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Ficção
In Memoriam
Nossa avó era uma santa viva que venerávamos, posta sempre no nicho de sua cadeira de balanço. Ela gostava de ficar na sala ou na varanda, redobrava-se de alegre no jardim a degustar o sol da manhã. Contávamos as semanas que faltavam para o seu centenário. Seria uma grande festa que faríamos para ela e por nós. Sua longevidade era um atestado contra o medo do futuro que nos espreitava.
A avó nos alcançava com seus olhinhos apertados, por baixo dos óculos. Reconhecia-nos sempre e nos tratava cada qual pelo nome certo. Esquecia de fatos recentes, mas lembrava de datas e cenas mais que pretéritas.
Sua história era uma lenda, que sempre a ouvimos em casa. Tudo sem os demais detalhes, só os fatos maiores, que ela era muito reservada. Nunca se ouviu de seus lábios a cor de nenhuma mágoa. Sabíamos que se casara muito jovem. Francisco, eis a quem escolhera amar contra a lógica de sua época, os acertos familiares. Mas o pai, rico fazendeiro, homem rude e severo, era cioso de seus mandos. Entenda-se: o rapaz era um pedreiro, por cujos sorrisos e olhares ela se encantara, ainda menina e já mulher. Contra as ordens paternas, manteve suas juras e enfrentou as tempestades. Eram os anos vinte, aqueles! Sua vida ali ficava impossível, se não se renegasse aos apelos do coração. E o jovem Francisco corria sérios perigos, podendo de repente evaporar do mundo.
Então se acertaram. E a moça fugiu no meio de uma madrugada, em tranqüilas horas de luar e sereno, ao encontro de seu grande amor, enquanto todos em casa dormiam. Foi como se a primavera se prolongasse. Cruzaram estradas e cidades, em busca do lugar ao longe e a salvo, que o velho senhor Cazuza era por tudo de manter suas ordens, quanto mais suas honras. Era um tempo de tais poderes. Ao que parece, a filha deixou de existir para ele e sua fortuna.
Numa cidadezinha dessas, o casal foi ficando. Ambos perdidos no mundo, acharam-se um no outro, para curta vida de alegrias. Nosso avô se pôs a trabalho em obras do município, um mestre na perfeição de suas massas finas e rebocos. Ao final da tarde, ela o recebia com gestos e agrados. E a mesa posta, com muito gosto: café com leite, pão, cuscuz e bolo. Assim sempre: ninguém podia tocar em nada, não sem antes Francisco sentar-se à mesa e provar de tudo, depois do banho com águas que ela mornava.
É hora de contar que tiveram dois filhos. Mas foi uma breve passagem pela ventura. Francisco sofreu um acidente de trabalho, ao cair de um andaime mal composto. Segundo imagino, foi uma noite de lágrimas, num silêncio sem imprecações, a viúva ao lado do morto, com os dois filhos pequenos. Era a vida, de repente mudada, sem qualquer apelo que destraçasse o novo destino. No começo da tarde, o enterro subiu o morro. Ela manteve-se circunspecta, ia-se já para sempre o marido. Não acompanhou o cortejo, não quis tomar parte naquele imprevisto.
Tão jovem, viúva sem família que lhe provesse amparo, cobriu-se de luto por longo tempo. Os donos da obra encontraram um único culpado pelo acidente: o próprio morto. Entretanto, quem armara tão mal aquele andaime? Dias depois, um homem de terno lhe fez visita, trazendo palavras de consolo. Solicitou os documentos do marido, prometendo as devidas providências. Mas, nunca!
Sem um sequer que fosse, a situação ficou para além de péssima. Então, a viúva empregou as mãos sedosas a lavar e a passar roupa para fora. E também fazia bordados, tecia a vida durante horas da noite. Tirava de si o sustento dos filhos. Francisco se tornou lembrança numa foto de parede, até que a figura evolou do papel. O quadro sem mancha em que se adivinhasse alguém retratado, ela o guardou para sempre. Através dele, admirava as feições do marido em sua própria memória.
Viúva por todo o tempo. Cada pretendente era repelido como uma tentação à sua virtude. Era como se tecesse o mito, seu marido estaria em longa viagem por mares ignorados. Ela se entregava ao trabalho sem trégua, de sol a sol. Os filhos lhe ajudavam, a puxarem água em balde da cisterna próxima. Nunca ia a casas onde se festejassem alegrias fáceis. E era uma mulher satisfeita, apesar de viver na risca entre o ganho e as necessidades.
Os filhos, nesse exemplo, ouviam-na falar do pai em que se mirassem.. Eles cresceram sem o receio das labutas. De tanto serem ajudantes, tornaram-se bons lavradores e vaqueiros. Homens feitos, na mira dos anos, tiraram a mãe da tina de ganho, puseram a casa em ordem de melhor morada. Meu pai e meu tio, por esses caminhos e conselhos, até que prosperaram, tornando-se aos poucos mais arranjados na vida. Casaram-se, já quarentães. Assim, meu primo e eu entramos na história. A avó, que nos viu desde nascendo, nos aparou a ambos, e nos fez crescer com seus cuidados. Suas histórias de reinos, fadas e camponesas, eu as reservo para a minha vez de ninar os filhos. Sua voz ainda adoça o avanço da noite, lá no íntimo de minha lembrança, com a melodia da princesa encantada que se transformou em árvore:
Não corte os meus cabelos, Assim nos inventamos, no durante dos anos. Era somar o tempo entre a escola, a colheita e o curral. Ao final da tarde, vovó nos recebia a todos que voltávamos do trabalho, com a mesa composta pelos alimentos de sua tradição. Arrumava tudo com jeito. Só pedia que ninguém ocupasse o assento da cabeceira, solene e vazio, sempre assim reservado. Ninguém falava sobre esse fato, embora cada um olhasse para aquela cadeira vazia, com reverência, acompanhando o seu silêncio saudoso. Até que ela fazia um gesto suave com a cabeça e todos começávamos a refeição.
A vida é mesmo frágil. Eles se foram, primeiro meu pai e depois meu tio, de repente o coração se negando a pulsar no peito. Paulo e eu ficamos homens, herdamos juntos os entrechos da fábula. Anos depois, tivemos de chorar a vez de minha tia, depois a de minha mãe. Vovó, no firme entendimento dessas horas, nos acudiu com o seu amparo e as suas lágrimas.
Mas o tempo se multiplica, subtraindo as forças que nos movem. Agora a avó vivia em sua cadeira de balanço sob cuidados, seu vigor se extinguia lentamente. Contratamos Dona Rosa, a acompanhante que não lhe deixava faltar nada. E era preciso, pois uma avozinha, com quase cem anos de vida, tinha mesmo de ser banhada, vestida, alimentada com ajuda e cuidado. Ela mergulhava em seus cochilos, mas sempre nos acalentava com olhares e sorrisos.
Um dia, nossa avó nos causou surpresa. Repentinamente, tomou-se de todo ânimo. Levantou-se de sua cadeira, primeiro devagar e daí melhor se firmando, e seguiu para a cozinha. Diante de uma Dona Rosa boquiaberta, recusou o apoio do braço estendido. Que a deixassem em paz, pois precisava preparar o jantar. E foi, diante do espanto de todos, que ela retomou seu antigo posto. Sem tomar tino do fato, desistíamos de contrariá-la. Alguma hora e bons minutos, eis que ali estavam na mesa os sabores do passado: café com leite, pão, cuscuz e bolo. De onde vinha aquele vigor repentino, de novo em exercício? Estava ali a mesa composta. E a cadeira vazia na cabeceira.
Tudo preparado, a avó se pôs numa espera sem palavras. Nós nos fomos convencendo de que era preciso reagir, sair daquele torpor, agir com naturalidade diante do seu enorme silêncio. Sabíamos quem ela esperava, mas nos mantivemos discretos no aguardo. Era de bom juízo evitar emoções maiores, ou comoções abusivas para uma avozinha naquela idade. Fizemos um trato por entreolhares: resolvemos agir no normal. Então nos preparamos para atender à mesa e degustar o que ali se oferecia em cores, cheiros e bons vapores. Quando nos preparamos para comer, eis que nossa avó saltou de seu mutismo com quatro palavras na mão:
– Não, esperem seu pai!
Sem entender completamente o que se passava, recolhemo-nos às indagações. Eram os efeitos dos anos que se abatiam sobre vozinha? Mas, como! Se ela estava de pé, e havia preparado suas receitas? Era um algo mais, certamente estava sob o efeito de um sonho. Ela ia à porta, com passos solenes, os olhos se fixavam no portão. Sua tranqüilidade nos deixava ainda mais inquietos. Mais tarde, voltou à sala: duas lágrimas percorriam o seu rosto. Estava muito feliz:
– Francisco vem me buscar.
Esta frase fizemos questão de não entendê-la. O nome do marido soava como uma música azul nos lábios de uma jovem amorosa. Depois de tudo, nossa avó se recolheu ao leito. E descansou. Profundamente. Em tranqüilas horas de luar e sereno, enquanto todos em casa dormíamos.
Aleilton Fonseca é escritor, e autor de Jaú dos Bois e outros contos.
Xô, meus passarinhos,
Vão pousar no outro galho.