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Ana Branco
Ana Branco

MÉDICA PNEUMOLOGISTA E PESQUISADORA DA FIOCRUZ DEFENDE A CONTINUIDADE DE MEDIDAS DE PREVENÇÃO E COMBATE AO CORONAVÍRUS

 

Ao longo dos últimos dois anos, enfrentamos um dos maiores desafios deste século: a pandemia provocada pela Covid-19. Aprendemos e inserimos cuidados em nossa rotina e acompanhamos um grande avanço da ciência no desenvolvimento de vacinas contra o novo coronavírus. No entanto, a chegada das festas de fim de ano, o anúncio de que haverá Carnaval em 2022, a quarta onda do vírus na Europa e a descoberta de uma nova variante, a ômicron, colocam o Brasil em dúvida sobre como agir neste momento. Uma das vozes de maior repercussão na comunidade científica e um dos principais nomes dentre os inúmeros profissionais brasileiros que trabalham na linha de frente no combate à Covid-19, a médica pneumologista Margareth Dalcolmo, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), orienta: os cuidados com a Covid-19 devem continuar. “Nós só poderemos considerar uma epidemia como essa controlada, quando tivermos, no mínimo, 80% a 85% da população completamente imunizada, além de uma taxa mínima de mortes pela doença e de uma taxa mínima de internação pela doença”, faz o alerta. Autora do recém-lançado Um Tempo para não esquecer – A visão da ciência no enfrentamento da pandemia do coronavírus e o futuro da saúde (Bazar do Tempo, 2021) e de outros livros, além de possuir trabalhos científicos publicados em revistas nacionais e internacionais, a médica fala neste Encontros sobre o incessante trabalho da comunidade científica brasileira no combate ao coronavírus, quais cuidados devem ser assimilados em nosso dia a dia, e ainda aponta para o atual grande desafio da medicina: as sequelas pós-Covid.

 


Não era pneumonia

Nas últimas duas décadas, a minha área de pesquisa tem sido – sobretudo depois do auge da pandemia do HIV –, as doenças respiratórias relacionadas à imunodeficiência, entre elas a tuberculose e outras doenças causadas por micobactérias que têm sido objeto de muitas de minhas publicações. Participei do grupo de médicos que assessorou o ministro Mandetta [Luiz Henrique Mandetta, primeiro ministro da Saúde do atual governo, que deixou o cargo em 16 de abril de 2020] na revisão dos guidelines brasileiros para síndrome respiratória aguda, que, na verdade, existia desde a época do H1N1 [tipo de vírus influenza que causou uma pandemia em 2009]. Era outro o panorama do Brasil. Nós viemos a público instados pelo dever de explicar à opinião pública o que estava acontecendo, o que iria acontecer, o prognóstico de cada informação que estava sendo disseminada quer pelos órgãos governamentais, quer pelos órgãos não governamentais, internacionais ou não, nessa pandemia. Gravei uma live para um blog ligado à nossa área para o qual expliquei que a doença que chegava até nós como uma pneumonia atípica era alguma coisa muito maior do que isso. Essa live, curiosamente, naquele momento – e eu não conhecia ainda o impacto das redes –, foi gravada com o pneumologista Mauro Gomes, um colega de São Paulo que tem um site chamado Pneumoimagem. Fui dormir e ele me ligou à meia-noite dizendo: “Margareth, a live tem mais de 200 mil visualizações”. Eu nem sabia que isso era muito. No dia seguinte, de manhã, enquanto eu tomava café, ele me ligou para dizer que a soma já era de 500 mil visualizações, algo extraordinário. Já no aeroporto de Congonhas, voltando para o Rio de Janeiro, uma jornalista da Rede Globo me ligou e me chamou para ir à emissora. Fui à televisão pela primeira vez, numa longa entrevista de 40 minutos onde expliquei o que era essa pneumonia atípica que chegou até nós e que não era apenas uma pneumonia atípica, mas uma tragédia anunciada.

 

Aconteceu no Carnaval 

Os primeiros pacientes que nós tratamos no Rio de Janeiro eram oriundos do sambódromo, do Carnaval do Rio. Foi uma imprudência ter deixado acontecer o Carnaval em 2020, como também acho que será uma imprudência deixar que ele aconteça agora. Olha o que está ocorrendo na Europa: a quarta onda está instaurada. Lá, os países ainda padecem de dois problemas que por aqui são diferentes. Um deles é que ainda existe ainda um percentual da população que obedece a esses grupos que se pautam pelo obscurantismo. São os grupos – antivacinas. Felizmente, isso nunca prosperou muito no Brasil, a despeito, inclusive, de um discurso oficial contra as vacinas, menosprezando o poder epidemiológico que elas teriam. No Brasil, nós sempre tivemos uma adesão muito grande da população. O PNI, que é nosso Programa Nacional de Imunização, existe desde a segunda metade da década de 1970 e tem uma confiabilidade e uma aceitabilidade muito grande na nossa população: basta ver o orgulho para um pai e uma mãe ao mostrar a carteirinha de vacinação de seu filho ou a sua própria. São mais de 20 as vacinas disponíveis pelo SUS e isso criou uma cultura de adesão à vacinação muito grande aqui. Alia-se a esse fato uma questão que é clara, mesmo que uma pessoa reaja a esse dado ou a essa adesão: estamos vendo que diminuíram as internações nos hospitais e o número de mortes, e foram as vacinas que fizeram isso.  

 

Pujança científica brasileira

A comunidade acadêmica brasileira, apesar dessa diáspora científica, teve uma participação pujante durante a pandemia. Todos os estudos da fase 3 de vacinas – lembrando que o Brasil foi um celeiro para esses estudos, sendo o país que mais colocou voluntários em todas as vacinas que aqui desenvolveram estudos – tiveram a participação de pesquisadores brasileiros. Todos os papers [artigos científicos] publicados têm pesquisadores brasileiros, e isso é uma coisa que muita gente pode não saber e é importante que saiba. O Brasil é hoje o décimo – varia entre o décimo e o 11º país – que mais publicou artigos científicos durante a pandemia, e trabalho na instituição que mais publica, que reúne o maior número de pesquisadores, uma instituição que criou uma planta nova para fazer uma vacina de nova plataforma, a vacina da Astrazeneca Oxford. A Fiocruz teve a iniciativa e nós a acompanhamos desde o começo: tive o privilégio de ser a primeira brasileira vacinada com a vacina da Astrazeneca. Então, a Fiocruz respondeu a uma encomenda tecnológica do Ministério da Saúde e nós vamos fechar esse ano com 185 milhões de doses fabricadas no Brasil entregues ao governo brasileiro. E muitas pessoas não sabem a força das instituições brasileiras públicas. 

 

Lidar com a mídia

Estamos acostumados a dar aulas, a arguir bancas, a dar conferências –, mas estar na mídia é uma exposição de outra qualidade. Acho que todos nós enfrentamos, como eu diria, esta pergunta: Você não fica tensa? E eu digo: “Fica tenso aquele que inventa uma história, quem está contando algo que não é verdade”. Quando dou uma notícia que não é boa, e já dei muitas, quando digo que vai piorar, que vai morrer mais gente, estou dizendo a verdade. Então, acho que essa foi uma experiência nova. E toda história tem seus bastidores e esses bastidores não foram simples porque existem pressões. Nem sempre nós agradamos a todos, pelo contrário, muitas vezes desagradamos até o próprio discurso oficial. Nós produzimos um documento, há um ano, dizendo que a cloroquina não servia para nada, que tínhamos que acabar com essa polêmica, porque ela é falsa. Agora, em agosto de 2021, revisamos nosso paper sobre isso – eu estava acompanhada de mais nove pesquisadores, grandes nomes no Brasil – e fizemos esse documento que diz: não há controvérsia, não tem que perder tempo discutindo se serve ou se não serve a cloroquina. Ela não cura nada, não trata nada. Desde o início, dissemos: a Covid-19 é uma virose respiratória aguda. E toda virose respiratória aguda se resolve não com remédio, e sim com vacina, sempre foi assim, a exemplo da febre amarela, do sarampo e de outras. Agora, virose crônica, como a hepatite C, como a Aids, essas a gente trata com remédio. Ou seja, tratamos as viroses agudas com vacina: é assim que nós interceptamos a cadeia de transmissão. 

 

 

Peter Ilicciev

 

 

Momento histórico

Se me perguntassem o que de mais extraordinário ocorreu nos últimos 20 anos no mundo biológico, eu diria: as vacinas para a Covid-19. É o fato de nós termos em menos de um ano, sendo que nenhuma etapa ética fosse burlada, mais de uma dezena de vacinas aprovadas para uso em seres humanos. Sendo que foi feito: desenho, desenho exploratório, testes farmacológicos, fases pré-clínicas 1, 2, fases clínicas 1, 2, 3, registro regulatório – tudo isso em menos de um ano. Isso é algo realmente extraordinário e prova que o ser humano tem que estar preparado porque nós sabemos que outras epidemias virão. Acho que o que está acontecendo lá fora é o prenúncio do que vai acontecer aqui. E está todo mundo cansado de viver num momento que, afinal de contas, modificou as nossas vidas. Eu costumo dizer que são dois momentos de vida: Antes da Covid (A.C.) e Depois da Covid (D.C.). Nossa vida não é mais a mesma. Não adianta dizer que é igual. Vamos ter que usar máscara muito tempo ainda. Quando me perguntam: Por que você defende com veemência o passaporte vacinal? Isso fere um direito pessoal? Não, não tem isso de direito pessoal quando se está falando de uma doença que é capaz de se transmitir como é a cepa Delta, por exemplo: uma pessoa não transmite para outra, como outras doenças se transmitem de pessoa a pessoa. A Covid-19 com a cepa Delta se transmite de uma para cinco, para seis pessoas. Diante desse risco de transmissão, mesmo vacinados, porque, claro que o que intercepta [o vírus] é a vacinação, mas a vacinação que nós estamos fazendo até esse momento não é ainda uma vacinação para interferir sobre a transmissão comunitária. Nesse momento, é uma vacinação para diminuir mortes e casos graves de internação. E esse objetivo ela já alcançou. A próxima leva de vacinas, quando houver, as chamadas “vacinas de segunda geração”, provavelmente já vai interferir na transmissão comunitária. 

 

Aprender com o passado

Todas as epidemias tendem, sobretudo essas de transmissão respiratória como foram as duas coronaviroses anteriores, a Sars Cov 1 e a Mers Cov – a primeira de 17 anos atrás e a segunda de nove anos atrás –, a ficar restritas aos seus locais de origem porque o vírus não tinha essa capacidade de transmissão tão alta quanto tem o Sars Cov 2. As viroses respiratórias tendem a se enfraquecer com o passar do tempo. Assim como acabou a Sars Cov 1, como acabou a H1N1, algumas vão se tornando endêmicas, outras não. O Mers Cov, por exemplo, desapareceu e não tem mais no mundo. Em geral, quando são muito pandêmicas, elas geram um fato novo. Então, a última grande pandemia da qual nós temos lembrança é a gripe espanhola [de 1918 a 1920], que teve três ondas. A segunda onda foi muito mais letal do que a primeira. Mas, por que ela aconteceu? Porque quando a primeira onda arrefeceu era Carnaval e todo mundo foi para a rua. A segunda onda veio devastadora, basta ler os relatos do Pedro Nava [médico e escritor brasileiro, 1903-1984]: no Rio de Janeiro, cadáveres eram postos do lado de fora das casas, as pessoas arrancavam a tábua corrida para fazer caixão. Isso está registrado, é histórico. A gripe espanhola matou 50 milhões de pessoas, ¼ da população europeia. No Brasil, morreu muita gente de gripe espanhola, uma doença letal para a qual não havia nenhum tratamento. Ou seja, quando se fala de futuro, tem que se olhar para o passado. E fico me perguntando – esse é um dilema com o qual eu durmo e acordo – o que é que, nas nossas vidas, a pandemia da Covid-19 vai gerar? Será que ela vai ser capaz de gerar, pelo menos, um olhar diferente para o outro? Será que vamos nos enternecer mais com os horrores que estamos vendo? Com o fato de que um país como os Estados Unidos tem hoje quatro doses de vacina por habitante e que o Haiti, ao nosso lado, uma ilha com uma população pequenina, tem 2% da população vacinada? Essas são questões que me preocupam. 

 

Seguir protocolos

Nós temos que nos preparar para obedecer a algum tipo de protocolo. Então, por exemplo, no escritório onde você está, no verão, não é muito realista pensar que vamos ficar o tempo todo só de janela aberta, sem ar condicionado. Temos que ser realistas. Acho que todo mundo tem que ficar de máscara. A frequentação de vestiários e de banheiros também exige muito cuidado. 

As equipes destinadas à manutenção de limpeza desses ambientes também têm que trabalhar com luva, com máscara adequada: máscaras de boa qualidade, não podem ser de tecido, porque muitas não filtram nada. O ideal são as máscaras PFF2, as que mais nos protegem e que têm uma capacidade de filtro muito grande. Existem, inclusive, mecanismos de monitoramento, até aplicativos que já foram criados, do comportamento de um determinado surto para detectar precocemente se aquilo pode ficar um surto, se pode virar uma epidemia e de uma epidemia, uma pandemia, dependendo das características do patógeno, de sua capacidade de multiplicação, sua capacidade de transmissão e de sobreviver em determinados ambientes. 

 

Sequelas pós-Covid

Se me perguntarem hoje qual o maior desafio da medicina? Eu diria: as sequelas pós-Covid, a Covid longa, como nós chamamos. Não há dúvida de que a Covid-19 deixa sequelas. Pelos trabalhos publicados até o momento, 80% das pessoas que passam pela Covid-19 ficam com algum grau de sequela leve ou grave. Dessas sequelas, 58% são a chamada fadiga crônica, o que exige que todas essas pessoas – são milhões no mundo –, tenham uma reabilitação para recuperação da sua capacidade, quer seja ela funcional ou psíquica. O número de sequelas psíquicas da Covid-19 é algo inaudito, que nós nunca tínhamos pensado. Não só de pessoas que ficaram internadas, intubadas. São pessoas que permaneceram longo tempo internadas, são pessoas que tiveram o sistema nervoso central afetado – lembrando que o vírus atravessa barreiras, então, ele penetra no sistema nervoso central, por isso há muita gente que fica com alteração do humor, dor de cabeça, alteração da visão, surdez, tudo isso decorrente da ação inflamatória do vírus no sistema nervoso central. Os serviços de reabilitação pós-Covid-19 têm um grande desafio e vão ter que se organizar para isso. Hoje, nós temos serviços como o do Hospital das Clínicas em São Paulo, que necessariamente têm de ser multidisciplinares, transdisciplinares, com médicos de diversas especialidades, como pneumologistas, cardiologistas, psiquiatras, fonoaudiólogos, fisioterapeutas respiratórios e motores, e psicólogos para acompanhamento desses pacientes. É muito complexa a síndrome pós-Covid e eu diria que este é o maior desafio hoje.  

 

Quarta onda 

A pergunta que não quer calar é: “Nós também vamos ter a quarta onda no Brasil?” Olha, a possibilidade existe. Então, de que maneira prevenir uma nova onda? Mantendo cuidados ditos não farmacológicos, que são esses do bom senso, dos cuidados pessoais e coletivos, de guardar distanciamento e evitar locais fechados, muito aglomerados. O álibi de que se alcançou 60%, 65% de cobertura vacinal da população é arbitrário, ele não vale. Nós só poderemos considerar uma epidemia controlada como essa quando tivermos, no mínimo, 80% a 85% da população completamente imunizada, além de uma taxa mínima de mortes pela doença e de uma taxa mínima de internação pela doença. 

 

Festas e cuidados

Considerando que todos nós estamos vacinados e muitos já receberam as doses de reforço, acho que podemos fazer nossos congraçamentos com nossas famílias. Até porque podemos fazer testes previamente e os testes de antígenos funcionam. Hoje, nós já podemos fazer um jantar ou um almoço com nosso núcleo familiar e amigos. Mas não dá para fazer num local fechado, sem janelas, com ar condicionado, todos comendo, falando, sem máscara, porque se uma pessoa estiver doente algumas dezenas podem ficar. O Carnaval é um desastre. Normalmente, há gente de fora, turistas que vêm para o Brasil. E precisamos lembrar que os primeiros casos que nós tratamos no Rio de Janeiro eram oriundos dos sambódromos (em 2020). O que está ocorrendo agora na Europa é uma quarta onda, fazendo com que países tomem medidas sanitárias diferentes, como a Áustria, um país que ainda tem uma taxa da população bastante representativa contra a vacina e que não se vacinou. Há países europeus que têm 40% da população sem se vacinar ainda. Nos Estados Unidos, a despeito de ter quatro doses por habitantes, 40% da população não foi vacinada. Então, acho que nesse sentido, instar as pessoas a comparecer para tomar suas segundas doses ou suas doses de reforço é uma obrigação de todos nós. 


Assista ao vídeo desse Encontros com Margareth Dalcolmo

 

 

 

 

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