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Tietê, ainda que tardio

Maria Alice Oieno de Oliveira

A nascente do velho e bom Tietê – um minúsculo olho d'água borbulhante – era "propriedade" de uma família que gentilmente abria a porta de seu quintal para visitantes ávidos por conhecerem essa preciosidade histórico-geográfica, cercada por bananeiras, galinhas e terra batida, tal como 9 entre 10 mananciais da nossa terra: o Tietê recém-nascido já sujeito à erosão e contaminação.

Porque virou celebridade, essa pequena nascente foi cercada de cuidados dos governos e ONGs, o que mudou um bocado a rotina dessa família. Ela fica em Salesópolis, a 840 m de altitude na Serra do Mar e, apesar de estar a uns vinte quilômetros do oceano, achou seu caminho através do interior, indo desaguar no Rio Paraná, na divisa com o Mato Grosso do Sul.

Depois do trecho serrano, o Tietê percorre a planície sobre a qual ergueu-se a capital paulista, a região mais populosa e industrializada do país, recebendo diariamente quase mil toneladas de carga orgânica, 350 de carga industrial, inclusive, metais pesados, resíduos tóxicos, além de lixo sólido: o Tietê adolescente, drogado, prostituído e morto.

Vale lembrar que até a década de 40, suas várzeas eram imensas áreas naturais de lazer e terras fertilizadas pelas cheias. Havia pescaria, regatas e natação. Havia meandros que funcionavam como redutores de velocidade e filtros naturais. Com a industrialização, vieram as vias marginais sobre as várzeas, seu curso foi retificado e priorizou-se sua utilização como coletor dos esgotos da metrópole. Além disso, e por apresentar fortes desníveis a menos de 100 km da capital, a outra prioridade foi a construção de hidroelétricas que respaldariam o progresso da região.

Nosso rio volta a encontrar obstáculos, a partir de Barueri, e seu trecho mais acidentado, próximo a Itu, é a chamada Passagem Heróica, nome apropriado para o impressionante canion que o rio escavou no granito.

Após toda essa movimentação, o Tietê ressuscitado enche de orgulho a população de Barra Bonita, a 280 km da capital, onde suas águas límpidas são a principal atração turística da região, além de permitir que muita gente se alimente de seus peixes.

Na natureza há o eterno fazer e desfazer, "sujar e limpar" que deveria ser melhor conhecido e aproveitado por nós, evitando tamanhos estragos, decorrentes de tanta ignorância e prepotência. Acertar o passo com tais processos nos conduziria à sociedade sustentável.

Após meio século de esquecimento, o Tietê da capital passou a ter esperanças de passar da categoria de rio morto para a classe 3, isto é, um rio com oxigênio suficiente para permitir a sobrevivência de peixes e alguns vegetais aquáticos, (porém, longe de recuperar-se plenamente), devido a um ambicioso projeto de despoluição, anunciado em 1992, e para o qual os governos teriam recebido altos financiamentos internacionais. Não é possível pensar no Tietê como se fosse um elemento que se pudesse isolar e tratar, como se faz com um doente num hospital. Ele recebe as águas putrefatas do Rio Pinheiros, do Tamanduateí, que por sua vez recebe as águas do Ipiranga, isso para falar só dos principais. Há a expansão desordenada da cidade no coração das áreas de mananciais, despejos clandestinos de esgotos, impunidade sobre aquilo que poderia ser controlado e insuficiente empenho no trabalho educativo.

Estamos em 1998 e vemos o resultado: algumas discussões sobre leis, canalizações e piscinões para aprisionar tais rios nas profundezas onde seu mau cheiro e doenças não nos atinjam, pois já que os matamos, são tratados como defuntos. E que não nos atrapalhe.

Maria Alice Oieno de Oliveira é bióloga e técnica do Sesc Técnico-Social do Sesc.