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O Rio Está Morto
Durante o longo caminho, o Tietê determinou o surgimento de inúmeros núcleos urbanos, dentre eles a capital de São Paulo, fundada em 1554 e situada na cabeceira do rio. (Leia mais sobre a história do Rio Tietê) Hoje, quase 500 anos depois, a cidade renega, polui e destrói as mesmas águas que no início bebia para crescer. Do encontro entre a população e rio, sobram apenas derrotados. Os dois perdem muito com a situação atual.
Até meados deste século, entretanto, o rio era utilizado como fonte de prazer, além de embelezar a cidade que terminava à beira de suas margens. Depoimentos de época comprovam, saudosistas, a placidez saudável do Tietê. "É uma tristeza ver o esgoto a céu aberto em que se transformou o rio", lamenta o ex-ministro da saúde, Adib Jatene que praticava remo nas águas limpas de então. "Os lambaris chegavam a pular para dentro das embarcações." (depoimento originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo em outubro de 1997).
A poluição desbragada teve início no começo dos anos 40 quando as incipientes indústrias se instalaram às margens do rio e atingiam as águas com esgoto destratado. Nas primeiras décadas do século, o rio recebia apenas o 'indesejável' doméstico dos habitantes da então modesta metrópole.
O crescimento desordenado da cidade inverteu a origem da sujeira. Se anteriormente era mais expressivo o esgoto industrial, agora, os 12 milhões de habitantes, muitos distribuídos indistintamente e sem planejamento, despejam no rio 80% da sujeira. O estado lastimável a que chegou o Tietê tem várias causas e fatores que compreendem desde o mau exemplo da Administração Pública até a falta de educação dos paulistanos. E pior. As agruras por que passa o rio trazem efeitos danosos à cidade de uma maneira geral, prejudicando a qualidade de vida dos paulistanos e influindo no meio ambiente, além de implicar prejuízos financeiros aos cofres públicos e particulares.
Um regato de sujeira
Mais do que conseqüências meramente estéticas, o estado crítico do rio importa principalmente em malefícios graves ao saneamento básico. A transparência da água fica em segundo plano se confrontada com os efeitos nefastos que a poluição imensurável acarreta.
Imensurável? Alguém pode estranhar o emprego deste adjetivo para qualificar o nível de sujeira do Tietê no trecho em que atravessa a cidade de São Paulo. Mas, infelizmente, é a maneira correta de se referir ao estágio assustador da poluição. Veja: "Se formos analisar essa água que cruza a cidade, não será possível enquadrá-la em nenhuma classificação", comprova Samuel Roiphe Barreto, o coordenador do Núcleo União Pró Tietê, entidade não-governamental ligada ao S.O.S Mata Atlântica.
Segundo Barreto, o rio só atingirá o mais baixo dos níveis, o grau 4, ao término bem sucedido de todos os projetos de despoluição em curso atualmente. A classificação dos poluentes é determinada pela Lei 997/76 que para o nível 4 estabelece que as águas, nesse estágio, estarão disponíveis à navegação, à irrigação e ao abastecimento doméstico, após tratamento avançado. Isso significa que o rio Tietê que cruza a capital paulista mostra-se impróprio às atividades mais comezinhas.
O processo que turvou-lhe as águas levou alguns anos para concretizar os malefícios. Somadas à negligência das autoridades e ao indiferença de uma parcela da população, causas naturais e incoercíveis concorreram para a desdita do rio. Os motivos ocultos, desconhecidos da grande maioria, são inerentes à natureza. "Toda megalópole gera sujeira, mas aqui o volume de água para diluir essa sujeira é menor. A limpeza do Tietê é mais cara do que a de outros rios", explica José Carlos Ribeiro Leite, superintendente do Projeto Tietê, que foi lançado pela Sabesp e é financiado com recursos próprios e do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento).
Por quê? "São Paulo está situada na cabeceira do rio, ou seja, quando cruza a cidade, o leito tem pouca água. Em Londres, que está no estuário do Tâmisa e em Buenos Aires, na foz do rio Prata, a quantidade de água é muito maior". A imagem proposta por Ribeiro Leite é perfeita. "Funciona como um copo d'água: se você pegar um copo cheio e colocar duas co-lheres de açúcar, ele some. A mesma quantidade para pouca água transforma a solução em uma pasta". O grande Tietê, a poucos quilômetros da nascente, não passa de um regato.
Outro exemplo ao qual se pode recorrer é o do rio Sena que, quando atravessa Paris, tem uma vazão cem vezes maior que o par paulistano. Dessa forma, mesmo se houvesse um grau de tratamento de esgoto nas mesmas proporções que o realizado em Paris (cerca de 60% do esgoto coletado é limpo pelas estações habilitadas) a sujeira por aqui permaneceria mais pungente do que no Sena francês.
Se, por um lado, a natureza não colabora na limpeza do rio, por outro, sem a intromissão do homem não haveria poluição. E o esgoto que o polui vem de duas frentes principais: o industrial e o doméstico. No começo, o principal flagelo provinha das indústrias. A partir do crescimento desmedido da cidade aliado à falta de planejamento em saneamento básico, as residências se tornaram o mais perigoso vilão. Hoje, conforme dados da Cetesb, 80% do esgoto origina-se das casas.
Esse número parece duvidoso à primeira vista, já que os poluentes expelidos pelas indústrias – com alto teor químico – são mais nocivos do que o lixo preponderantemente orgânico das residências. Ocorre que a partir da promulgação da Lei 997/76 houve um efetivo controle sobre as emissões industriais. Calcula-se que existam cerca de 40 mil indústrias sediadas na zona do Alto Tietê (região metropolitana de São Paulo), destas, 1250 respondem por 90% dos lançamentos tóxicos e estão catalogadas pela Cetesb em parceria com o Projeto Tietê. A maioria conseguiu reduzir em 85% o nível de poluentes antes de projetar o remanescente nas redes da Sabesp. Fica, é verdade, o receio de que a fiscalização deixe de realizar sua função. Porém, conforme os dados divulgados, nota-se que realmente a poluição industrial tem um peso bem menor do que a parceira doméstica, pois esta não recebe qualquer tipo de tratamento antes de ser recolhida pelo sistema.
O fato que muitos não dimensionam é que o rio Tietê serve como destinatário final do ciclo de coleta, ou seja, todos os detritos atirados nas calçadas, de simples maços de cigarro até lixo químico despejado criminosamente nos bueiros, acaba, sem qualquer tratamento, nos emissários que maltratam o rio. O resultado é óbvio: já faz algumas décadas que suas águas encontram-se completamente desprovidas de oxigênio. Traduzindo: quando cruza a cidade, o pseudo-rio nada mais é do que um enorme canal de esgoto, verdadeira fossa a céu aberto.
Tentativas de salvar o rio
Em seu percurso, o Tietê recolhe a água de vários afluentes que, por sua vez, recebem os dejetos dos municípios da grande São Paulo. Além de se sujeitar à sujeira alheia, o fluxo malcheiroso em que se transformou o rio influi no saneamento básico de toda a região. Pode-se dizer, na verdade, que o grau de conservação do Tietê espelha o estágio de civilidade em que se encontram os paulistanos. Explica-se: para atingir o nível calamitoso de hoje, foi necessário descaso imenso. Toda a atitude desrespeitosa contra a cidade reflete-se em conseqüências danosas ao rio.
A solução para o problema é muito mais abrangente do que apenas fiscalizar indústrias, reprimir ligações clandestinas ou drenar o leito do rio. Ela passa, sem dúvida, por uma ampla campanha educativa de conscientização para incutir no espírito da cidade a relação entre Tietê limpo e qualidade de vida decente.
Muitas são as iniciativas que intentam salvar um dos símbolos mais importantes da cidade. A principal, o já referido Projeto Tietê envolve esforços públicos e particulares. Criado em 1992 devido à grande pressão da sociedade que não suportava mais conviver com as condições precárias do rio, o Projeto contou com várias frentes e entidades que se uniram para tentar alterar a situação.
O Sesc, sensibilizado, encampou o Projeto e passou a realizar iniciativas ligadas à limpeza do rio e ao saneamento básico como um todo. Dentre essas medidas, a fim de aferir o descontentamento da população, em 1991, o Sesc lançou mão de uma pesquisa de opinião que concluiu que 91% dos paulistanos adultos acreditavam que a poluição dos rios consistia um "problema sério". A enquete fazia parte do projeto Parceiros do Tietê e revelou, além da preocupação com a sujeira do rio, as expectativas e aspirações de ver as regiões próximas dos rios transformadas em espaços verdes e de lazer. Entre os motivos que levaram as pessoas a desejar a despoluição dos rios, os mais citados à época foram saúde (40,3%) e preservação da natureza (28,8%). A pesquisa revelou, ainda, que 83% dos entrevistados consideravam necessário e urgente despoluir os rios. Os dados divulgados foram comentados por Ribeiro Leite: "A população é muito mais esperta do que se imagina. Ela descobriu que os rios são os termômetros da qualidade de vida da cidade. Ao medir a qualidade da água, ela está medindo a saúde."
Sete anos depois, as entidades envolvidas com essa questão se utilizam dos dados aferidos para pautar as políticas de limpeza. Analisando os objetivos dos projetos, percebe-se que o alicerce principal envolve uma mudança profunda na origem desse flagelo, ou seja, para restaurar as águas do Tietê é necessário um concerto de intenções que envolvem recursos financeiros, é claro, mas também implicam na alteração de hábitos e práticas desastrosas para o rio.
Foi exatamente isso que o Projeto Tietê visou atingir. Orçado na primeira etapa em US$ 900 milhões, sendo metade financiado pelo BID, o projeto prevê uma intensa reforma na área de saneamento básico e de conscientização. O diretor do BID, responsável pelo projeto Tietê, se diz esperançoso na conclusão do projeto. "O rio limpo é um importante passo para amenizar os problemas de saneamento e, com isso, melhorar a saúde da população como um todo. E por isso que estamos estudando financiar a segunda etapa, avaliada em US$ 700 milhões de dólares."
Prejuízo para São Paulo
A construção de 250 mil ligações de esgoto e das estações de tratamento consistem na primeira etapa da despoluição do Tietê. Ao fim dela, o superintendente do Projeto Tietê afirma que a Sabesp terá condição de tratar 69% do esgoto produzido em São Paulo. Quando esse objetivo for plenamente alcançado, a etapa seguinte prevê dobrar a vazão do rio através do afundamento da calha (Leia mais sobre as dificuldades técnicas de se limpar o Tietê).
Ampliar a quantidade de esgoto tratado e conscientizar os paulistanos de que a sujeira irresponsável reverte contra o rio e contra a própria cidade, não bastam. Falta, por parte das autoridades, perceber que o problema não se reduz apenas a reformas ambientais. Mais pungente e mais grave, o Tietê poluído acarreta prejuízos no âmbito social.
Antes da mobilização pública, no entanto, os maus tratos eram impunes e muitas vezes certas ações não tinham análise prévia sobre os efeitos do impacto ambiental. No começo do século, a fim de fomentar o desenvolvimento industrial de Cubatão, foi criado um prodígio da engenharia. Para garantir energia hidroelétrica necessária a mover as máquinas na Baixada Santista, por meio de um sistema de bombeamento, inverteram o curso do rio Pinheiros, afluente do Tietê e que lá desembocava suas águas. Criaram a usina Henry Borden no topo da serra, acondicionando a água do Pinheiros no que hoje é a represa Billings.
Dragada com toda a sujeira do Tietê, as águas que alimentam o pólo petroquímico de Cubatão servem também para municionar a cidade de São Paulo. A represa Billings é, de fato, um dos vários mananciais que nos abastecem de água potável. O contra-senso está patente. Se na época, a construção de tão intrincada e poderosa usina foi comemorada, hoje, o projeto não seria aprovado. Além de ter sido implementado em região imprópria (mas esta é outra discussão), o pólo industrial de Cubatão sobrevive à custa da improbidade da Billings, comprometendo a saúde de toda a cidade.
Como se vê, a limpeza do Tietê apenas tangencia os aspectos estéticos. Os efeitos realmente danosos decorrem de fatores indiretos. Alguns são claros e previsíveis como as enchentes e o mau cheiro, outros são latentes e invisíveis, como o caso de doenças derivadas provocadas pela mesma enchente e pela mesma sujeira.
Por trás da degradação do rio símbolo de São Paulo desponta um prejuízo enorme para o erário. Calcular esse valor depende de muitos fatores relacionados à política de saneamento básico que, enfim, vincula-se intimamente com a poluição do Tietê. Não há precisão quanto ao montante que a cidade perde, mas, por meio de alguns exemplos, é possível avaliar o potencial da perda.
Nas áreas de saúde e turismo torna-se mais sensível a influência negativa do rio. Mas, infelizmente, não existe nenhum projeto oficial (nem da Secretaria Municipal de Turismo, nem da Estadual) para utilização do rio como fonte de lazer (quando este estiver habilitado, claro). No tocante à saúde, o coordenador do Núcleo União Pró Tietê, Samuel Barreto, permite-se realizar uma digressão. Ele infere: "Considerando que quase 80% das internações hospitalares são provocadas por doenças de veiculação hídrica e que, no ano passado, foram gastos na cidade R$ 2 bilhões com esse tipo de internação, o problema atinge níveis absurdos, já que a condição do Tietê influi no saneamento como um todo".
Porém, é o gerente do Departamento de Recursos Hídricos da Cetesb, Geraldo Amaral Filho, que apresenta o exemplo mais inesperado para ilustrar os prejuízos que assolam a cidade devido à poluição do Tietê. "Nas condições que está, o rio sofre um processo de decomposição anaeróbica, já que ele está totalmente desprovido de oxigênio. Uma das características desse estado é o mau cheiro devido à emissão de gases, principalmente, o sulfídrico".
A natureza, da mesma forma que foi madrasta em levar o Tietê para longe do mar, é perniciosa também com as estruturas metálicas próximas ao rio. O gás sulfídrico que provoca o terrível odor de ovo podre oxida os metais e carcome a fiação elétrica e telefônica dos arredores. O engenheiro conclui: "A população que mora perto do rio tem um gasto maior com a manutenção do patrimônio". Embora a quantificação do prejuízo seja imprecisa, o Tietê limpo significaria, sem dúvida, a conta de luz um pouquinho mais folgada.
A emissão do gás malcheiroso é apenas uma pequena faceta do imenso imbróglio em que transformaram o rio. E, mesmo se bem sucedidas as políticas despoluentes, a ação degradante perpetrada pelo homem ao longo dos anos nunca vai ser sanada. Mas, apesar da desesperança fatídica, é preciso dar ao rio o respeito que ele merece. Pois só assim a cidade recobrará a dignidade perdida já há algum tempo.
Meditação Sobre o Rio Tietê
É noite. E tudo é noite. Debaixo do arco admirável.
Da fonte das bandeiras o rio murmura num banzeiro de água
pesada e oleosa
"...De repente
O óleo das águas recolhe em cheio luzes trêmulas. É um susto.
E num momento o rio esplende em luzes inumeráveis, lares, palácios e ruas.
Ruas, ruas, por onde os dinossauros caxingam
Agora, arranha-céus valentes donde saltam
Os bichos blau e os punidores gatos verdes,
Em cânticos, em prazeres, em trabalhos e fábricas,
Luzes e glória. É a cidade... É a emaranhada forma
Humana corrupta da vida que muge e se aplaude.
E se acalma e se falsifica e se esconde. E se deslumbra.
Mas é um momento só. Logo o rio escurece de novo,
Está negro. As águas oleosas e pesadas se aplacam,
Num gemido.
Meu rio, meu Tietê, onde me levas?
Sarcástico rio que contradizes o curso das águas
E te afastas do mar e te adentras na terra dos homens,
Onde queres me levar?
Rio que fazes terra, húmus da terra, bichos da terra,
Me induzindo com tua insistência turrona paulista...
Para as tempestades humanas da vida, rio, meu rio!...
Estas águas do meu Tietê são abjetas e barrentas,
Dão febre, dão morte decerto, e dão graças e antíteses.
A culpa é tua Pai Tietê. A culpa é tua
Se as tuas águas estão podres de fel
E a majestade falsa?
E a majestade falsa? A culpa é tua.
Onde estão os amigos? onde estão os inimigos?
Onde estão os pardais? e os teus estudiosos
e sábio, e
Os iletrados?
Onde o teu povo?...
Mário de Andrade – 1944