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Ode ao maestro

O maestro conversa com o compositor Paulinho da Viola (sem data) | Acervo CEDOC / FTMRJ
O maestro conversa com o compositor Paulinho da Viola (sem data) | Acervo CEDOC / FTMRJ

DA INCURSÃO PELO CLÁSSICO AO MERGULHO NA DIVERSIDADE CULTURAL BRASILEIRA, O PIANISTA E COMPOSITOR FRANCISCO MIGNONE É REDESCOBERTO PELA NOVA GERAÇÃO DA MÚSICA

 

Pianista, regente, compositor e professor, respeitado e atuante, Francisco Mignone deixou como legado uma extensa e abrangente obra, que inclui desde peças para os mais diversos instrumentos como piano, fagote, violino e violão, até óperas e grandes obras orquestrais. Herdeiro de um talento nato para a composição, escreveu suas primeiras peças com apenas dez anos de idade e a última, poucos meses antes de morrer, aos 88 anos, em 1986, no Rio de Janeiro. Protagonista na História da Música no Brasil, Mignone é uma das figuras centrais do meio artístico brasileiro do século 20, ao lado de nomes também da literatura, a exemplo do escritor Mário de Andrade (1893-1945), de quem foi amigo e cuja obra se tornou uma referência para o compositor. 

Filho de imigrante italiano, Francisco Mignone nasceu em São Paulo, no dia 3 de setembro de 1897, um ano depois de seu pai, o flautista Alferio Mignone, ter desembarcado no Brasil. Ainda criança, começou a estudar flauta com o pai e piano com Silvio Motto, ambos professores do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo (CDMSP). Aos 13 anos, já se apresentava como flautista e pianista em pequenas orquestras, mas foi em 1913 que iniciou seus estudos no Conservatório, que era a escola superior de música erudita e arte dramática na cidade de São Paulo, que oferecia bacharelado em música. Berço de outros artistas consagrados, o CDMSP ficava no Centro da capital,  onde hoje funciona a Sala do Conservatório, pertencente ao Complexo Theatro Municipal e sede do Quarteto de Cordas da Cidade.

 

O músico e compositor Francisco Mignone em 1972 | Domínio Público / Acervo Arquivo Nacional

 

 

Amigo modernista

No Conservatório, Francisco Mignone foi colega do escritor e ícone da Semana de Arte Moderna, Mário de Andrade [leia matéria Ecos do Modernismo, publicada na Revista E nº 299, de setembro de 2021]. Nessa época, o jovem músico participava de serenatas e compunha peças populares que, mais tarde, publicaria sob o pseudônimo de Chico Bororó. Era conhecido nas rodas de choro nos bairros do Brás, do Bixiga e da Barra Funda, na capital paulista. Paralelamente a essa faceta musical, em 1918, Mignone estreou como solista no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, interpretando o primeiro movimento do Concerto para piano, de Grieg. 

Dois anos depois, partiu para a Itália, a fim de estudar, como bolsista, no Conservatório de Milão, onde teve como mestre Vincenzo Ferroni. Lá, em 1921, ele escreveu O contratador de diamantes, sua primeira ópera, tempos depois interpretada no Rio de Janeiro pela Filarmônica de Viena sob regência de Richard Strauss. Mignone também compôs na Itália a ópera L’innocente, em 1927, cujo êxito rendeu-lhe o convite para lecionar harmonia no Conservatório Dramático Musical de São Paulo, retornando, então, ao Brasil em 1929.

 

Registro de Mário de Andrade na década de 1930: escritor modernista era amigo de Francisco Mignone e foi referência para a criação de muitas de suas obras | Kazys Vosylius / Domínio Público / Acervo Arquivo Nacional

 

Ainda que a música clássica fosse uma presença perene em sua vida, a influência e a amizade de Mário de Andrade serviram de inspiração para composições cujas referências mergulham nos estudos sobre folclore e tradições populares do escritor e pesquisador modernista. Entre as inúmeras produções dessa época, destacam-se os balés Maracatu de Chico Rei (1933) e as peças sinfônicas Batucajé (1936) e Babaloxá (1936). Compostas entre 1929 e 1936, as quatro peças para piano e orquestra que formam a obra Fantasias Brasileiras foram consideradas por Mário de Andrade como a definitiva aceitação, por parte de Francisco Mignone, de uma linguagem nacional. 

Já em 1937, na Alemanha, Francisco Mignone assume a batuta da Filarmônica de Berlim, regendo-a na interpretação de obras de sua autoria e de outros compositores brasileiros. Mas foi em 1959, quando é convidado a dirigir o Theatro Municipal do Rio de Janeiro, que ele passa a compor peças atonais, colocando um fim a sua fase mais nacionalista.

 

Reencontrar cordas

Em 1970, Francisco Mignone retoma a composição tonal e dá início à produção de obras violonísticas. Escritas para o Duo Pomponio-Zárate – formado pelo casal de violonistas argentinos Graciela Pomponio (1926-2007) e Jorge Martínez Zárate (1923-1993) –, essas peças compõem os Manuscritos de Buenos Aires. Nelas, o músico paulista revisita algumas de suas partituras mais antigas para o piano, só que retrabalhadas com novas seções e técnicas de variação. À época, o Duo Pomponio-Zárate tinha renome internacional e realizava turnês nas principais salas de concerto nos Estados Unidos e em países europeus. 

 

Manuscritos de Buenos Aires | Reprodução / Instituto Nacional de Musicología “Carlos Vega”

 

Aliás, a ligação entre Mignone e o casal de músicos argentinos inicia-se em julho de 1970, durante a realização do 2º Seminário Internacional de Violão em Porto Alegre, onde se conhecem por meio de Antônio Carlos Barbosa-Lima, outro importante músico brasileiro consagrado internacionalmente, em especial, nos Estados Unidos. Foi Barbosa-Lima quem sugeriu a Antônio Crivellaro, idealizador do Seminário Internacional de Violão, que trouxesse o duo de violonistas argentinos para o evento. 

Nesse seminário na capital gaúcha, Francisco Mignone foi o convidado de honra e teve contato com os mais importantes violonistas sul-americanos da época, incluindo o uruguaio Abel Carlevaro e os irmãos Abreu. Num churrasco, na casa de Crivellaro, Barbosa-Lima incentivou Mignone a escrever suas primeiras obras para violão. Poucas semanas depois, já no Rio de Janeiro, Mignone visitou o amigo e apresentou-lhe os primeiros quatro Estudos.

Mais tarde, em entrevista, Mignone revelou não ser “muito admirador do violão” e que o considerava “um instrumento muito simpático, durante vinte minutos”, uma vez que, depois deste período, tornava-se “cansativo”. Dificilmente, ele poderia imaginar que um dia pudesse ser convencido a escrever peças para o instrumento e ainda por cima lançar uma série de obras que o colocaria no rol dos grandes compositores mundiais para violão, ainda que tardiamente, aos 73 anos.

 

Uma das partituras dos Manuscritos de Buenos Aires, conjunto de obras que o músico e maestro brasileiro compôs para o Duo Pomponio-Zárate, da Argentina | Reprodução / Instituto Nacional de Musicología “Carlos Vega”


 

TESOUROS AO LADO

Por muitos anos desconhecidos pelo público brasileiro, os Manuscritos Argentinos de Francisco Mignone foram redescobertos recentemente, após a morte da concertista Graciela Pomponio em 2007 – seu marido e músico, Jorge Martínez Zárate, havia falecido em 1993. Foi então que a filha do casal encontrou as obras do compositor brasileiro no acervo dos pais e decidiu distribuir estas e outras partituras para alunos do Duo Pomponio-Zárate, que também tiveram uma carreira docente. 

As peças para violão de autoria de Francisco Mignone ficaram com um rapaz que acabou as embrulhando em um saco de lixo, sem qualquer identificação, deixando-as justamente na portaria do prédio que abriga, dentre várias repartições públicas, o Instituto Nacional de Musicologia Carlos Vega. Resgatados e levados para a Biblioteca do Instituto, os Manuscritos Argentinos foram restaurados e catalogados pela musicóloga argentina Silvina Mancilla. 

Anos depois, foram casualmente descobertos pelo contrabaixista Fausto Borém, professor da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), por ocasião de uma pesquisa no Instituto Nacional de Musicologia. O achado despertou o interesse do também pesquisador e músico Fernando Araújo, que prontamente iniciou um trabalho de investigação das obras (leia Ciclos Inéditos). Em 2017, quando foram celebrados os 120 anos de nascimento de Francisco Mignone, Araújo desvelou os Manuscritos Argentinos ao meio musical brasileiro em tese de doutorado defendida na UFMG.


 

Raridades em disco

Durante a maior parte da carreira de compositor de Francisco Mignone, o violão foi um instrumento praticamente ignorado. Eventualmente, era tocado pelo músico em serestas da juventude. É o que revela o violonista Fernando Araújo, coordenador do Festival Internacional de Violão de Belo Horizonte, no texto de apresentação de Francisco Mignone: Manuscritos de Buenos Aires e canções para voz e violão, álbum digital lançado pelo Selo Sesc em 2021 (leia Para o violão). Nele, Araújo divide a interpretação das peças com o também violonista Celso Faria e a soprano Mônica Pedrosa.

Este disco, aliás, trata-se de mais um desdobramento do trabalho de pesquisa que Fernando Araújo vem desenvolvendo sobre os Manuscritos de Francisco Mignone. Durante esse processo, Fernando também percebeu que revelava ao meio musical brasileiro partituras raras que, até então, não estavam registradas no catálogo do compositor.

Para o violonista Celso Faria, especialista em música brasileira, o ineditismo desse disco se deve não só pela raridade do registro das peças de Francisco Mignone para o violão, como também pelo fato de estas serem as primeiras obras de concerto para um duo de violões composta por um músico brasileiro, até onde se tem notícia. “Em 1965, Radamés Gnattali (1906-1988) – compositor e pianista no hall dos grandes nomes da música brasileira – compôs a Sonatina para Dois Violões e Violoncelo. Mas, vale frisar: pensada para apenas um duo de violões, esse pioneirismo na música clássica cabe a Mignone, que escreveu os manuscritos em 1970”, ressalta.

 

Francisco Mignone em pé (à direita) ao lado dos maestros Tavares e Manuel Cellario (piano), durante o ensaio de Vidigal: Memória de um Sargento de Milícias, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, espetáculo dirigido por Gianni Ratto (à esquerda) em 1981 | Acervo CEDOC / FTMRJ

 

 

Para o violão 

DISCO LANÇADO PELO SELO SESC TRAZ OBRAS INÉDITAS DE FRANCISCO MIGNONE

Lançado pelo Selo Sesc, o álbum digital Francisco Mignone: Manuscritos de Buenos Aires: canções para voz e violão reúne obras raras do músico, maestro e compositor Francisco Mignone para o violão. São canções para voz e violão que ganham a interpretação dos violonistas Fernando Araújo e Celso Faria, além da soprano Mônica Pedrosa que, entre outros trabalhos realizados, já integrou o New York Choral Artists e cantou junto à Filarmônica de Nova York, sob a batuta de Zubin Mehta e Leonard Slatkin. 

Para a gravação deste que é o primeiro registro fonográfico das raras partituras do compositor paulistano, o trio de intérpretes mineiros esteve junto por três meses, entre novembro de 2018 e janeiro de 2019, no Estúdio Engenho, em Belo Horizonte. Com direção musical, arranjos e edição das partituras de Fernando Araújo, o repertório é composto por 13 faixas. Destaque para as Quatro peças brasileiras, que compreendem os movimentos Maroca, Maxixando, Nazareth e Toada, duas valsas brasileiras para dois violões e ainda Canção para dois violões. Completa o álbum o conjunto de oito peças instrumentais intitulado Manuscritos de Buenos Aires e a obra Lundu para dois violões, única peça que já estava documentada em publicação nos Estados Unidos, datada de 1974.

 

Divulgacão

SERVIÇO: Francisco Mignone: Manuscritos de Buenos Aires e canções para voz e violão, álbum digital disponível no Sesc e nas plataformas de streaming.

 

 

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