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Ficção
A República de Coçação
No dia em que o povo começou a ter coceira, os primeiros a lucrar foram os farmacêuticos e fabricantes de pomadas: nunca fabricaram e venderam tanto, quando ainda nem se pensava que a coceira pudesse ser uma epidemia.
Quando até os apresentadores e repórteres de televisão não conseguiam trabalhar sem se coçar, as autoridades sanitárias resolveram investigar; já eram milhões a se coçar.
Bancários eram os mais atacados, principalmente os caixas, e cobradores de ônibus, comerciantes e comerciários, pipoqueiros e sorveteiros, donos de bar e garçons, bilheteiros de cinema ou loteria, profissões que pareciam fadadas ao novo mal, com tanta coceira que dava desespero só de ver.
O ministro da Saúde deu entrevista coletiva, garantindo que o ministério investigava com rapidez e profundidade, analisando todas as possíveis causas do fenômeno (para evitar a palavra epidemia e não afugentar turistas):
- Podem não ser causas biológicas - e começou a coçar as mãos - Podem ser também causas psicossociais - coçou a cabeça, o queixo - Ou talvez, até decorrência de estresse coletivo, demandando assim uma ampla e dispendiosa pesquisa médico-social, mas o presidente garantiu que serão liberados recursos - já se coçando tanto que os assessores encerraram a entrevista, retiraram-se coçando e toda a nação veria todas aquelas coceiras no noticiário da noite.
As pomadas e unguentos não resolviam nada, davam só algum alívio imediato e, logo, a coceira voltava; os médicos confessavam não saber o que fazer.
Em casa, só eu ainda não peguei, contava alguém no ônibus quase vazio pela primeira vez. Pois em casa, dizia outro, somos em seis e só eu também não peguei. Aí passavam os dois pela roleta, começavam a coçar.
Quando fábricas começaram a fechar, o presidente falou à nação pelas televisões em rede: ficassem tranquilos os cidadãos, aquele mal terrível seria debelado, com a graça de Deus. Pediu paciência, pois bandos já andavam pelas ruas aos berros, gritando e coçando, saqueando, enfrentando as poucas tropas policiais na ativa.
Nas janelas dos apartamentos e das casas surgiam de repente cabeças a urrar, da agonia de viver a se coçar, a pele ficando carne-viva, as unhas a sangrar.
Mas o Governo, disse o presidente, estava trazendo do exterior os maiores médicos, químicos e bacteriologistas, e até um especialista em fenômenos coletivos paranormais...
- ... de modo que, no menor tempo possível, esperamos entender e debelar esse flagelo - o presidente falava em close, apenas em close, e correu o boato que, enquanto falava, assessores lhe coçavam o corpo.
Os cientistas estrangeiros mal chegaram ao hotel, já começaram também a se coçar, e tiveram de carregar a bagagem e fazer as próprias camas, quase todo o pessoal não ia mais trabalhar - para quê? Mal conseguiam comer, não conseguiam dormir, só queriam ter mais dedos para mais se coçar.
Com a paralisação dos aeroportos, depois de acidentes causados pela coçação geral, os cientistas viram que, não podendo mesmo voltar a seus países, era vital para eles mesmos achar uma solução para aquilo.
Na audiência com o ministro da Saúde, viram que o homem já não usava mais roupas, apenas uma grande toalha molhada, como um manto, escorrendo pelo assoalho empoeirado. Os palácios do Governo também iam se esvaziando, enquanto nas ruas cresciam as turbas a se coçar e destruir.
Fileiras de soldados já se postavam na defesa dos prédios públicos, pela primeira vez sem que os dedos coçassem os gatilhos, ocupados em coçar os focos de coceira que surgiam pelo corpo, cresciam se emendando, cobrindo toda pele; muitos já usavam as baionetas para coçar as costas.
A toalha molhada, o ministro disse que era para resfriar a pele, amenizava a coceira. Mandou trazerem mais toalhas molhadas com água gelada, os cientistas vestiram esses alívios e assim, como senadores da Roma antiga numa sauna, discutiram o que fazer.
Cada cientista tinha suas idéias e seu ego, que os outros se encarregavam de destruir com argumentos científicos, números em penca, citações e desconfianças, dúvidas e inquirições - até que, depois de dias nisso, e até por evidência do fato, resolveram examinar as poucas pessoas que continuavam imunes à coceira.
Eram as crianças bem novas, tão novas que nada conseguiam informar, e alguns seminaristas, alguns monges, freiras em clausura, e também pequenos lavradores dos sertões, conforme o último noticiário da última televisão a sair do ar.
Ainda enrolados em toalhas molhadas, os cientistas partiram em helicópteros militares para uma aldeia ribeirinha onde ninguém se coçava. Viviam da pesca, plantavam mandioca e milho, faziam lá suas farinhas, criavam alguns porcos e caçavam com espingardas do século passado, mas não se coçavam, ou por isso mesmo não se coçavam, pensaram os cientistas. Só podia ser a dieta natural.
Mas e os monges e as freiras, que comiam muito diferente dos sertanejos e também não coçavam?Aí um dos pilotos quis comprar lá qualquer coisa de um sertanejo - e o homem, ao ver o dinheiro da República, perguntou que fim tinha levado o dinheiro do Imperador. Não usavam dinheiro já fazia muitos anos, para quê? Ninguém do mundo, como diziam, vinha ali para comprar ou vender nada e...
- É isso - um cientista teve o estalo - A coceira é transmitida pelo dinheiro!Em laboratório, logo descobriram que o dinheiro não transmitia a coceira, não havia agente biológico, bactéria ou vírus nas notas, que não fossem velhos conhecidos dos infectologistas.
Então fizeram um teste: o Governo deu ao mosteiro grande quantia de notas novas, sem qualquer contato manual anterior, notas virgens de gente, a não ser as figuras impressas. E alguns monges passaram a se coçar, pensando no que deviam fazer com tanto dinheiro, enquanto continuavam sem se coçar os que não deram ao dinheiro qualquer importância.
- Só pensar no dinheiro já dá coceira - era a conclusão óbvia.
Um hipnotizador colocou pessoas em transe hipnótico, e a uma mandou esquecer de dinheiro, não pensar mais em dinheiro, e ela parou de se coçar; enquanto o outro, a quem mandou imaginar muito dinheiro, passou a ferozmente se coçar...
Carros de som passaram a percorrer as ruas, avisando que, para parar de coçar, era preciso parar de pensar em dinheiro, esquecer dinheiro, que era o que as pessoas mais faziam, pensando no que seria do emprego caso voltassem a poder trabalhar, pensando na loja, na empresa, nas dívidas. Como ficaria o dia de amanhã sem poder trabalhar para ganhar a vida?
Os que conseguiam se recuperar, iam assumindo seus postos de trabalho na grande engrenagem da vida social: voltavam a aparecer guardas de trânsito, chaminés voltavam a fumaçar, motoristas procuravam carros abandonados.
A nação voltou ao normal, em poucos dias, com despedidas triunfais para os cientistas. Mas, no fim do mês, quando tiveram de novo de pensar em salários e dívidas, contas de luz e água, armazém e escola, prestações e carnês... a nação voltou a se coçar. Menos, muito menos porém, todos aprendendo a pensar o mínimo possível em dinheiro, apenas usando o dinheiro para viver.
Quase acabaram os crimes. Os traficantes sumiram cobertos de chagas de tanto coçar. Só pessoas honestas passaram a cuidar da política e dos governos, até porque a coceira denunciava. Só funcionários honestos conseguiam trabalhar nas repartições públicas. Só conseguiam sobreviver à coceira empresários que não pensavam em lucro. As loterias desapareceram. O Governo reduziu-se e reduziu impostos.
Quem ainda se coçava passou a ser malvisto, corrigiu-se ou exilou-se, toda a nação passou a viver em paz, sem se coçar jamais, até que aquele sertanejo resumiu tudo numa frase na televisão, em reportagem sobre as comemorações de aniversário do fim da coceira:
- Tá tudo muito bonito, mas, eu, às vezes, tenho saudade daquela coceirinha que me deu quando me deram dinheiro.
Foi como acender um buscapé num paiol de fogos: aqui e ali as pessoas deram de falar que até não era mal o tempo do dinheiro, como era bom ter dinheiro e fazer tantas coisas, mesmo com coceira...
No momento, o país se encontra em guerra civil, dividindo famílias, uns querendo viver em paz, na pobreza sem dinheiro, outros querendo ter mais coisas, ganhar aumento de salário, viajar, viver mais, como dizem, mesmo coçando sem parar.
Agora estão em guerra pelas ruas e campos. Os combatentes não vestem uniformes, é uma guerra civil, por isso procuram observar bem, antes de atirar em alguém, para ver se está ou não se coçando.
Domingos Pellegrini é escritor, autor de Tempo de Guerra entre outros