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A lei
Raquel Rolnik
A história das cidades é marcada por eventos especiais ou corriqueiros que agem sobre a imensa inércia dos edifícios e das tradições. Mas, embora pouco eloquente, nelas está presente, também, invisível e silenciosa, uma teia poderosa: a legalidade urbana, ou seja, o conjunto de leis, decretos e normas urbanísticas e de construção que regulam a produção do espaço da cidade.
Mais além do que definir formas de apropriação do espaço permitidas ou proibidas, mais do que efetivamente regular a produção da cidade, a legislação urbana age como marco delimitador de fronteiras de poder. A lei organiza, classifica e coleciona os territórios urbanos, conferindo-lhes significados e gerando noções de civilidade e cidadania diretamente correspondentes ao modo de vida e à micropolítica familiar dos grupos que estiveram mais envolvidos em sua formulação. Funciona, portanto, como referente cultural fortíssimo na cidade, mesmo quando não é capaz de determinar sua forma final.
Aí reside talvez um dos aspectos mais interessantes da lei: aparentemente ela funciona como uma espécie de molde da cidade ideal ou desejável. Entretanto, e isto é poderosamente verdadeiro para o caso de São Paulo e provavelmente para a maior parte das cidades latino-americanas, ela determina apenas a menor parte do espaço construído, uma vez que o produto cidade não é fruto da aplicação inerte do próprio modelo contido na lei, mas da relação que esta estabelece com as formas concretas de produção imobiliária na cidade. Porém, ao definir formas permitidas e proibidas, definem-se territórios dentro e fora da lei, ou seja, configuram-se regiões de plena cidadania e regiões de cidadania limitada. Este fato tem implicações políticas óbvias, pois, além de demarcar as fronteiras da cidadania, há um importante mecanismo de mídia cultural implicado, na medida em que as normas urbanísticas funcionem exatamente como um modelo puro. Com isto queremos dizer que mesmo quando a lei não opera no sentido de determinar a forma da cidade, como é o caso de nossas cidades de maiorias irregulares ou clandestinas, é aí onde é mais poderosa no sentido de relacionar diferenças culturais a sistemas hierárquicos.
Se são muitos os modos de ser e viver e uma a lei, qual seria a forma mais justa ou perfeita? A resposta não deve ser buscada na definição técnica mais ou menos competente de um modelo, mas sim no modo de elaboração da lei ou norma. Esta será tanto mais transformadora no sentido de superar problemas e desafios presentes quanto for capaz de penetrar nas formas reais de produção e uso da cidade. Como a realidade urbana é múltipla, conflituosa e contraditória, a disponibilidade e abertura para negociar com as diferentes posições presentes no conflito é fundamental para assegurar uma força de adesão em diferentes direções. Assim, não é a lei, em seu conteúdo programático, que educa e ensina e sim a forma democrática de elaborá-la.
Raquel Rolnik é urbanista, foi diretora de planejamento da cidade de São Paulo de 1989 a 1992, e autora do livro A Cidade e a Lei (Studio Nobel, 1997)
Roberto Romano
Outro dia, eu atravessava a rua dos Pinheiros, seguindo pela faixa de pedestres. No cruzamento, não havia farol de trânsito. Quase fui atropelado. Dirigindo-me ao motorista do vistoso BMW, ouvi o seguinte: "O senhor acha que o certo é eu parar para que o senhor continue?". Respondi que sim, "caso estivéssemos numa sociedade, na qual regras civis existissem". O motorista riu muito e partiu, célere, enviando-me um sinal pornográfico. Há uma cultura no Brasil, desde o governo de Juscelino, que afirma a superioridade absoluta do feliz proprietário de um veículo sobre a pessoa desprovida da máquina. Cultura genocida. O pressuposto da vida social é a segurança de todos e de cada indivíduo. Se um grupo se arroga o direito de matar impunemente, não vivemos mais em sociedade: existimos numa selva onde impera a lei do mais forte. Nesse caso, o sujeito que ultrapassa sinais vermelhos, dirige embriagado ou com a cabeça cheia de cocaína, nada tem a reclamar se, numa esquina, um bandido igual a ele, usando outra máquina (o revólver), lhe arranca o estiloso Rolex e as correntes de ouro. Sociedade injusta é a que pune um crime, deixando outros sem castigo, dada a riqueza, a fama, a importância política de quem os comete. É um preconceito positivista a idéia, arraigada nas consciências antidemocráticas do Brasil, de que uma lei nada significa, que ela é impotente para mudar atitudes sociais. Pelo contrário! Não é por outro motivo que, na Grécia antiga, a lei era mostrada ao cidadãos, em grandes letras, no lugar mais visível. Ninguém pode alegar ignorância das leis. Quem deseja viver sem elas, deve correr para o mato, colocar-se sobre as quatro patas, retornar à condição de besta fera. Leis, se aplicadas, educam e modificam os hábitos coletivos. Quando as primeiras condenações surgirem para os que, achando "natural" correr a 170 quilômetros pelas estradas paulistas (como a rodovia dos Bandeirantes), matarem famílias inteiras, o temor, inicialmente, e depois o entendimento modificarão este procedimento. Multas e penas severas para quem despreza a vida! Contra a inconsciência e o privilégio, que venha o medo! Este é o início do processo civilizador. O final é o diálogo entre seres racionais. Quem não respeita a existência humana, deve se curvar ao castigo. Uma pedagogia "boazinha", nas ruas e rodovias, é apenas conivência com o genocídio. Caso as autoridades não se dobrem às pressões dos boçais da classe média e rica, e dos fabricantes de carros que incentivam o desregramento no trânsito, o Brasil deixará de ser o campeão mundial de mortes por veículos. Dentro em breve, proprietários dos Audi e da Brasílias amarelas, sem distinção de riqueza, saberão que "o certo" é o carro parar na faixa de pedestres. É claro: os transeuntes devem obedecer a sinalização, devem mesmo ser forçados a isso. Em dez anos, quem viver verá um trânsito caótico, certo, mas não assassino.
Roberto Romano é filósofo e professor titular de Ética e Filosofia Política na Unicamp
Alaôr Caffé Alves
A recente publicação do Código de Trânsito sugere que se faça uma indagação ou uma reflexão a respeito do caráter pedagógico do sistema normativo. As normas jurídicas, elementos básicos de qualquer sistema prescritivo positivado pelo Estado, têm características próprias que as distinguem de outras normas que perfazem outros sistemas, como por exemplo os sistemas morais, religiosos, do trato social etc. Uma dessas características é a possibilidade de sua imposição forçada àqueles que infringem seu conteúdo, aplicando-se-lhes sanções que podem ser de diferentes naturezas. De modo geral, pode-se considerar que as normas jurídicas não têm por função descrever ou explicar o mundo ou as condutas dos seres humanos, pois sua função é primordialmente imperativa ou prescritiva, determinando às pessoas a que se dirigem o que devem ou não fazer, o que podem ou não fazer, o que lhe é facultativo ou não fazer . Por isso, elas não podem ser verdadeiras ou falsas, mas justas ou injustas, convenientes ou não.
Como são imperativas, elas se referem primordialmente ao que "devemos fazer" e não ao que de fato fazemos. É evidente que o fato de fazermos ou não algo interessa ao mundo normativo na medida em que permite o julgamento dessa ação ou omissão em comparação com o conteúdo da norma, qualificando-a como cumprida ou descumprida. Se for cumprida, não será acionada a sanção nela prevista. Tão só pelo cumprimento dela, a conduta será considerada "justa", porque adequada ao conteúdo previsto na norma. Aqui, certamente, é indiferente se a conduta é justa apenas porque adequada à norma positivada pelo Estado ou se é justa porque atende aos valores éticos da sociedade. Há em jogo dois tipos de justiça, não se pode retratar a questão do ponto de vista da aplicação formal e fria da norma. Porém, isso implica ação interpretativa mais solerte e um razoável grau de compreensão dos aplicadores.
Por outro lado, se não é tarefa da norma jurídica explicar ou descrever a conduta, será admissível entendê-la apropriada para a formação ética ou como fator de educação dos cidadãos? Terá a norma jurídica uma função pedagógica, a par das prescrições ou imposições sobre as condutas do homem em sociedade? Ela não tem a função de ensinar ou esclarecer também? Pelo que foi exposto, podemos dizer que ela não ensina sobre o mundo ou esclarece os fatos da conduta, como fazem as ciências, mas esclarece ou ensina sobre como "devemos" nos conduzir. Ela tem, pois, o objetivo de dirigir o comportamento social dos homens, dentro de parâmetros previamente positivados. Nesse sentido, dessa questão passa-se à indagação de como são educados e como são educáveis os homens: pelo medo, pelo condicionamento progressivo, pelo esclarecimento racional? De qualquer forma, parece não estar em jogo apenas a razão, mas sim a vontade, o querer. Isto significa que a educação é disciplina não apenas do pensamento ou da razão, mas principalmente da vontade, das impulsões e das inclinações.
Eis aí questões que atormentam os filósofos desde os tempos clássicos dos gregos. Nós agimos bem por que sabemos racionalmente sobre as coisas, por que temos receio do castigo ou por que criamos o hábito de agir bem? Platão diz que ninguém age mal voluntariamente. Quem sabe das origens de seus atos e das consequências deles sobre os outros, e se age de acordo com a razão, não erra. É evidente que, ao se aceitar essa tese, basta o conhecimento racional do mundo e da sociedade para se obter boas ações das pessoas. Uma pessoa bem educada ou bem formada não pecaria, não cometeria infrações, ou, pelo menos, o faria em menor frequência. Parece, entretanto, que o mundo social não apresenta essas consequências de forma linear. Vemos pessoas de bons conhecimentos sobre o mundo e que, no entanto, são as maiores pecadoras. Veja, por exemplo, o ex-presidente Collor.
No que respeita às normas de trânsito que foram editadas recentemente, pode-se incluir a idéia de que a vontade nem sempre segue a razão, visto que ela está disposta segundo a ordem dos interesses e não segundo a da pura lógica. As circunstâncias e situações nem sempre são amplamente ponderadas para o equilíbrio racional destinado a bloquear ou a contornar as impulsões da pressa, da conveniência pessoal, da imprudência, da falta de cortesia, da distração, do desejo por bebidas alcoólicas, da imperícia etc. Como fazer? Não basta o esclarecimento sobre os fatos; não basta a prática do conhecimento e da razão teórica.
Em razão dos péssimos antecedentes que temos em nossa vida comunitária, torna-se necessário, à boa parte da população envolvida, o exercício da imposição forçada, condicionante de hábitos mais adequados para dirigir no trânsito e para a educação de pedestres. Neste sentido, a fórmula mais apropriada e rápida à consecução de bons comportamentos no trânsito é a aplicação jurídico-normativa, até que se introjete na consciência o hábito de dirigir com cautela. A virtude está na incorporação de bons hábitos, e não apenas na compreensão lógica dos fatos, dizia Aristóteles. O inculcar bons hábitos nem sempre prescinde da imposição forçada, especialmente quando se tem hábitos contrários e arraigados. E é pelos bons hábitos que assumiremos as regras de conduta, de sorte a compor os interesses das milhares de pessoas que se encontram nas mesmas vias de trânsito. E isto é legítimo, porque essas vias são o lugar de fluidas e intensas manobras e veículos que representam verdadeiras armas contra o cidadão comum.
Pode-se dizer que a autoridade que aprovou o Código, em que pesem os abusos conceituais e normativos nele contidos, tem legitimidade reconhecida para aquela edição normativa. Entretanto, o que mais nos atormenta é a autoridade aplicadora das normas, o guarda da esquina que, geralmente, não está treinado adequadamente para a ponderação equilibrada ou justa das situações concretas, pois estas também exigem, não a empáfia do poder despreparado e insensível, mas hábitos bons e justos de julgamento aplicativo. Em última instância, é Aristóteles quem nos dá o caminho mais adequado para compreender e orientar a prática do trânsito no Brasil.
Alaôr Caffé Alves é professor de Lógica Jurídica na Faculdade de Direito da USP
José Emmanuel Burle Filho
O nosso país viveu longo período revolucionário, situação que obstou naqueles anos a vivência da democracia, essencial para a formação da chamada cultura democrática. Por isso, é até normal constatar-se a falta de educação das pessoas e de diversos segmentos sociais para o cumprimento das leis ou para os limites da ação de cada um frente aos direitos e interesses de outros, decorrentes das normas jurídicas. Essa educação advém do exercício da democracia. Deve estar de tal modo enraizada nas pessoas e naqueles segmentos sociais a ponto de levá-las ao cumprimento das normas jurídicas de forma automática e permanente. Somente essa cultura será apta para nortear a conduta individual de cada cidadão, quer em relação ao exercício e defesa de seus direitos quer no tocante ao respeito dos direitos dos outros. Essa falta de educação cívica e democrática faz com que muitos não saibam que a chamada liberdade no regime democrático não se confunde com licença para abusos coletivos ou individuais.
Pelas mesmas razões, no âmbito da administração pública ainda se constata a falta de uma educação democrática, em especial no pertinente ao chamado princípio da legalidade. Este, como sabem os publicistas, se de um lado significa que a administração pública só pode fazer aquilo que a ordem jurídica autoriza, de outro impõe-lhe o dever de fazer o que a lei lhe autoriza, daí surgindo a locução "poder-dever". A falta de conscientização, por parte do agente público, em especial no âmbito do poder de polícia, desse aspecto bifronte da atuação administrativa, faz com que a lei não seja cumprida totalmente ou regularmente. Tal fato gera duplo efeito negativo: a) leva aqueles que a cumprem regularmente a uma forte tendência para o descumprimento futuro; b) retarda a educação democrática daquelas pessoas ainda não devidamente conscientizadas sobre a necessidade de exercer a liberdade nos limites e na forma previstos pela lei. Leva a frases como esta, ouvida em estabelecimento comercial: "No Brasil, desrespeitar as leis, não parece desrespeitar a norma, mas sim exercer um privilégio."
Exemplo marcante desta última colocação é a chamada poluição sonora causada pelos veículos. Quem se detiver em São Paulo, Campinas, Santos ou outra grande cidade, no barulho causado por grande número de carros, caminhões e em especial motocicletas, constatará que os ruídos estão acima do normal ou do razoável, ou seja, acima dos limites estabelecidos pela lei. Constatará, outrossim, que nenhum policial militar ou outro agente público pratica qualquer ato tendente a punir o condutor. Dessa forma, omite-se a administração pública a respeito, não exercendo o seu chamado "poder-dever". Resultado: o desrespeito à lei aumenta e como consequência temos o aumento da poluição sonora.Neste aspecto, como em muitos, a conscientização só poderá ocorrer com a educação escolar, a longo prazo, e por meio de campanhas publicitárias, a médio prazo.
A curto prazo, a única solução é a observância do exato cumprimento da lei, punindo-se aquele que não a respeitar. Queiramos ou não, a única forma rápida para o exato cumprimento da lei e uma célere conscientização quanto a esse dever cívico é a sanção administrativa. A lei, por si só, inclusive pela intimidação, pode educar, porém se a educação não ocorre, o caminho mais eficaz é a punição efetiva, concreta. Aliás, as recentes notícias sobre o novo Código Nacional de Trânsito demonstram que os motoristas começam a observar as suas regras, inclusive aquelas que, por sinal, curiosamente, já existiam de forma igual ou semelhante, no código anterior. E por que assim agem? Simplesmente porque, no novo Código, as punições são severas e o poder público tem demonstrado que vai aplicar as sanções cabíveis. No pertinente àquelas já existentes, além de as penas serem mais elevadas, é certo que há casos em que estão sendo divulgadas como novas, levando o motorista que as desconheciam a acreditar que são novas e que precisam ser cumpridas. Isso demonstra, como já afirmado, que a punição administrativa é um instrumento vital para a educação do exercício da liberdade por parte de cada um na vida em democracia. Para tanto, dentre outros caminhos, é mister que a autoridade administrativa não seja tímida no exercício de seu "poder-dever". Sem cometer, obviamente, abusos, porque estes também não são tolerados pela democracia e devem ser punidos, na forma da lei.
Cabe, neste ponto, advertência relevante. As pessoas precisam saber que no moderno conceito de Estado de Direito, liberdade é a situação em que os homens estão subordinados a regras legais de cuja elaboração participaram a para cuja reforma mostrem-se aptos a contribuir, mediante a eleição de seus governantes, isto é, do presidente da República, dos governadores e dos prefeitos municipais, e de seus legisladores, ou seja, dos senadores, dos deputados federais e estaduais e dos vereadores, daí a importância do VOTO que é a unidade participativa mínima do aludido "poder-dever", agora de cada cidadão.
José Emmanuel Burle Filho é advogado e professor de Direito Administrativo
Carlos Figueiredo
Certa noite, em Amsterdã, estava andando de bicicleta quando veio um carro de polícia e me mandou parar. Tinha acabado de chegar do Brasil, então em plena ditadura e, traumatizado pela repressão, quase entrei em pânico. O policial disse que não era permitido andar de bicicleta, à noite, sem lanterna traseira. Apenas consegui balançar a cabeça, submissamente. Qual não foi minha surpresa ao ver que, sem mais, eles foram embora. Fiquei paralisado, sem entender direito porque não me trataram como um suspeito, pedindo documentos, fazendo uma revista, me intimando com um interrogatório. Nem sequer fizeram menção de apreender o veículo. Esperei um pouco, vi que eles tinham sumido, montei de novo e corri para casa. Ao chegar, contei a um holandês o episódio. Sua resposta: "Eles esperavam que, uma vez alertado sobre a falta de lanterna, simplesmente você fosse empurrando a bicicleta. Se topassem de novo com você, pedalando, aí ia ser um problema". Me senti humilhado. Havia sido tratado com respeito, como um cidadão e traíra isso. Trazia em mim, invisível, uma marca, como uma cicatriz do açoite na costa do escravo, produto do desrespeito histórico, absoluto e universal da nossa sociedade de pessoas, da completa ausência da noção de cidadania. Guimarães Rosa sintetiza isso, quando diz que aqui "Deus mesmo, se vier, que venha armado".
Talvez faça parte da nossa natureza, "ser brasileiro", aceitar a existência do descompasso entre o mundo real em que se dá a luta pela sobrevivência e o mundo postiço, "para inglês ver", objeto das leis. Não há nenhum outro país com uma economia tão importante como a nossa, entre as sete maiores do mundo, que em um par de anos será o quarto produtor mundial de automóveis, reconhecidamente um global trader, ou seja, um país que tem relações comerciais com todo o globo, tão atrozmente provinciano, ao ponto de haver um juiz que tenha o desplante de declarar que certas pessoas não devem ser submetidas ao constrangimento de ir à uma delegacia de polícia prestar depoimento porque são "pessoas importantes"! - nem mesmo no processo em que são acusadas, com provas substanciais, do mais vil de todos os crimes, aquele que de fato deveria ser considerado o crime hediondo, de terem roubado o dinheiro do Estado, ou seja, o dinheiro do povo, desse povo que vive na mais negra miséria!Acho que a deseducação desse amazonas de acintes à cidadania a que somos submetidos cotidianamente cria em todos nós uma espécie de segunda natureza. Perdida a relação com a questão central da dignidade humana, desenvolvemos, como estratégia de sobrevivência, um conjunto de subterfúgios que nos faz transferir a outros, o "primeiro mundo", a condição de pensar não apenas como brasileiros mas como seres humanos.
Carlos Figueiredo é escritor e publicitário
Liliana de Fiori Pereira de Mello
Na época da Internet, telefone celular, economia globalizada, show do U2, baixa inflação, requinte dos carros importados, você só se lembra do novo Código de Trânsito no momento em que pega seu carrinho e toma conhecimento dos valores das multas e dos pontos que irão para o seu prontuário, em caso de infração.
Todo bom brasileiro reclamava de uma legislação mais enérgica e adequada para o trânsito no Brasil, e desta vez ela chegou, e em vigor desde 23 de janeiro de 1998. E, como tudo neste país, sem infra-estrutura suficiente para ser implantada de um dia para o outro, como anteriormente criticado pela imprensa oficial.
A iniciação desse novo processo de educação deveria ter sido amplamente divulgada pelos órgãos competentes, antes de sua entrada em vigor, com a finalidade de alertar o motorista para que ele pudesse adaptar-se ao novo conceito. E, a partir daí cometer menos erros, e até mesmo alegar ignorância da lei.
O brasileiro, de maneira geral, está acostumado a reivindicar direitos, mas se esquece do cumprimento dos deveres. O novo Código prevê mecanismos para pôr fim a essa espécie de contracultura ao estabelecer regras para pedestres, na utilização dos passeios ou passagens apropriadas das vias urbanas (art. 69).
Estabelece também regras pragmáticas que permitem ao cidadão participar do cumprimento das metas do Sistema Nacional de Trânsito, fazendo com que apresente sugestões para o seu alcance.
A educação para o trânsito a que se refere o Capítulo VI passou a ser prioridade pela nova lei. É direito de todos os cidadãos e constitui dever para os componentes do Sistema Nacional de Trânsito.A grande novidade que deve ser salientada é o dever do Ministério da Educação e do Desporto de promover a adoção de um currículo interdisciplinar com conteúdo sobre segurança no trânsito, em todos os níveis de ensino (art. 76).
Ainda no âmbito da educação caberá ao Ministério da Saúde estabelecer campanha nacional, esclarecendo condutas a serem seguidas nos primeiros socorros, em caso de acidente (art. 77).
Mas, a maior novidade do novo diploma legal diz respeito aos "Crimes de Trânsito" a que se refere o Capítulo XIX.
Isto porque institui as figuras típicas próprias dos crimes de trânsito, em virtude do que o Código Penal, o Código de Processo Penal e as Leis dos Juizados Especiais Criminais só serão aplicáveis se esse capítulo não dispuser de modo diverso e apenas no que couber, isto é, aplicação subsidiária.
São considerados crimes em espécie:
- dirigir sem habilitação, que deixa de ser contravenção penal, passando a crime com aplicação de pena mais severa;
- embriaguez ao volante, pena prevista no Código que pode ainda ser cumulada com a interdição de direitos;
- entrega da direção a pessoa não habilitada ou sem condições físicas ou mentais para dirigir, cuja penalidade é a mesma para a direção sem habilitação;
- praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor. Preferiu o legislador, em vez de acrescentar parágrafos ou incisos ao art. 121 do Código Penal, descrever o homicídio culposo quando derivado de acidente de trânsito como crime especial.
Importante salientar o duplo incentivo que o novo Código estabelece para aqueles que prestarem pronto e integral socorro à viítima, ao prever que não imporá prisão em flagrante, nem exigirá fiança.E, ainda a evolução no que tange à responsabilidade dos entes de direito público e à proteção ao meio ambiente, em razão de danos causados aos cidadãos, em virtude de ação, omissão ou erro na execução e manutenção de programas, e ao dar prioridade em suas ações à defesa da vida, nela incluída a preservação da saúde e do meio ambiente.
E a multa com seus significativos valores já provou no mundo inteiro ser de extrema eficácia, pois dói no "bolso", a parte mais sensível do corpo humano.
A forma de instituição do tipo infracional e a imediata classificação seguida da penalidade e eventual medida administrativa facilitou o manuseio do novo diploma legal, dispensando o uso da tabela nos moldes do Código anterior.
Muitos outros aspectos importantes poderiam ser abordados, mas o tempo fará com que eles emerjam.Vamos agora nos imbuir de prudência e responsabilidade dobradas.
Só poderemos julgar a eficácia das autoridades após alguns meses da implantação do novo diploma, salientando, porém, desde já estarem arrecadando valores também significativos com o uso indevido dos celulares.
E o que farão com as velhas "Brasílias" ? As velhas Brasílias, que circulam pelas estradas do nosso Brasil, sem condições de segurança e de atender ao novo Código?
No entanto, sua observação está imposta, e com certeza só trará benefícios, se for respeitada pela população, que deverá se conscientizar dessa necessidade para não se tornar mais uma norma em desuso ou para favorecimento de propinas.
Deverá ser seguido o exemplo de Titanic, filme mais cotado para o Oscar, e que deixou mensagens de aprendizado para o mundo, pois até o inatingível também pode ser atingido, devido à falta de prudência.
Liliana de Fiori Pereira de Mello é advogada do Sesc