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O poder do medo
Sandra Carvalho: defensores de direitos humanos são perseguidos / Foto: Célia Thomé
Programa de proteção a testemunhas busca espaço e confiabilidade
LEONARDO FUHRMANN
O ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, acredita que a melhor arma para o Brasil vencer o crime organizado é a criação de uma rede eficiente de informações sobre as atividades das quadrilhas. Num país com uma polícia sem tradição investigativa, os depoimentos de vítimas e testemunhas são fundamentais para condenar criminosos e conhecer melhor como agem suas facções. Apesar disso, o Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas (Provita), destinado a garantir a integridade física de pessoas que viram, foram vítimas ou souberam de algum crime e por isso estão sendo ameaçadas pelos criminosos, ainda engatinha: em cinco anos de existência, prestou menos de mil atendimentos.
O Provita é integrado pelo governo federal, que se responsabiliza pelo repasse de recursos, e por uma rede de 15 estados, em cada um dos quais uma entidade da sociedade civil (ONG) se encarrega do gerenciamento do sistema. Até o começo deste ano, era esse o único meio de defesa de pessoas que necessitavam de proteção para que pudessem colaborar com a Justiça. A Secretaria Especial de Direitos Humanos do governo Luiz Inácio Lula da Silva já implantou experimentalmente outros dois programas: o de proteção a crianças e adolescentes ameaçados de morte e o destinado a defensores dos direitos humanos, conceito que inclui agentes públicos e dirigentes de organizações não-governamentais (ONGs) que correm risco de vida devido a sua atuação profissional.
O Provita, porém, não é uma unanimidade entre os especialistas. O ex-titular da Secretaria Nacional Antidrogas (Senad), Walter Maierovitch, considera-o de pouca valia na luta contra a criminalidade no país, pois as denúncias não atingem o alto escalão das facções criminosas. "Acho louvável que o Estado proteja as testemunhas e vítimas de crime, mas só desmantelaremos o crime organizado com a implantação de um sistema especial que incentive os envolvidos nas máfias a contarem à Justiça o que sabem. Afinal, as testemunhas geralmente conhecem apenas fatos isolados; já os próprios criminosos têm informações valiosas sobre as quadrilhas e suas conexões", diz. Ele revela que na Itália existem mais de 80 programas de proteção aos colaboradores da Justiça, nos quais se incluem ex-integrantes de quadrilhas. Apesar de a delação premiada – em que o criminoso dá informações à polícia e à Justiça em troca de benefícios no cumprimento da pena – estar prevista em lei, o governo não dá nenhuma garantia de segurança a esses informantes.
Maierovitch lembra que nos Estados Unidos há uma série de vantagens para colaboradores da Justiça, inclusive criminosos. "As autoridades garantem, durante o andamento do processo, rendimentos no mesmo patamar que essas pessoas tinham quando participavam de atividades ilegais e até mesmo a manutenção de propriedades obtidas ou mantidas com dinheiro sujo em troca de informações." Ele cita também como exemplo o caso dos colombianos irmãos Ochoa, cuja cooperação com a Justiça foi decisiva no combate ao Cartel de Medellín. Na União Européia, a situação é semelhante: mulheres levadas ilegalmente por traficantes para ser exploradas na prostituição passaram a receber visto de permanência em troca da delação.
O promotor Carlos Cardoso, assessor especial de Direitos Humanos do Ministério Público de São Paulo, também defende esse modelo de programa. Mas faz ressalvas. "Hoje, se conseguirmos que um bandido faça revelações sobre o Primeiro Comando da Capital (PCC), teremos muitas dificuldades em encontrar um lugar no sistema prisional em que ele esteja seguro. Mesmo fora de São Paulo, há conexões entre as facções criminosas, e não seria fácil mantê-lo vivo", diz. Ele lembra que muitos condenados são mortos nos presídios por quadrilhas rivais ou em desavenças com os próprios companheiros. Foi o que aconteceu com Márcio Amaro de Oliveira, o Marcinho VP, morto no complexo de Bangu, considerado de segurança máxima, no Rio de Janeiro. Segundo investigações preliminares da polícia, ele teria sido assassinado a mando da cúpula do Comando Vermelho (CV) por ter feito revelações sobre o funcionamento da facção criminosa ao jornalista Caco Barcellos, que o entrevistou para escrever o livro Abusado, o Dono do Morro Dona Marta.
Primeiros passos
Em 1996, o governo federal elaborou o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), um conjunto de propostas e metas que ainda não foram totalmente colocadas em prática. No capítulo sobre o combate à impunidade, havia a proposta de criar, em parceria com os estados, um mecanismo de proteção especial a vítimas e testemunhas "expostas a perigo devido à colaboração ou declarações prestadas em investigação ou processo penal". No ano seguinte, o estado de Pernambuco assinaria o primeiro convênio para garantir a integridade física de colaboradores da Justiça. Sob a coordenação do Gabinete de Assessoria Jurídica a Organizações Populares (Gajop) começava a experiência do Provita.
O método usado no Brasil é único no mundo, pois em nenhum outro país uma ONG tem a responsabilidade de administrar um programa dessa natureza. Essa entidade, porém, não tem poder para decidir se uma testemunha deve ou não ser incluída. Cada estado tem um conselho para exercer tal função, do qual fazem parte representantes da Justiça, do Ministério Público e do Poder Executivo, com o apoio técnico de um grupo formado por advogados, psicólogos e assistentes sociais. Em São Paulo, onde estão cerca de 25% das pessoas que participam do programa, essa incumbência cabe ao Centro de Educação e Evangelização Popular (Cedep), que trabalha com a prevenção da violência na região do Capão Redondo, na zona sul da capital.
O fato de o Provita ser administrado por uma ONG é mais um motivo de crítica para Maierovitch. "A função de proteger os colaboradores da Justiça é uma atividade única do Estado e não pode ser transferida para nenhuma outra entidade", argumenta.
Carlos Cardoso, porém, discorda e usa um exemplo para demonstrar as vantagens de ter uma entidade da sociedade civil na operação do Provita. "No ano passado, muitos dirigentes do Programa de Proteção à Vítima e à Testemunha do Espírito Santo foram ameaçados de morte e pressionados pelo crime organizado. Infiltrados no governo estadual – em diversos níveis e diferentes poderes –, os bandidos tentaram de várias formas descobrir onde estavam testemunhas-chaves de processos contra eles, mas não conseguiram, pois a sociedade civil dentro e fora do estado se mobilizou para evitar que isso acontecesse."
A situação do Espírito Santo no período era tão grave que o então ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior, defendeu a intervenção no estado e se demitiu do cargo quando sua sugestão foi rejeitada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. Acusado de ser um dos líderes do crime organizado capixaba, o ex-presidente da Assembléia Legislativa José Carlos Gratz (PFL) foi impedido na Justiça de disputar novo mandato e acabou preso. Ele é acusado de comprar os votos de outros 19 deputados estaduais a fim de garantir sua própria eleição para a presidência da Assembléia Legislativa. Na denúncia, o Ministério Público sustenta que Gratz possui notório poder de influência no estado e pode atrapalhar o andamento das investigações contra ele. Também justifica sua prisão para resguardar a credibilidade das instituições públicas e dos agentes políticos. "Imagine, em tal situação, quais os riscos de manter uma testemunha contra integrantes do poder local num lugar conhecido por essas pessoas", argumenta o promotor paulista.
Um dos principais orgulhos do comando dos Provitas é que jamais uma pessoa sob sua proteção foi assassinada. Mas já houve dois casos de suicídio. Márcia de Lima Nunes, de 19 anos, se enforcou no banheiro de um apartamento, em Porto Alegre. Ela havia ajudado a polícia a desmantelar uma rede de exploração de prostituição de adolescentes e de tráfico de drogas. E a universitária Karina Mousquer Arndst, de 26 anos, foi encontrada morta no banheiro de um hotel em Teresópolis (RJ). Graças a suas denúncias, a Polícia Federal prendeu uma dupla de policiais paulistas que tentavam embarcar para Paris com 1 quilo de cocaína. Esses suicídios foram tema de debate em um encontro nacional de dirigentes do Provita e fizeram com que a análise do perfil psicológico das pessoas que pretendem participar do programa se tornasse mais rigorosa. Como conseqüência, em São Paulo, 80% das pessoas que tinham esperança de ser incluídas no Provita não foram aceitas e 4% tiveram de ser desligadas por não cumprir as regras estabelecidas.
Para o padre Nicolau Bakker, do Cedep, também não é de surpreender o alto percentual de testemunhas e vítimas que desistem de permanecer no Provita. "É preciso estar bem preparado psicologicamente para resistir a essa situação. Os protegidos são obrigados a se afastar dos locais que freqüentavam, das pessoas com quem conviviam e até mesmo de suas famílias. Geralmente, deixam a profissão, a cidade, o estado ou até o país. Precisam começar vida nova, em alguns casos até com outro nome. Seus passos são monitorados em todos os momentos", explica. O padre destaca que as pessoas sofrem esgotamento emocional pelo próprio fato de estarem sendo ameaçadas de morte, além de enfrentar problemas decorrentes do rigor das normas do Provita.
Quando alguém entra no programa com familiares e dependentes, a ONG se responsabiliza por conseguir escola para as crianças, assistência médica e acomodações para a família, além de ajuda para arrumar emprego e viabilizar a reintegração social de todos. Com tantas dificuldades, o padre Bakker defende a utilização do Provita só em casos que envolvam o crime organizado e agentes públicos.
Outros métodos
Mesmo ameaçadas, muitas pessoas preferem não entrar no Provita por causa das regras severas. O deputado estadual Renato Simões (PT-SP), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa, propõe a criação de novas formas de proteção. Em São Paulo, uma das opções atuais é a segurança policial, feita pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) da Polícia Civil do estado.
Segundo o padre Bakker, o Cedep teve dois problemas graves como gestor do Provita: falta de dinheiro e intromissão policial. "Tivemos vários desentendimentos, ainda mais porque dependemos deles para escolta nas locomoções para depor, por exemplo. Há cerca de dois anos, pensamos seriamente em abandonar o projeto por conta disso", afirma.
A falta de dinheiro também esteve muito perto de inviabilizar o Provita mais de uma vez, em diversos estados. "O programa é caro, pois, além da questão de segurança, há os custos de manutenção da infra-estrutura para deixar alguém escondido", diz o padre. No Rio de Janeiro, segundo denúncia do jornal "O Globo", o Provita ficou inativo por quatro meses, no início deste ano. Durante esse período, uma testemunha que tinha denunciado a participação de policiais no tráfico de drogas na Cidade de Deus deixou de dar informações por não ter sido admitida em nenhum programa que garantisse sua vida. Graças a ela, pelo menos um policial corrupto havia sido preso. Segundo essa testemunha, na região, policiais participavam de bondes – invasões rápidas de territórios dominados por quadrilhas rivais na disputa por pontos de venda de drogas. Em muitos casos, pessoas que inicialmente colaboravam com as investigações desmentiram tudo em juízo, por temer represálias.
Recentemente, Simões fez uma consulta informal a dirigentes do Provita em São Paulo sobre a viabilidade de admissão de testemunhas das ações do esquadrão da morte em Guarulhos e Ribeirão Preto, e foi informado de que não havia recursos para a incorporação dessas pessoas. O deputado federal Orlando Fantazzini (PT-SP), ex-presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, teve de procurar a coordenação nacional do programa para garantir abertura de novas vagas no estado, caso fossem necessárias.
Entre os protegidos pelo Provita, destacam-se denunciantes das Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) estaduais e federais do narcotráfico, do crime organizado, das redes de prostituição infantil, da infiltração de criminosos nos poderes do Espírito Santo e da máfia da propina, que agia na cidade de São Paulo durante as gestões de Paulo Maluf e Celso Pitta. "Sabemos que ainda existem muitas falhas, mas costumo dizer que o pior programa de defesa de vítimas e testemunhas é aquele que não existe", afirma Cardoso.
Proteger agentes públicos e líderes da sociedade civil que denunciam desrespeito aos direitos humanos é outro desafio desses programas. "Afastar essas pessoas de suas atividades seria uma vitória para o crime organizado. Por isso, elas precisam estar seguras onde estão", diz Simões. Entre as vítimas dessa categoria estão os juízes Antônio José Machado Dias – corregedor de presídios, responsável pelo de Presidente Bernardes (SP), onde estão líderes do PCC, entre outros – e Alexandre Martins de Castro Filho – que investigava o crime organizado capixaba e estava, inclusive, sob proteção policial –, assassinados neste ano. Na lista estão também funcionários de alto escalão de presídios, líderes sindicais urbanos e rurais, ambientalistas e políticos. "É mais do que necessário um sistema especial de proteção aos defensores de direitos humanos. Aliás, essa é uma reivindicação antiga", diz Sandra Carvalho, diretora de Comunicação e Pesquisa do Centro de Justiça Global, que no ano passado publicou, com a ONG irlandesa Front Line, um relatório sobre perseguições a esses profissionais, dos quais 20 foram mortos num período de cinco anos. Entre os perseguidos por causa de suas denúncias estão figuras importantes de ONGs e do poder público, como o frei Henri Burin des Roziers, advogado da Comissão Pastoral da Terra no sul do Pará, premiado internacionalmente por seu trabalho, Darci Frigo, da Rede Nacional de Advogados Populares, laureado em 2001 pelo Robert Francis Kennedy Memorial, e o delegado Francisco Vicente Badenes Júnior, do Espírito Santo, que investiga desde 1991 a atuação da Scuderie Le Cocq, o esquadrão da morte. Em 2001, após denunciar o envolvimento de uma série de políticos com a quadrilha, o delegado abandonou o estado, e vive agora sob a proteção do programa.
Ameaças
O atual líder do PT na Câmara dos Deputados, Nelson Pellegrino (BA), e o secretário Nacional de Segurança Pública, Luiz Eduardo Soares, também já foram ameaçados por suas atividades políticas. Em 1998, uma assessora de Pellegrino em Salvador foi seqüestrada e um dos criminosos lhe mostrou um bilhete com a frase "vamos encarar" e uma foto do deputado, que foi presidente das comissões de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa da Bahia e da Câmara dos Deputados. Luiz Eduardo Soares começou a receber ameaças depois de deixar o cargo de coordenador de Segurança, Justiça, Defesa Civil e Cidadania da Secretaria de Segurança Pública do Rio. Soares saiu do governo após desentendimentos com o comando da Polícia Civil e com o então governador Anthony Garotinho.
Fantazzini também foi ameaçado de morte quando era vereador em Guarulhos, na Grande São Paulo. Ele denunciou um esquema de corrupção, o que resultou na prisão do prefeito da cidade e de cinco vereadores. "No início, não ficava muito assustado. Medo, mesmo, tive quando ligaram para minha casa e disseram a minha filha que sabiam que ela estava sozinha e o horário em que eu devia chegar. Quando a situação envolve a família, é diferente", relata.
Segundo Simone Ambros, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, o programa para defensores dos direitos humanos propõe uma escolta permanente, feita pela Polícia Federal, para quem está sendo ameaçado. Maior velocidade na apuração de crimes quando vítimas e testemunhas correm algum risco e a investigação das ameaças são as outras propostas. Simone diz que a medida deve proteger imediatamente cerca de cem dessas pessoas.
O governo criou ainda o Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte, uma antiga proposta do titular da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Nilmário Miranda. O projeto já funciona experimentalmente em Minas Gerais e no Espírito Santo. De acordo com seus idealizadores, a violência é causa de 70,9% das mortes na faixa etária entre 15 e 19 anos. No caso dos adolescentes em conflito com a lei, a situação é ainda mais preocupante. Um dos principais motivos de encerramento de processos criminais contra adolescentes tem sido a morte do infrator.
Entre as causas de assassinato de jovens, se destacam, segundo os estudos do governo federal, envolvimento com o tráfico de drogas, disputas entre gangues rivais, confrontos com grupos de extermínio, pressão de adultos para que os adolescentes assumam a culpa de delitos cometidos por maiores de idade, dificuldade de resolução de conflitos e aumento do uso de armas de fogo, prostituição e brigas em estabelecimentos socioeducativos.
No âmbito do narcotráfico, muitos adolescentes acabam assassinados quando querem se afastar do crime e os líderes das quadrilhas consideram que eles sabem demais, quando fazem dívidas acima de suas possibilidades de pagamento e nas disputas por pontos-de-venda.
Um documentário feito pelo rapper MV Bill e por seu empresário, Celso Athayde, pretende revelar a gravidade dessa situação. Falcão, os Meninos do Tráfico – que os autores desistiram de apresentar na Rede Globo, provavelmente temendo represálias – mostra a rotina dos adolescentes dentro das quadrilhas de narcotraficantes. Foram dois anos de pesquisa e filmagens. Para contar a história, foram escolhidos 16 garotos de vários estados como condutores do relato: 15 dos 16 personagens, todos entre 13 e 18 anos, haviam morrido antes da finalização do filme.
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