Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

PS
Estamos longe, mas falta pouco...

Jesus Vazquez Pereira

Moradores, visitantes e turistas, todos queremos uma São Paulo ideal. Sonhamos recriar uma sociedade ideal, com uma utopia urbanística e sociológica, com uma vida social sem incômodos e sem tensões. Sem carros, sem poluição, sem violência, sem miséria. Uma cidade na qual poderíamos passar nossas férias, sem necessidade de sair. Onde o diálogo com a natureza seria quase tão espontâneo como se estivéssemos em plena Serra do Mar. O extraordinário é que isso, aqui em São Paulo, é mais factível que em qualquer parte do mundo. Nossa localização no globo é privilegiada. Estamos longe, mas falta muito pouco para chegarmos lá.

Antes de mais nada, e como atitude primordial, devemos nos esquecer de Londres, Paris, Montreal, Nova York, Los Angeles etc. e aceitar, desde já, nosso estilo de vida, cosmopolita desde suas origens e raízes como nenhum outro, mais projetado para o futuro que ancorado em lembranças do passado. A partir dessa flutuante identidade, autoconstruir-nos, autodesenvolver-nos. Até porque a probabilidade de algum dia chegarmos a nos parecer com uma dessas cidades é muito remota - quer olhemos para o passado, quer caminhemos para a frente, não sabemos em que tipo de cidade desembocaremos.

De qualquer maneira, o mito da cidade como local de reunião, de contato social, de ponto de encontro, está moribundo. O homem continua sendo social, gregário, mas só quando protegido em pequenos grupos, em espaços restritos, privados, semiprivados ou semipúblicos. Na massa, em espaços públicos, reclui-se, individualiza-se. Isto não quer dizer que o homem da cidade não precise mais de espaços públicos, que lhe bastem os privados, os exclusivos. A rede de ruas, calçadas, praças, largos e parques convertem a cidade em uma estrutura transitável e habitável, ligando os diversos locais de moradia, de comércio, de trabalho e de lazer, mantendo a cidade contínua e acessível.

Por isso continuamos sonhando com uma São Paulo de ruas e calçadas bem cuidadas. Com o chão por onde caminhamos desimpedido de postes, de bancas de jornal - hoje lojas de conveniência -, de lixeiras, de lixo, de jardineiras sem árvores, de bunkers da Telesp e de todos os serviços ditos públicos que, uma vez privatizados e lucrativos, queremos ver recolhidos aos limites do espaço da propriedade privada. Queremos ver o maior estacionamento ao ar livre do mundo, hoje propriedade da prefeitura - a Zona Azul com seus marronzinhos -, submerso nas entranhas da terra e entregue à autêntica iniciativa privada. Queremos contemplar a abóboda do céu como uma visão límpida, com nuvens azuis, sem a parafernália de transformadores, estabilizadores, conectores, fios de eletricidade, de telefone, de tevê e admirar o milagre da iniciativa privada, enterrá-los e escondê-los no subsolo. Sonhamos com praças e largos ostentando obras de arte pública, pontos focais e referenciais urbanos, afirmativos testemunhos da sensibilidade estética e cidadã da próspera economia privatizada.

Imaginamos os cemitérios da cidade convertidos em parques, duplicando a área verde de São Paulo. Os proprietários terão doado seus jazigos, como quem doa um órgão do corpo, para a sobrevivência da comunidade, levando-os para paragens mais bucólicas e apropriadas à paz dos mortos. Os parques, eliminadas as grades, serão incondicionalmente abertos à população durante as vinte e quatro horas do dia. Serão entregues, única e exclusivamente, ao público e a dedicados jardineiros, os quais, zelosamente, eliminarão todos os espaços íntimos, nichos de perigo - praças internas, pequenas áreas de convivência e outros caprichos dos paisagistas.

Para desentupir a cidade do excedente humano - que tanto perturba os adoradores de Paris e de outras metrópoles -, a iniciativa privada, como nos idos dos anos quarenta, cria fundações, institutos e outras entidades filantrópicas, direcionando para elas os vultosos recursos dos lucros excedentes, da publicidade e do mecenato. Passa a implementar o pleno emprego da população ativa e da inativa, como a dos aposentados. A educação e a saúde são assumidas pelas empresas, pelos quartéis, pelas igrejas, pelos sindicatos, pelos partidos políticos, hospitais e médicos, e até pelo Governo.

Isto é um sonho realizável para os primeiros anos do terceiro milênio, se todos acreditarem nele.

Jesus Vazquez Pereira é sociólogo e Superintendente Técnico-Social do Sesc.