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Autores negros enfrentam barreiras para publicar suas obras

FLÁVIO CARRANÇA

A dificuldade de ingressar no mercado editorial e colocar seus livros à disposição de um grande público talvez seja a principal causa da reduzida visibilidade de escritores afrodescendentes que em suas obras retratam a vida e os valores da comunidade negra brasileira. Situação semelhante à de personagens negros e negras, que também entraram pela porta dos fundos de nossa literatura, freqüentemente retratados por meio de estereótipos destituídos de individualidade, como o "escravo fiel", o "Pai João" ou a "mulata sensual", tipos que mesmo depois de abolida a escravidão seriam encontrados em muitas obras, ainda que sob formas renovadas. Mas, ao lado dessa presença do negro como tema de textos escritos de um ponto de vista exterior, também pode ser detectada no país uma outra tradição, quase subterrânea, de uma escrita sobre o negro produzida pelo próprio negro, que recebeu o nome, às vezes contestado, de literatura negra.

Essa corrente, que aparece no século 18, com o cantador de lundus Domingos Caldas Barbosa, passa por Cruz e Sousa e Luís Gama, ressurge com Lima Barreto, Lino Guedes e Solano Trindade, para ser retomada nas décadas de 1950 e 60 pela geração de Oswaldo de Camargo e Eduardo de Oliveira, com os quais tem início uma fase em que os próprios autores dizem produzir literatura negra. Na origem desse conceito estão movimentos como o Renascimento Negro, que se desenvolveu nos Estados Unidos entre as décadas de 1920 e 40, com uma geração de escritores muito influenciados pelo livro As Almas da Gente Negra, de W. E. B. du Bois, que reagem contra os preconceitos e estereótipos e passam a glorificar sua cor, reivindicando respeito e igualdade. Outra referência é o movimento da Negritude, surgido em Paris na década de 1930, como resultado do encontro de estudantes negros das Antilhas e da África, muitos dos quais acabariam produzindo grandes obras da literatura negra de expressão francesa, marcadas pela busca de uma identidade negra africana e pelo protesto contra a ordem colonial.

O conceito de literatura negra é polêmico. O professor da Universidade Federal Fluminense Domício Proença Filho, conhecido teórico de literatura e autor de Dionísio Esfacelado, considerado um clássico da poesia negra, diz que o uso dessa expressão pode ajudar a manter a discriminação. Ele lembra que essa designação está vinculada à reivindicação de uma identidade própria, fator decisivo na luta pelo fim das distinções raciais, mas que também pode reproduzir os estereótipos que costumam caracterizá-las. Por isso, no artigo "Trajetória do Negro na Literatura Brasileira", publicado na "Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional" nº 25, sugere, no lugar de literatura negra, a referência à presença do negro na literatura.

No âmbito acadêmico, o debate sobre esse tema foi aberto no Brasil por Roger Bastide com a obra Estudos Afro-Brasileiros, publicada na década de 1940. Mais tarde, surgiram trabalhos de outros pesquisadores estrangeiros, como Raymond Sayers (O Negro na Literatura Brasileira, 1958) e Gregory Rabassa (O Negro na Ficção Brasileira, 1965). A partir dos anos 1980, essa discussão é reaberta no Brasil com o aparecimento de diversos estudos, com destaque para a obra de Zilá Bernd, doutora pela Universidade de São Paulo (USP) e professora do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. No livro Negritude e Literatura na América Latina (1987), ela critica o estudioso David Brookshaw (Raça e Cor na Literatura Brasileira, 1983) por dividir os autores em "brancos" e "negros" que utilizam temática negra. "Tal divisão, meramente epidérmica, não nos parece satisfatória, até mesmo pela dificuldade em saber, num país mestiço como o Brasil, quem é negro e quem não é."

Embora admitindo que, à primeira vista, a expressão literatura negra possa remeter a um conceito etnocêntrico, uma vez que a sensibilidade artística não constitui fator inerente a uma dada etnia, Zilá Bernd afirma existir uma literatura negra, que se diferencia das obras que apenas tematizam o negro pela apresentação de um "eu enunciador" que se quer negro. "Assumir a condição de negro num discurso em primeira pessoa parece ser o aporte trazido por essa literatura, constituindo um de seus marcadores estilísticos mais expressivos", conclui.

Alguns autores

Com 67 anos de idade, o paulista Oswaldo de Camargo foi um dos poucos escritores que durante as décadas de 1950 e 60 estabeleceram um elo de ligação entre os autores negros da primeira metade do século passado e uma nova fornada surgida no final dos anos 70. Segundo ele, "essa literatura que o negro produz surge exatamente das experiências particulares dele, mas tem de ser sancionada por um texto literário". Por isso, a preocupação com a qualidade do texto não é casual. Ela decorre do cuidado em evitar certo paternalismo que levou estudiosos a propor critérios específicos na avaliação dos escritores negros e mestiços, substituindo a apreciação da qualidade literária pela oportunidade histórica, proposta que na opinião de Domício Proença pode ajudar a manter a discriminação.

Um dos autores negros mais respeitados da geração surgida no Brasil a partir dos anos 1970 é o poeta Cuti, pseudônimo de Luiz Silva, um paulista nascido em Ourinhos, em 1951. Ele diz que a caracterização de uma literatura depende muito do ângulo de visão e do interesse do analista e coloca o foco na subjetividade e na ideologia. "Para mim, literatura negra se identifica pela predominância da experiência subjetiva de ser negro transfigurada em texto", afirma ele.

Mineiro de Juiz de Fora, Edimilson Pereira de Almeida, de 40 anos, lançou recentemente o livro de poemas Zeozório Blues. Ele observa que, na literatura negra, se entrelaçam a experiência histórica e social e a reflexão acerca dessa vivência: "Quando o autor que se exprime é um negro, o texto se impõe a partir daquilo que vivemos como negros na história".

Mesmo um levantamento superficial mostra na literatura negra brasileira o amplo predomínio da poesia e a quase absoluta ausência de romances. Para Oswaldo de Camargo, isso se explica pela maior facilidade de produzir poemas, em contraste com a disciplina, a pesquisa e o longo tempo de trabalho exigidos pela prosa. "Numa coletividade empobrecida, em que se tem de trabalhar muito e ficar parado no trânsito, é difícil elaborar um romance." Domício Proença afirma que, por ser uma forma extrema e imediatamente mais mobilizadora da emoção e da reflexão do que a prosa, o poema torna-se o espaço ideal para a concretização de textos centrados basicamente na afirmação da identidade cultural, na preocupação com o direito pleno à cidadania. Já Zilá Bernd afirma que, para a maturação de um romance negro brasileiro, algumas etapas ainda precisam ser vencidas, como o resgate de sua participação na história do Brasil e a definição de sua própria identidade.

Um dos poucos romancistas afro-brasileiros com trânsito pelas grandes editoras é o carioca Joel Rufino dos Santos. Professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro, ele tem dezenas de títulos publicados. Rufino, no entanto, diz que produz uma literatura culta, impregnada de valores ocidentais, tanto na inspiração quanto no estilo e nos temas, e que nesse sentido sua obra não pode ser classificada como literatura negra. Ao mesmo tempo, reconhece que é um negro que se assume como tal, o que de alguma forma transparece em seus trabalhos. Autor também de uma vasta produção infanto-juvenil, categoria em que já recebeu o prêmio Jabuti por Estranha Aventura em Talalai, ele diz que são esses livros, de caráter mais popular, onde aborda temas como histórias de bichos, de matriz africana, que podem ser identificados como literatura negra.

A obra do baiano João Ubaldo Ribeiro, que dispensa apresentações, é mais difícil de classificar. O grande número de personagens negros em seus livros, como, por exemplo, no premiado Viva o Povo Brasileiro, em que ele denuncia a opressão a que os escravos eram submetidos, e sua construção não estereotipada talvez pudessem situá-lo como autor de literatura negra. Ubaldo, no entanto, diz que isso é possível desde que o critério não seja a cor da pele do escritor, uma vez que se considera "branco brasileiro", talvez numa alusão à intensa mestiçagem existente no país.

Quilombhoje: negritude paulistana

David Brookshaw constata com estranheza a inexistência no Brasil de um poeta com a projeção do norte-americano Langston Hughes e de romancistas com a mesma fama de James Baldwin, Richard Wright ou Ralph Ellison. Ele atribui essa diferença, entre outros fatores, à disparidade entre a situação econômica do norte-americano e a do brasileiro, além do fato de que nos Estados Unidos a discriminação mais brutal estimulou a criação de negócios de negros para negros, entre os quais algumas editoras.

Aqui no Brasil, uma saída encontrada por muitos escritores negros para furar o bloqueio a eles imposto no meio editorial e fazer suas obras chegarem ao leitor foi a publicação em regime cooperativo. Durante o ano de 1978, existiu em São Paulo, no bairro do Bexiga, o Centro de Cultura e Arte Negra (Cecan), onde se reuniam pessoas ligadas às letras, entre as quais o poeta Cuti e o advogado Hugo Ferreira. Juntos, eles decidiram lançar os "Cadernos Negros", pequenas coletâneas de poemas.

Paralelamente, Cuti participava de um grupo formado por Oswaldo de Camargo, Abelardo Rodrigues e o falecido poeta Paulo Colina, que se reunia no bar Mutamba, no centro de São Paulo, para discutir literatura e que, por volta de 1980, resolveu batizar-se Quilombhoje. O grupo assumiu a publicação dos "Cadernos", recebeu adesões, mas em seguida sofreu uma ruptura, com a saída de Camargo, Colina e Abelardo, que criticavam principalmente a qualidade do material publicado. Os "Cadernos Negros", no entanto, prosseguiriam, agora com Cuti, Abílio Ferreira, Sônia Fátima Conceição, Miriam Alves, Jamu Minka, Oubi Inae Kibuko, Esmeralda Ribeiro e Márcio Barbosa. Na avaliação de Oswaldo de Camargo, a formação do Quilombhoje, sobretudo depois do surgimento dos "Cadernos Negros", foi uma experiência necessária para que se formasse um coletivo que tornou possível reunir – como acontece até hoje – autores de todos os cantos do país, definindo um método de trabalho que deixou mapeada a maneira de escrever do negro, suas temáticas, suas buscas.

Entre as escritoras do Quilombhoje destaca-se a paulista Miriam Alves, que já esteve na Áustria e nos Estados Unidos para falar de seu trabalho e realizar performances. Em abril deste ano, ela passou por cinco cidades norte-americanas, entre as quais Miami e Nova York, para fazer palestras em universidades. O convite surgiu depois da repercussão que tiveram no meio acadêmico norte-americano os textos de Miriam, Esmeralda Ribeiro e Conceição Evaristo, incluídos na coletânea Fourteen Female Voices, publicada nos Estados Unidos.

Outra experiência documentada nos "Cadernos Negros" é o trabalho do gaúcho Oliveira Silveira. Nascido há 61 anos em Rosário do Sul, ele é autor de várias obras, entre as quais a Décima do Negro Peão, em que mostra que o negro foi um dos formadores da tradição gaúcha, trabalhando nas charqueadas desde o século 18, guerreando na Revolução Farroupilha, atuando nas diversas atividades do meio rural daquele estado. Silveira também assina um texto de apresentação do livro de poemas Miragem de Engenho, escrito pelo professor e radialista baiano Jônatas Conceição da Silva, que tem poemas, contos e ensaios publicados tanto nos "Cadernos Negros" quanto em coletâneas dentro e fora do Brasil.

Sebastião Uchoa Leite, no artigo "Presença Negra na Poesia Brasileira Moderna", também publicado na "Revista do Patrimônio Histórico" nº 25, utiliza um critério que situaria a maioria dos poetas editados nos "Cadernos Negros" em uma vertente caracterizada pela atuação militante. Uchoa destaca ainda um segmento mais recente da poesia negra, formado por autores que se dedicam à recuperação do universo simbólico, ou a experiências lingüístico-formais, no qual inclui um veterano dos "Cadernos Negros", Arnaldo Xavier, que faz um trabalho iconográfico totalmente diferenciado do da maioria dos poetas negros de sua geração. No plano da recuperação da linguagem afro, Uchoa cita o exemplo do baiano Antonio Risério, que transcriou em português o mundo fascinante dos orikis (versos ou poemas destinados a saudar um orixá) da cultura nagô-iorubá. E ainda inclui nessa linha, além do já citado Edimilson Pereira de Almeida, outro mineiro, este de Belo Horizonte, Ricardo Aleixo, que Uchoa afirma executar, dentro do universo cultural banto, um trabalho que associa o gosto pela tradição ao prazer de experiências poéticas.

Márcio Barbosa, que atualmente divide com a esposa, Esmeralda Ribeiro, o trabalho de publicar os "Cadernos Negros", avalia que, passados 25 anos da criação do Quilombhoje, há maior interesse acadêmico pela literatura negra, com produção de teses e realização de cursos específicos em algumas universidades, como a Federal de Minas Gerais (UFMG). Apesar disso, os escritores negros ainda trabalham sem recursos, enfrentam dificuldades de mercado e, na maioria das vezes, fazem edições autofinanciadas. Ele detecta na mídia e nas livrarias um "boicote velado" à produção desses autores: "A alegação é que as obras despertam pouco interesse e quase não vendem. Por isso a restrição de espaço. Mas o mesmo não acontece com outros escritores que também não fazem sucesso. De qualquer maneira, as grandes redes jamais comercializam nossos livros".

Por conta desse bloqueio, surgem iniciativas como forma de reação. A Mazza Edições, de Belo Horizonte, montada e dirigida por Maria Mazzarelo Rodrigues, uma mineira com larga experiência no setor, inspirou-se em trabalhos desenvolvidos na Espanha e em Portugal para criar uma editora totalmente voltada para a cultura negra, a qual já publicou autores como Geni Guimarães, Edimilson Pereira, Leda Maria Martins e Cuti, entre outros. Essa disposição é compartilhada por Heloísa Pires, socióloga formada pela USP, que atualmente coordena a coleção juvenil O Pescador de Histórias, da Editora Peirópolis. Ela trabalhou para que a Selo Negro Edições, projeto do grupo Summus Editorial, pudesse fundamentar sua proposta básica, que é publicar obras de negros ou assuntos relacionados à comunidade negra.

Heloísa, que considera a experiência do Quilombhoje maravilhosa, lembra que a necessidade desse grupo de escritores de se reunir anualmente para publicar sua coletânea, depois vendida de mão em mão, revela a face trágica de uma produção cultural que o circuito das editoras finge não ver. "Geralmente, o editor desconfia muito mais de um autor negro, pois acredita que ele não tenha boa formação. Se o tema incluir negros, pior ainda, pois ele imagina que a população negra, além de ter baixo poder aquisitivo, não lê nem se interessa pelo assunto. O problema continua quando a obra é publicada, pois o livreiro também não aposta nesse tipo de literatura e muitas vezes nem chega a colocar os livros na prateleira." Para Heloísa, o que pode ajudar a mudar um pouco essa situação no mercado editorial é a lei assinada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em janeiro de 2003, que torna obrigatório o ensino de história e de cultura afro-brasileiras nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficial e particular. Cuti concorda que essa lei favorecerá a literatura negra e diz que as editoras já começaram a trabalhar para aproveitar a demanda criada pela exigência legal.

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