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Aposta nos trilhos
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Setor ferroviário pode ganhar novo alento com plano do governo
ALBERTO MAWAKDIYE
O governo federal pode, mesmo que indiretamente, ajudar a recolocar nos trilhos a combalida indústria ferroviária brasileira. Lançado no final do primeiro semestre pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o Plano Nacional de Revitalização de Ferrovias, embora mais voltado para a otimização dessa modalidade de transporte, deve multiplicar o número de pedidos e dar o necessário empurrão nesse segmento industrial, que vem patinando desde os anos 1970. Nessa época, praticamente cessaram as encomendas de pai para filho da Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA) e das companhias ferroviárias estaduais. O que restou da cadeia produtiva do setor – pouco mais de 60 empresas, das mais de cem que existiam há 30 anos – deve ser convidado já neste trimestre a participar das audiências públicas que vêm reunindo desde junho representantes do Ministério dos Transportes, operadoras e usuários para o detalhamento do plano, que por ora encontra-se apenas esboçado.
As empresas poderão ter boas notícias já durante as próprias audiências. Na esteira do plano – cujo principal indutor é o compromisso do governo de investir em infra-estrutura ferroviária, por exemplo na transposição (cruzamento) de linhas nos grandes centros urbanos, como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte –, as concessionárias já anunciaram investimentos de R$ 1,2 bilhão até 2005 em equipamentos e modernização de vias permanentes. Para se ter uma idéia do que essa quantia significa, é quase o mesmo montante aplicado por elas desde meados da década de 1990, quando a malha ferroviária brasileira passou para as mãos da iniciativa privada – R$ 1,6 bilhão. Obviamente, as concessionárias não deverão bancar o total dos investimentos. O governo acena com a possibilidade de criar atraentes linhas de crédito no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para aquelas que participarem do jogo.
Diga-se a favor do plano, cujas linhas gerais foram formuladas pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), o órgão subordinado ao Ministério dos Transportes responsável pelas ferrovias, que é a primeira tentativa federal desde os anos 1970 de estabelecer um programa abrangente para o setor – o processo de concessões dos anos 1990 foi, comparativamente, apenas uma troca de corpo gerencial, na medida em que não ensejou nenhuma mudança significativa na estrutura ferroviária. Durante o governo Ernesto Geisel (1974-79), no auge da crise do petróleo, o Plano de Desenvolvimento Ferroviário (PDF) previa maciços investimentos em corredores de exportação, na construção de novas linhas estruturais (como a polêmica Ferrovia do Aço) e na compra de milhares de vagões e centenas de locomotivas. Esse plano não durou mais de cinco anos, e pouquíssima coisa saiu do papel.
Exportação
O plano atual é bem menos ambicioso. Na verdade, contenta-se em tentar tornar mais eficiente e "redonda" a diminuta malha brasileira, de meros 30 mil quilômetros, concentrada principalmente na região sudeste e centro-oeste, e adequá-la melhor ao atual esforço nacional de exportação, com a implantação também de pequenos e novos corredores até alguns centros produtores desprovidos de vias férreas. Há ainda uma vaga intenção de incrementar linhas de subúrbio e metroviárias das grandes capitais, algumas que tenham apelo turístico e eventualmente até de passageiros, de médio e longo percurso. "Nosso compromisso é de pelo menos resgatar o setor ferroviário e aproveitar melhor suas potencialidades", tem repetido com insistência o ministro dos Transportes, Anderson Adauto Pereira. "Para isso acontecer, todo o setor, inclusive a indústria, tem de ser incluído nesse esforço."
Já há consenso de que o mapa das concessões hoje vigente terá de ser modificado. O modelo se mostrou de pouca eficiência, na medida em que de 1996 para cá a participação do modal ferroviário no transporte de cargas cresceu parcos 4 pontos percentuais, ou seja, de 19% para 23% (as rodovias continuam com 60%). Na verdade, surgiram mais problemas do que soluções. Entre as ações básicas propostas pela ANTT, estão a transferência de trechos entre concessionárias – nada mais comum no Brasil do que duas linhas concorrentes se cruzarem, e uma operadora cobrar pedágio da outra, encarecendo ridiculamente o frete – e a própria fusão e cisão de concessionárias.
Regras mais claras sobre o serviço a ser prestado aos usuários também devem ser estabelecidas. Há muitas críticas de siderúrgicas, mineradoras e produtoras de grãos, que na prática são os únicos usuários dos trens de carga brasileiros, sobre a absoluta confusão que reina na oferta dos serviços, dos preços à regularidade operacional e ao direito de preferência, ou seja, a prioridade dada ao transporte de carga da própria concessionária. "É preciso repensar quase tudo", afirma Omar Silva Jr., presidente da Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa), uma das principais do setor no país, e também da Associação Nacional dos Usuários do Transporte de Cargas (Anut), que tem sido uma das mais animadas participantes das audiências públicas da ANTT.
Loteamento
As regras também devem ser endurecidas quanto aos deveres das operadoras para com o governo federal. O fato é que várias metas estabelecidas nos contratos assinados por elas não estão sendo cumpridas, e não só no aspecto da eficiência. Perto de 7 mil quilômetros de linhas – ou 27% da malha transferida para a iniciativa privada – foram simplesmente devolvidos ou abandonados pelas operadoras – a ALL-Delara, que explora principalmente linhas do sul do país, recebeu multas de R$ 2,6 milhões no primeiro semestre deste ano por conta disso. "O problema é que as concessões foram meramente um loteamento das supervisões regionais da Rede Ferroviária entre alguns antigos usuários", diagnostica o economista e consultor de transportes Josef Barat. "Se isso facilitou o processo, na medida em que não seria fácil atrair interessados para uma malha tão deficitária e em tão mau estado, inviabilizou a ferrovia enquanto atividade-fim. Ela virou uma simples unidade de negócios, integrada à logística dos consórcios vencedores."
De fato, os leilões de concessão foram vencidos por consórcios formados quase todos por companhias siderúrgicas, agroindustriais e mineradoras, além de bancos e fundos de pensão. A gigante MRS Logística, que explora as regiões sudeste e centro-oeste e é uma das maiores do sistema, tem como principais acionistas siderúrgicas como a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e a Usiminas, mineradoras como a MBR e empresas de fertilizantes como a Ultrafértil e a Ferteco. A CSN tem também grande participação na Ferrovia Centro-Atlântica, assim como a Mineração Tucumã e a Companhia Vale do Rio Doce. Diga-se, aliás, que boa parte das dez concessionárias atuais tem participação acionária da Vale, mineradora que ainda explora três linhas privadas – entre elas a Vitória-Minas e a Carajás – que são consideradas as mais eficientes no setor, com alta velocidade comercial (até 80 km/h, contra os 15 km/h registrados em trechos de outras ferrovias), ótimo estado de conservação da via permanente e perfeita integração com portos e terminais de armazenagem. É quase certo que as ferrovias administradas pela Vale servirão de modelo para os planos de investimentos a ser definidos sob a supervisão da ANTT.
Também é bastante provável que a própria ANTT faça indicação dos trechos que terão de sofrer obras imediatas de recuperação e ampliação e reforço na oferta de composições. É aí que as fabricantes vão entrar. O plano está sendo amarrado de tal forma que os investimentos a ser feitos nas ferrovias devem necessariamente passar pelos pátios do parque produtivo nacional. Para mostrar que a intenção do governo é de fato impulsionar o setor, o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior proibiu em caráter temporário a importação de vagões e carros de passageiros usados, uma operação muito comum dos anos 1980 para cá e que ajudou a fechar dezenas de empresas nacionais e depauperou o conjunto da indústria.
Emprego
O objetivo do governo ao dar essa providencial ajuda à indústria ferroviária brasileira não obedece somente a eventuais ditames nacionalistas – afinal de contas, as maiores empresas do setor são hoje controladas por multinacionais norte-americanas e européias. A intenção é também aproveitar seu enorme potencial como geradora de empregos. De fato, essa cadeia produtiva é um dos setores metalúrgicos que mais necessitam de mão-de-obra qualificada. E tem a característica, tal qual a indústria automobilística, de ser baseada na montagem de peças e componentes, e de exigir a participação de uma quantidade de empresas e de trabalhadores proporcional ao volume da produção. Hoje, o setor emprega 5 mil trabalhadores diretos. Nos anos 1970, eles eram 18 mil. "Se o governo conseguir articular o rearranjo da operação do sistema com uma sólida política industrial, a economia como um todo ganhará com isso", afirma o consultor Peter Alouche, diretor de publicações da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP).
O impulso ao setor também poderia estancar o processo de internacionalização da cadeia produtiva, que, por enquanto, ainda está praticamente limitado às fabricantes de vagões e carros de passageiros, que são as maiores companhias. Fornecedoras de equipamentos mais sofisticados, como eletroeletrônicos, também são quase todas multinacionais. A indústria nacional de vagões começou a desaparecer em 1995, com a falência da Cobrasma. Dois anos depois, a ex-estatal Mafersa teve as principais instalações adquiridas pela francesa Alstom, fabricante de trens para passageiros (uma unidade em Caçapava, no interior de São Paulo, continua a operar com o nome de MWL, sob controle acionário dos funcionários). A Santa Matilde também fechou na virada do ano 2000, depois de longa agonia. A Fábrica Nacional de Vagões (FNV) foi comprada pela norte-americana Amsted Maxion. Quanto às locomotivas, o Brasil hoje se contenta em apenas adaptar unidades compradas no exterior, principalmente na China – as empresas deixaram de produzir esses pesados equipamentos também na década passada.
No entanto, a internacionalização completa do setor – que sempre implica maior concentração do parque produtivo, com a eliminação das empresas sem fôlego financeiro ou grande capacitação tecnológica – é cada vez mais provável, caso algo não seja feito, devido aos rumos que a indústria ferroviária brasileira tomou com a escassez de encomendas internas e a inexistência de um cronograma de pedidos. Por uma dessas estranhas ironias, há períodos em que o setor exporta a totalidade de sua produção, mas o ritmo das vendas ao exterior é tão irregular quanto no mercado interno. O que poderia ser considerado uma façanha e prova de competência tecnológica, porém, esconde uma incrível distorção.
Tragicomédia
Obrigada a manter a capacidade instalada em patamares bastante modestos – em torno de 2 mil vagões de carga e outro tanto de carros de passageiros, por ano, o que de qualquer maneira é suficiente para fazer do parque produtivo brasileiro o segundo das Américas, perdendo somente para os Estados Unidos –, a indústria tem de dançar ao ritmo amalucado da demanda. Produz para o mercado interno quando há pedidos e, quando não, exporta. Mas há momentos em que não há encomendas nem nacionais nem estrangeiras, e outros em que ambas coincidem – o que a impede de atender a um dos clientes, geralmente o externo, para desespero dos empresários. Não há por que acreditar que as empresas suportarão esse quadro indefinidamente.
A oscilação na demanda interna de vagões, principalmente, chega a rondar a tragicomédia. Em 1991, foram fabricadas apenas seis unidades. Nos dois anos seguintes, a produção média alcançou a casa dos 200. Caiu para 70 em 1994, e disparou para 386 no ano seguinte. Mas, em 1996, apenas 26 vagões foram vendidos no país. O processo de concessões criou a necessidade de renovação da frota por parte das novas operadoras, e as vendas internas não pararam de crescer a partir de 1998, quando foram comercializados 869 vagões, alcançando o pico no ano 2000, com 1.283 unidades entregues. A partir daí, outra queda: em 2002 foram apenas 294, embora sejam um pouco melhores as perspectivas para este ano, quando devem ser vendidos 648 vagões. Mas esse número é ao mesmo tempo melhor e pior do que parece. Boa parte desses vagões faz parte de um lote de 1,8 mil unidades encomendadas à Maxion pela Vale do Rio Doce. A mineradora pretendia pedir outras 2.370 para entrega imediata, mas a fabricante não terá capacidade para atendê-la. Essas compras devem ser feitas de indústrias chinesas.
"Isso prova que o problema não é tanto a falta de encomendas, mas a absoluta ausência de planejamento das operadoras", diz Luis Cesário Amaro da Silveira, presidente da Associação Brasileira da Indústria Ferroviária (Abifer). "Temos de praticamente adivinhar o que vai acontecer e trabalhar sempre no curtíssimo prazo. Não há quem agüente." Silveira acha que esse planejamento – cuja necessidade será uma das principais reivindicações do segmento nas audiências públicas da ANTT – poderia tornar o Brasil um dos maiores players mundiais do mercado ferroviário, dado o potencial industrial e tecnológico do setor.
Diversidade
De fato, embora por conta das encomendas da Vale e das prováveis demandas a ser criadas pelo Plano de Revitalização o setor deva ficar durante algum tempo mais concentrado no mercado interno, o país parece não encontrar mesmo dificuldades para colocar sua produção no exterior. Em 1993, por exemplo, a totalidade dos vagões fabricados – 184 unidades – foi vendida no estrangeiro. Em 1995, o número de vendas externas foi de 245 – quase o dobro do comercializado internamente, 141. Já de 1998 para cá, as exportações somaram patéticas 94 unidades, reflexo óbvio do aumento da demanda das concessionárias. A América Latina e a África são os principais mercados para esse produto brasileiro, que espanta pela diversidade. A Maxion já exportou vagões de minério para o Peru e o Gabão, de produtos químicos para o Chile e de cimento para a Argentina, por exemplo. Mas a própria Europa e os Estados Unidos são compradores habituais dos produtos nacionais.
No segmento de passageiros, a penetração da indústria brasileira é igualmente oscilante, já que os únicos compradores (cujos investimentos têm sido pouco expressivos) são empresas de metrô e de trens de subúrbio – as linhas de longo percurso remanescentes foram todas fechadas durante o processo de concessão. Em 1993, as fabricantes do setor exportaram 127 dos 147 carros produzidos, mas passaram os anos seguintes sem vender para o exterior, por conta da crise da Mafersa, que era a principal empresa do segmento e naufragou tentando suprir as parcas encomendas do mercado interno. Apenas quando a Alstom reativou as instalações da companhia, na virada do ano 2000, o Brasil voltou a exportar carros para passageiros. Foram 168 "caixas" (carros sem motor) no ano passado. As perspectivas estão um pouco melhores daqui para a frente. O metrô de São Paulo e o do Rio de Janeiro estão finalmente tirando do papel antigos planos de expansão, e a empresa fechou ótimos contratos com o metrô de Nova York (EUA) – 660 carros, ao preço de quase US$ 1 milhão – e o de Santiago, no Chile, para o qual fornecerá carros e equipamentos diversos. "É a prova de que capacitação não nos falta, o que não temos é uma política global de transportes públicos no Brasil", diz Carlos Alberto Cardoso Almeida, diretor-geral de transportes da Alstom.
Mas quem deverá realmente sair ganhando nesse provável novo ciclo de investimentos ferroviários são as fabricantes de equipamentos e material de suporte, já que podem atender tanto o setor de cargas como o de passageiros. Bem mais dependentes do mercado interno do que as montadoras, essas empresas, compreensivelmente, não vêem a hora de os planos serem tirados do papel. "Ficamos um bom período fornecendo apenas peças para reposição. Felizmente, esse tempo parece ter passado", declara Roberto Mattiello, gerente comercial da SAB Wabco, produtora de freios ferroviários que é fruto da fusão de duas tradicionais companhias do segmento, a paulista Fresimbra e a fluminense Suecobrás. Confiante também está Massimo Giavina, presidente da T’Trans, uma das maiores fornecedoras de sistemas ferroviários do país e uma importante fabricante de vagões. "Estamos com nossas linhas de montagem em ponto de bala, apenas à espera de encomendas. Que elas venham logo", diz o executivo. É o que certamente todo o setor espera.
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