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Entrevista
Sócrates
Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira e Oliveira, nascido paraense, fez carreira de sucesso no futebol. Formado em medicina, escolheu o esporte por opção. Era um gênio, ninguém nega, mas abdicava dos treinamentos excessivos e nunca deixou de fumar. Era realmente a imagem de antiatleta.
Extremamente politizado, atuou com fervor nas campanhas de redemocratização do país, até que, finalmente deixou o Corinthians para jogar na Fiorentina, clube italiano. Nesta entrevista, o Doutor Sócrates abre o jogo e fala da importância do esporte saudável e faz uma análise do futebol na atualidade.
O esporte é visto por muitos como um escape para o drama social. Ou seja, a prática esportiva teria o condão de inserir as pessoas em um convívio social mais adequado. Para outros o esporte não tem esse poder. Com qual premissa o senhor concorda?
A situação precária do país conduz à desigualdade social muito grande. Essa desigualdade não tem amparo em programas oficiais. O esporte tem o poder de conduzir os excluídos pelo sistema a uma posição mais favorável. Ou seja, sem dúvida, a prática esportiva exercida com responsabilidade surge como uma excelente alternativa para uma colocação social mais digna. O que resta como problema é a falta de incentivo que o esporte recebe dos governos em geral e as dificuldades que os profissionais da área têm para trabalhar com o esporte em comunidades carentes. Mas, em um país em que o sistema tolhe as oportunidades, o esporte é ainda um dos únicos atalhos para ascensão social e econômica disponível para os mais carentes. E, além do mais, outras questões para o bem-estar social, como a saúde, estão intimamente vinculadas à prática esportiva regular. Se houvesse mais apreço por parte do poder público no incentivo para a prática esportiva, ela seria, sem dúvida, uma maneira de afastar problemas sociais como as drogas, por exemplo.
Mas, algumas iniciativas, mesmo por parte do poder público, não privilegiam a prática esportiva como um fator essencial para gozar uma vida saudável. Algumas escolinhas, por exemplo, são geridas por ex-profissionais preocupados tão somente em passar às crianças a possibilidade de um dia virem a se tornar um Ronaldinho. Ludibriar as crianças com o sonho de ser um profissional bem remunerado é correto?
Como eu disse anteriormente o futebol ainda é um dos raros atalhos para uma criança egressa de uma classe menos favorecida em se afirmar tanto economicamente quanto socialmente. Sendo assim, apesar de aparentemente injusta, esse tipo de escolinha para muitos é a única maneira de ascender. Há, no entanto, um fato novo. Há 20 anos era mais fácil para uma criança pobre crescer por meio do futebol. Isso porque havia várias alternativas para esse garoto ser descoberto pelos grandes clubes. Hoje, com o fim dos campos de várzea, essa projeção torna-se mais difícil. A classe média, que renegava o futebol como profissão, passou a considerá-lo. Na atualidade não é mais depreciativo um garoto rico procurar uma peneira ou uma escolinha e tentar a sorte no futebol. Mas, voltando a sua questão, como o sistema não dá oportunidade ao menino pobre, o futebol, em menor escala lhe dá essa chance. É claro que seria mais proveitoso se essa iniciativa tivesse um vínculo educativo e de inserção social. Mas o que é realizado nesse sentido é muito insignificante. Portanto, não podemos condenar que um garoto pobre sonhe ser um Ronaldinho e tudo aquilo que ele conseguiu.
O senhor foi secretário de esportes de Ribeirão Preto. Como foi vivenciar as dificuldades de colocar em prática uma política de incentivo ao esporte?
Apesar de Ribeirão Preto ser uma cidade rica, a verba disponível pela prefeitura era extremamente precária. A fatia que ia para o esporte, então, não possibilitava qualquer tentativa de implementar uma política razoável para o esporte. Tínhamos para a secretaria menos de 1% do orçamento municipal. Muito pouco mesmo. O cerne do problema está em que o esporte não é prioridade em nenhuma gestão e, portanto, qualquer iniciativa fica limitada pela falta de verba. Em outros países como a Itália, por exemplo, a administração pública é totalmente descentralizada. As cidades são divididas em departamentos e cada um deles tem uma espécie de prefeito local. A comunidade dirige-se diretamente a eles para solucionar os problemas mais urgentes. No caso das práticas esportivas, elas são exercidas em centros integrados de esporte e lazer, onde a comunidade tem por hábito se reunir. Assim, cada distrito controla e cobra o zelo do próprio centro, permitindo a participação do maior número possível de pessoas.
Como o senhor já disse, o esporte, principalmente o futebol, ainda é um dos únicos atalhos para os menos favorecidos ascenderem econômica e socialmente. Como o senhor analisa a atitude demonstrada pelos atletas de alto nível, aqueles que servem como modelo para as crianças que almejam atingir fama e fortuna?
Alguns desses jogadores realmente não têm consciência do que representam. A superexposição na mídia os torna objeto de desejo para uma parcela considerável da população, principalmente, como você bem disse, crianças que sonham com a profissão de jogador. Algumas vezes, a atitude tomada por esse ou aquele jogador não condiz com o nível de responsabilidade que eles detêm. Na verdade, hoje, grande parte dos atletas não se importa com o reflexo que determinada atitude pode ensejar em uma criança, por exemplo. Essa falta de consideração com o público é condenável, porque, como figuras representativas que são deveriam se conscientizar, que realmente exercem forte influência no comportamento do público. Não se pode generalizar, mas às vezes Romário e Ronaldinho, para citar os mais expostos, deveriam pensar melhor antes de praticar certos atos.
E a geração do senhor possuía esse sentido de responsabilidade?
Sem dúvida. Tanto eu, quanto o Zico, Falcão e outros respeitávamos muito mais o público ao evitar atitudes esnobes ou desabonadoras. A verdade é que, na média, mostrávamos muito mais humildade do que os jogadores de hoje. E mais. Éramos muito melhores. O Ronaldinho naquela seleção de 82 não seria titular nunca. Ou seja, o futebol de 20 anos atrás além de ser melhor, respeitava mais o público. Quer um exemplo? Há 20 anos, os jogos do Corinthians eram todos lotados. E hoje? Mesmo nos grandes clássicos não há mais ninguém nos campos.
É verdade. Mas tomando especificamente o seu caso, o senhor também não era sinônimo de um atleta dedicado. Ao contrário, sua imagem sempre foi associada ao anti-atleta que não gostava de treinar, fumava...
Certo, mas eu sempre tive muito claro para mim a divisão da minha vida pública e privada, que eu nunca abri mão de jeito nenhum. Aliás, tinha muitos problemas com a preparação física justamente porque fumava desde cedo. Mas quando fiz minha opção pelo futebol e tornei-me uma figura pública passei a ter muito cuidado com certas atitudes. Por exemplo, nunca fiz propaganda de cigarros ou nunca fiz apologia ao seu uso. Mas, em contrapartida, minha vida particular só dizia respeito a mim. Pelo contrário, eu aproveitei minha condição de figura pública para transmitir idéias progressistas que na época eram cerceadas pela ditadura.
Como foi esse processo?
Quando terminei o curso de medicina, optei por jogar futebol devido a alguns fatores, entre eles o financeiro. Mas, como tive a oportunidade de conviver em um ambiente universitário, adquiri uma grande consciência política. E quando passei a me projetar no esporte, percebi que poderia utilizar minha posição em prol das idéias progressistas que lutavam contra o sistema imposto. Assim, junto com outros jogadores, como o Vladimir e o Casagrande usamos nossa popularidade para divulgar essas idéias. Foi um movimento muito interessante que culminou na campanha das Diretas-Já.
A Democracia Corinthiana na época foi descrito pelos meios acadêmicos como um fenômeno social, pois conseguiu quebrar toda a estrutura do clube, que era, e ainda é muito rígida. Como um grupo de jogadores conseguiu instituí-lo durante o regime militar?
A Democracia Corinthiana começou como uma contingência do próprio futebol. Uma série de maus resultados provocou uma mudança na diretoria e na comissão técnica. Nós nos reunimos com os novos dirigentes que nos perguntaram se tínhamos alguma solução para a crise. E, de fato, nós tínhamos. Foi a partir daí que instauramos esse regime no Corinthians.
Em que consistia exatamente o movimento?
Nós quebramos uma série de condutas inadequadas e transformamos a relação com a diretoria de futebol em algo franco e saudável. Nosso diálogo era totalmente aberto e tínhamos certas liberdades que os jogadores de outros times jamais teriam. Dentre algumas das conquistas estavam a abolição da concentração para os casados e a discussão ampla para resolver os problemas do time. A Democracia foi importante pois vivíamos sob o jugo terrível do sistema vigente e ela foi um movimento que surgiu dentro de uma associação normalmente regida à mão-de-ferro, que é um clube de futebol, e contagiou a torcida. Aliás, os resultados visíveis para a crítica e o público, ou seja, as vitórias em campo, foram acontecendo e nós nos sagramos bi-campeões paulistas em 82 e 83, além de termos feito uma excelente campanha no torneio nacional de 84.
Se foi tão benéfico, por que o movimento ficou restrito ao Corinthians e, exclusivamente, àquele período? Aliás, a personalidade do jogador muitas vezes é caracterizada como alienada.
Basicamente porque os jogadores de futebol são muito corporativos. Ganhando grandes salários, eles se acomodam dentro da estrutura que os sustentam. Eu não vou contra um dirigente que me paga R$ 100 mil por mês e me dá regalias, permite uma série de condutas que escapam do profissionalismo. É por isso que fica essa pecha de alienação. Para o jogador, é muito perigoso assumir certas posições: muitas vezes ele prefere ficar em cima do muro mesmo. É uma defesa. Eu sei que é apenas uma minoria que ganha esse salário imenso. Mas, mesmo os jogadores dos clubes pequenos têm a intenção de subir e chegar a um grande time e, por isso, apesar de estarem em situação desconfortável financeiramente, têm receio de peitar os dirigentes para mudar o status quo. Além disso, quem tem voz na mídia são os jogadores top e como eu disse, não vão se erguer contra o aparato que os mantém lá em cima. Seria anacrônico. Para o zé-ninguém revoltado não haverá nenhum microfone em riste.
A situação de dependência do jogador para o clube e com o empresário decorre da lei do passe. Como o senhor vê a mudança do instituto?
O passe é uma aberração. Torna o jogador de futebol um escravo. Fere inclusive os princípios fundamentais dos Direitos do Homem que diz que o homem é livre para trabalhar onde ele preferir. Com o passe, o destino do jogador fica a critério do dirigente. É um absurdo. Aliás, a lei do passe só foi alterada por um golpe de destino. Um ilustre desconhecido chamado Bosmann, que jogava na Bélgica, resolveu ir até as últimas conseqüências para garantir seus direitos. Tanto é verdade que foi o conselho da Comunidade Européia que tomou à frente da situação e resolveu o problema. Antes do caso Bosmann, o passe era timidamente atacado.
Mas durante a sua carreira, o senhor se submeteu às regras que tanto critica.
Sim, mas eu sempre mantive minhas exigências profissionais para continuar jogando. Nunca cedi, nem sucumbi às pressões de dirigentes. E, além disso, utilizei minha posição para expor os problemas por que passam os jogadores e exprimir minhas posições políticas. Quando senti que era meu momento de parar, parei de jogar com a maior naturalidade.
Assumindo posições tão arrojadas, enfrentando dirigentes, e, como o senhor mesmo disse, o sistema vigente, o senhor já sofreu algum tipo de represália?
Não, nunca. Sempre me respeitaram pelas atitudes e posições.
Nem mesmo durante a Copa do Mundo de 86, quando o senhor afirmou textualmente que o Brasil era favorecido pelas arbitragens?
E não era verdade? O Brasil sempre foi beneficiado pelos árbitros. E isso cumpre uma lógica perfeita. Quem dá os maiores lucros? Claro que são os grandes clubes ou, como é o caso, as grandes seleções. Então, você acha que iam deixar o Brasil de fora da disputa de uma colocação importante na Copa do Mundo? Claro que não. O benefício é realmente acintoso e vai continuar sendo, porque o futebol segue sempre os interesses do mais forte.
O Edmundo é considerado um jogador-problema. Arruma confusão em todos os clubes por que passa e é considerado indisciplinado. A reprovação da conduta de Edmundo é correta? Ou o futebol não tem mais espaço para picardia e provocação? A atitude do atleta seria tolerada na época em que o senhor jogava?
Como eu disse, os jogadores eram muito mais responsáveis antes do que são agora. Do ponto de vista profissional, às vezes realmente o Edmundo extrapola um pouco. Mas, ele só faz isso porque há sempre um dirigente por trás afagando e perdoando se ele faz algo de errado. Hoje em dia, se o futebol está pior é devido a pouca quantidade de jogadores de qualidade. Quem badala os times é a mídia, muito mais presente.
Ainda sobre o exemplo do Edmundo. Ele como o senhor não tiveram uma passagem bem sucedida pelo futebol europeu, coincidentemente no mesmo time, a Fiorentina. A que se deveu seu insucesso?
Não sei quais foram os motivos para o Edmundo abandonar o clube. Minha saída, ao contrário, foi de livre acordo com os dirigentes da Fiorentina. Quando fui contratado, e não apenas eu, outros jogadores que foram para a Europa, não havia muitos jogadores estrangeiros. Éramos uma raridade. Hoje em dia, há muitos jogadores que fazem essa peregrinação. Com a abertura do mercado europeu, com os membros da Comunidade Européia possuindo nacionalidade comum, existem equipes que contam com 15 estrangeiros. Na minha época, não. Fomos os desbravadores. Mas, enfim, a contratação de jogadores de alto nível é um acontecimento na Itália. Eu fui tratado como um Deus. Então, para a torcida, nós não podíamos errar. O raciocínio era o seguinte: forjava-se essa imagem de super-herói e a vendiam para a torcida que meses antes do campeonato bancava o investimento, através da compra de ingressos antecipados, camisas e artigos do time. Então, para a diretoria da Fiorentina, já não importava se jogasse bem ou mal, afinal o investimento já tinha se revertido em lucro. Depois houve o problema de aculturação.
A maneira como o futebol é dirigido contribuiu para seu retorno precoce ao Brasil?
Na época eu queria muito experimentar outro país e outra cultura, mas havia certos procedimentos que eu não queria me ambientar. Um exemplo banal, mas que contribuiu: o uniforme oficial da equipe necessitava de gravata e eu nunca usei gravata na minha vida. Esse tipo de imposição me incomodava e eu simplesmente não quis me dobrar diante da situação. Depois, o time estava dividido em dois grupos. Um não passava a bola para o outro e eu ficava lá, perdido, no meio da briga. E depois, eu nunca deixei de me envolver com questões políticas. Na Itália costumava freqüentar as reuniões do Partido Comunista e a Fiorentina, como a maioria dos clubes, é dominada pela Democracia Cristã. Esse envolvimento meu, por mais brando que tenha sido nunca foi bem visto pelos dirigentes.
O senhor fala muito dos dirigentes. É possível associar a figura do dirigente esportivo aos governantes do país. Ou seja a maneira com que se conduz o futebol é reflexo da situação social do país?
Sempre houve uma forte ligação entre poder, política e futebol. Afinal, ser presidente de clube sempre foi um grande trampolim para atingir cargos importantes na vida pública. E do jeito que se conduziu e ainda se conduz, a administração do futebol sempre deu muito ensejo para que haja corrupção e lavagem de dinheiro. Dessa maneira, o poder e o dinheiro sempre estarão ligados aos dirigentes. Sem dúvida, a situação atual do país não é satisfatória e por aí você pode fazer uma associação com a saúde dos clubes que não anda nada boa.