposição à TV. O impacto das imagens é absorvido por ela, incapaz de contextualizar o significado do que vê. "Isso pode trazer distorções. É o mesmo que comer uma fruta verde. Se você come, passa mal", alerta Sandra.

Perversidade

Em pesquisa divulgada no início da década pela USP constata-se que a criança brasileira assiste em média 5,5 horas de TV por dia. São centenas de minutos passados diante de mensagens as mais desconexas, num frenesi de estímulos os mais diversos. Clichês ideológicos, modelos de valor e de moral são apresentados a uma pequena pessoa que muda de paladar semanalmente, nesse caso como manda a natureza. Ela, decididamente, só pode resolver se gosta de comer isso ou aquilo. Exigir mais de uma criança de 4 ou 5 anos é ignorância, e confrontá-la com os fatos do dia-a-dia chega a ser perverso.

Em trabalho feito pelo Núcleo de Estudos Psicológicos da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) informa-se o seguinte: "Considerando o telespectador infantil, podemos dizer que a criança, exposta a uma grande quantidade de informações velozmente transmitidas, está sendo lesada em suas oportunidades de desenvolver-se do ponto de vista cognitivo, e tenderá a atrofiar sua capacidade de abertura da percepção".

Uma pequena monografia publicada em 1993 pela entidade O Amanhã de Nossos Filhos traz um resumo de pesquisas realizadas em vários países sobre o tema Televisão. Uma delas, coordenada pelo psiquiatra francês Marcel Rufo (professor de Psiquiatria Infantil da Universidade de Marselha), foi realizada com centenas de adolescentes de Paris e da Côte d'Azur. De acordo com o estudo, constatou-se uma diminuição da capacidade de memorização, ligada diretamente ao excesso de televisão. Alunos expostos por duas horas à TV reconheceram menos símbolos familiares a eles que os que foram expostos a apenas meia hora. Além disso, tiveram dificuldades de associar imagens, idéias e palavras.

Samuel Pfromm esquadrinha a problemática: "Não há uma consciência crítica entre nós sobre os prejuízos que esse tipo de exposição causa às crianças, do mesmo modo como não há essa consciência em relação a outros problemas que as afetam diretamente. Os estudos sobre esses tópicos têm tido pouca ou nenhuma divulgação".

Grande pai

Ao afirmar isso, Pfromm toca numa questão primordial quando se tem em mente discutir mais profundamente o assunto: se a TV nunca vai falar mal de si mesma, como furar o bloqueio e levar a discussão ao telespectador?Como enfrentar esse Grande Pai, como denominou Sandra, numa alusão ao Grande Irmão do livro 1984, de George Orwell?

Em países mais desenvolvidos, onde a média de escolarização flutua entre 14 e 16 anos, há centenas de associações de grupos voluntários que se preocupam em debater a influência da televisão sobre as pessoas. Nos Estados Unidos, por exemplo, existem dezenas de entidades empenhadas em modificar o padrão de consumo imposto pela mídia audiovisual, entre elas o Mediascope, o Conselho Nacional de Telemídia e o Centro de Pesquisas de Influências da TV sobre as Crianças. Essas organizações estimulam e divulgam estudos sobre a mídia e realizam um trabalho de vigilância sobre as emissoras de TV, de modo a pressionar os representantes do povo (os políticos) para que os órgãos governamentais tomem as medidas necessárias.

Mas para que a ação não caia num vazio é necessário mudar o foco das críticas. O alerta é feito por Pfromm, que sugere: não se deve atacar este ou aquele canal de televisão quando se quer reclamar de um programa, e sim o anunciante. Todo programa tem um patrocinador, e ele deve ser responsabilizado pelo que está sendo exibido. Quando se age assim, ganha-se um poder de pressão muito maior, pois o que se compromete é a imagem de um fabricante.

Obviamente, com isso, não se está eximindo a emissora de suas responsabilidades. Ela ainda é a grande genitora. Trata-se apenas de entrar numa luta com a arma certa. Sem patrocínio para um mau programa, a TV se vê obrigada a mudar a qualidade do que oferece.

Mas não estaríamos exigindo demais de uma população semi-alfabetizada? É provável que sim. Por essa razão vale introduzir aqui uma questão delicada, polêmica e controversa, mas possível de ser analisada se transformamos uma palavra ideologizada num termo mais palatável. Não falaremos em "censura", mas em "seleção", uma vez que "censura" parece estar mais ligada à idéia de totalitarismo, como diz o teórico Wilbor Schramm.

Como bem lembra Pfromm, a seletividade ocorre diariamente tanto na mídia impressa quanto na audiovisual. Existe um critério de escolha, que segue determinados padrões e norteia a programação da TV. Não se assiste a tudo o que se produz, assim como não se tem informações sobre todos os fatos que acontecem no mundo.

Idealmente, Pfromm defende a idéia de que as redes de TV desenvolvam um tipo de consciência que as leve a primar pela qualidade de seus programas, mas não abre mão de outras saídas quando isso não acontece. "Se há necessidade de medidas de coibição, temos que tomá-las." Sandra, por sua vez, prefere que se discuta a criação de um Código de Ética na televisão. Ambos, entretanto, concordam a respeito da premência de uma ação.

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