Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Cinema
O Cinema pede SOCORRO

A situação do acervo brasileiro é crítica e sobrevive de ações isoladas

Em 2001, o homenageado da vi-gésima oitava edição da Jornada Internacional de Cinema da Bahia foi Jorge Amado. Recém-falecido, o es-critor baiano foi recordado em dois nú-cleos: a Mostra Especial Jorge Amado, que apresentou filmes e vídeos sobre sua vida e obra, e a Mostra Retrospec-tiva de Jorge Amado, composta de ro-mances do escritor adaptados para a grande tela. Coube a Guido Araújo, diretor-geral do festival, reunir as obras que integraram a seleção.
Tornaram-se famosas as produções de Dona Flor e seus dois maridos, dirigida em 1975 por Bruno Barreto, Jubiabá (1986), de Nelson Pereira dos Santos e a mais recente, Tieta do agreste (1996), de Cacá Diegues. Entretanto, a primei-ra das adaptações de Jorge Amado não poderia ficar de fora. Produzida pela Atlântida em 1948, Terra violenta teve direção do norte-americano Eddie Bernoudy. Esse filme baseou-se no romance Terras do sem fim, de 1943, e contou com um dos maiores galãs da história do cinema brasileiro, Ansel-mo Duarte, além da beleza de Maria Fernanda, filha da escritora Cecília Meireles.
Guido, então, partiu em busca dos títulos. Ao procurar nos acervos da Cinemateca do MAM, no Rio de Janeiro, e da Cinemateca Brasileira, em São Paulo, o professor baiano percebeu que a tarefa não seria fácil. “Percebi que, sem recursos financeiros, não conseguiríamos reunir nem metade dos títulos”, relembra. Para parte deles, que estava em condições minimamente razoáveis, Guido conseguiu verba para a recuperação. No entanto, alguns filmes estavam em condições muito precárias. Era o caso justamente de Terra violenta, abandonado no acervo da cinemateca carioca. “A situação era tão grave que precisávamos de mais de cinqüenta mil reais para exibir o filme novamente. Batalhei muito, mas nin-guém se dispôs a patrocinar a recupe-ração, e tivemos que fazer a jornada sem essa produção”, recorda.
Para surpresa de Guido, alguns meses depois as tentativas surtiram efeito: o reitor de uma universidade italiana se dispôs a bancar a restauração do filme. Mas já era tarde. Mesmo com o di-nheiro em mãos, a recuperação já não era mais possível. Em poucos meses, as condições se agravaram e o filme já não tinha salvação. Simplesmente morrera - como é de costume se referir, no meio cinematográfico, aos filmes cujas cópias ficam sem condições de serem recupe-radas ou exibidas.
Esse é apenas mais um caso que re-trata a triste situação do acervo cinematográfico brasileiro. São milhares de rolos de filme entregues à própria sorte. Quando não estão perdidos em acervos pessoais, ficam abandonados por anos em arquivos precários nas ci-nematecas do país. “A situação dos nossos filmes é realmente crítica”, confirma Myrna Brandão, presidente do Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro (CPCB), sediado no Rio de Janeiro. “Já perdemos inúmeros títulos, inclusive alguns mais recentes, como os da época do Cinema Novo e das Chan-chadas. Há inúmeros exemplos, filmes importantes como nosso primeiro musical, Coisas nossas, produzido na década de 1930.”

Trabalho solitário
Uma batalha constante de Myrna e do CPCB é pela criação de uma política que garanta a preservação dos fil-mes nacionais. “Na legislação, essa questão não é levada em considera-ção. Não há uma ação institucional promovida pelo governo, há apenas ações isoladas, como as do CPCB e de famílias de diretores e produtores”, argumenta. “Somos uma entidade sem fins lucrativos. Como não temos recursos, precisamos trabalhar com as leis de incentivo à cultura. Assim, estamos subordinados à decisão das empresas em preservar ou não.”
Mesmo assim, com um trabalho lento mas persistente, a entidade já está restaurando seu terceiro filme. “O primeiro foi Aviso aos navegantes, uma chanchada importantíssima produzida pela Atlântida”, recorda. “Levamos três anos para captar recursos, foi uma luta. Nesses casos, as empresas não têm o mesmo retorno financeiro que teriam se patrocinassem uma produção nova, mas estão investindo na memória do país, uma memória que está se perdendo”, explica.
Outro filme restaurado por iniciativa do CPCB é Tudo azul, de 1952, que tinha no elenco a cantora Marlene e o ator Luiz Delfino. Porém, ao iniciar o processo de restauração, percebeu-se que havia um trecho em que o áudio estava totalmente perdido. “Tivemos que pedir ajuda aos integrantes de um instituto de surdos e mudos para que eles recuperassem os diálogos por meio de leitura labial”, lembra Myrna. Com o texto em mãos, foram os próprios protagonistas do filme, quase cinqüenta anos depois, os convocados para fazer a dublagem. “Só quem acompanha um trabalho desses tem idéia de como ele é complexo”, afirma a pesquisadora.
Na verdade, são poucos os que têm oportunidade de fazê-lo, já que além de escassas iniciativas de restauração, há poucos profissionais habilitados. Um deles é Francisco Moreira, do Depar-tamento de Restauração da empresa carioca Labocine, responsável pela restauração de O ébrio, dirigido por Gilda de Abreu em 1946; É um caso de polícia, filmado por Carla Civelli em 1959; Alô, alô, carnaval! (1936), de Adhemar Gonzaga; Aviso aos navegantes (1951), de Watson Macedo; Tudo azul, de Moacir Fenelon, e, em processo, Menino de engenho, dirigido em 1965 por Walter Lima Júnior.
Para Francisco, o mau armazenamento é um dos principais responsáveis pelas condições em que se encontram os filmes nacionais. Segundo ele, a preocupação com essa questão é relativamente recente. “Os primeiros arqui-vos climatizados, essenciais para a preservação do material, surgiram no começo da década de 1980. Antes disso, as condições de armazenamento eram realmente muito ruins. Desse modo, os filmes, independentemente de sua idade, já herdaram todas as seqüelas dessa má conservação”, explica. “Outro dia, para minha surpresa, encontrei um filme montado em 1997 e que estava armazenado na Cinemateca do MAM do Rio de Janeiro. Além da presença de fungos, ele estava todo mofado”, relata. “A situação, sem querer aterrorizar, está à beira da catástrofe.”
Francisco acredita que tamanho descaso deve-se à pouca importância que se dá à cultura no país. “As insti-tuições padecem de uma indigência crônica; não há dinheiro. Nunca houve condições para desenvolver um traba-lho amplo de restauração”, explica. “Esse é um processo relativamente caro. Se gasta muito filme para obter um bom resultado. Além disso, leva-se tempo. Para restaurar um longa em um estado razoável, não levo menos de seis, sete meses. E nesse período, infelizmente, devem haver muitos filmes sendo perdidos.”

Memória em fotogramas
Para garantir que pelo menos parte do acervo constituído por seu pai ao longo de mais de quarenta anos não tivesse o mesmo destino de grande parcela dos filmes nacionais, Alice Gonzaga decidiu enfrentar as dificuldades. “Há vinte anos, quando comecei a batalhar pela preservação, o pessoal caçoava de mim: ‘Lá vem ela com aqueles filmes velhos’”, recorda. “Hoje, graças a Deus, esse trabalho é reco-nhecido, embora ainda falte muito para termos um acervo digno.” Alice é filha de Adhemar Gonzaga, um dos mais importantes diretores e produtores do cinema nacional. Pioneiro, o carioca concebeu o primeiro grande estúdio de cinema do Brasil, a Cinédia.
A produtora é uma das responsáveis por grande parte da primeira geração de técnicos e atores cinematográficos. Por lá passaram Paulo Gracindo, Cyll Farney, Oscarito, Dircinha Batista e muitos outros. A empresa realizou filmes como O ébrio, Bonequinha de seda (1936) e Alô, alô, carnaval!.
Alice assumiu o comando da empresa quando o pai faleceu em 1977. “A Cinédia fez 55 longas, entre produções e co-produções. Seu Gonzaga dizia que esse acervo seria nossa grande herança. Por isso, venho lutando para conservá-lo, para difundir o que se fez de bom no cinema nacional e reapresentar os artistas que hoje correm o risco de serem esquecidos”, afirma.
Em 1996, uma grande enchente em Jacarepaguá invadiu os arquivos da produtora, atingindo muitos dos filmes armazenados. “Tivemos que lavá-los e tirar a lama com ultra-som”, recorda Alice. “Sendo lavados, os filmes têm pouca duração. Por isso tenho que correr para salvá-los. Do contrário, eles se perderão.”
Nessa batalha, Alice já conseguiu verba para restaurar O ébrio e Alô, alô, carnaval!. “São filmes fundamentais. Alô, alô, carnaval! é o único em que Carmem Miranda aparece em um número em que não está vestida de baiana. Essa é uma obra-símbolo da época de ouro da comédia musical, com participação de Francisco Alves, Mário Reis e Dircinha Batista. O filme registra essas pessoas, que foram importantíssimas na era do rádio e que constituíram a semente da música popular brasileira”, explica. “Já O ébrio, considero a maior bilheteria do cinema brasileiro. Desde 1946, quando estreou, ele nunca deixou de ser exibido; há cópias piratas por tudo quanto é lugar. Até hoje, o filme é um sucesso”, argumenta. “Essa é a cara do país”, retoma Francisco Moreira. “É nossa história, nossos costumes, nosso patrimônio audiovisual. São registros únicos, que têm que ser preservados. Sem dúvida, o fotograma é a matriz mais confiável, que reproduz com mais fidelidade nossa herança histórica.” Myrna concorda e acrescenta: “O cinema é uma arte estratégica. Se a população brasileira não tiver acesso a esses importantes filmes - à sua cultura, em última análise -, acabará adotando valores de outros países”, argumenta. “A memória cultural é uma questão de soberania”, conclui.

Não basta restaurar
Desde janeiro deste ano, o Sesc Ipiranga vem exibindo mensalmente, em primeira mão na cidade de São Paulo, as cópias recém-restauradas de filmes que compuseram a história do cinema nacional.
Além das projeções, o Cinema 35mm Restaurado promove debates e apresentações musicais. Inaugurando o projeto, exibiu-se O ébrio (1946), de Gilda de Abreu, precedido por um bate-papo com Alice Gonzaga e a apresentação do Grupo de Macambira interpretando canções do protagonista do filme, o cantor Vicente Celestino.
Em agosto será a vez de Maridinho de luxo (1938), dirigido por Luiz de Barros e produzido pela Cinédia. “O projeto é uma forma de darmos nossa contribuição à preservação do cinema nacional”, afirma Devanilson José Furlan, técnico do Sesc Ipiranga e responsável pelo projeto. “Não há cinemas no bairro. Além de transformar o teatro da unidade em uma sala de projeção, também propiciamos que as pessoas, por meio de palestras e apresentações, tomem maior contato com esse importante patrimônio que é o nosso cinema. E a resposta tem sido ótima. Há pessoas de todas as idades, e todos saem do evento extremamente satisfeitos”, atesta.