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Ficção Inédita
Lucí, querida
Wilson Bueno
Somos Lucí, a cobra.
Pois não é que nos formamos mesmo em Direito, optando pela nobre especialização em criminalística?! Linda foi a cerimônia de colação de grau: o leão, de paraninfo, a derramar as mais belas flores de estilo, conclamando-nos a todos, jovens bacharéis, a lutar pela Justiça, coisa fácil para o leão deitar discurso, ele que, embora presidente da Floresta, mal concluiu, em Sorocaba, diz a malta que nas coxas, ah!!!, o curso de Veterinária.
Veterinária é bom - nhoc nhoc, nhéco nhéco. Ah!!! Cobra viva que sou! Falo e suspeito, mais suspeito que falo, e estou sempre de prontidão, as presas, as duas, afiadas e em gume, no ar assim, prontas ao bote. Ah!!! Vá lá alguém confiar em leões mal-eleitos para nos reger o destino. Ah!!! Gente do céu, imagina se cobra não sou?
Morámos à beira da Lagoa, desde que desfizemos, nós e o Macaco, a sociedade na agência de turismo Ao Recanto Silvestre, cuja sede o Macaco teimava porque teimava que devia ser na copa das árvores, sob o argumento de que, nesse ramo, o sucesso está em inovar, em inovar sempre. Acabámos escolhendo, na perigosa proximidade da estrada que corta a Floresta, a frondosa confluência de três jequitibás. Difícil chegar lá em cima, mormente para nós, os répteis. Para o Macaco não, ir ao escritório, todos os dias, era um passeio, gozoso pulo, ah!!!, e foi por isso mesmo que decidimos morar atrás do computador, entre uma pasta com catálogos de Miami e outra anunciando, para quem quisesse ver, as delícias das Bahamas. Ao Macaco sobrava gosto para navegar na Internet, às vezes noites inteiras.
Ah!!! Nem parecíamos a cobra que somos, posto que cobra criada ainda não éramos inteiramente... Imaginai alguma cobra deste mundo de Deus associar-se ao Macaco? Logo ao Macaco? Que cobra éramos? - chegou a perguntar cheio de raiva, o Urutu, com quem estávamos nós, àquele tempo desatinado, completamente noiva. Mas não fomos além - urutu-cruzeiro costumava errar pelas noites atrás de rãs desprevenidas e ovos de galinheiro, deixando-nos perdidamente sozinhas à beira da Lagoa, justo ali onde chorámos as mais deslavadas lágrimas de amor, nem queiram. Ah!!!
Devo confessar que somos de ordinário elegantes, de uma elegância atenta e quase sempre armada, franca que somos, e extremamente sinceras. O fato de volta e meia sermos acionadas pelos tribunais que defendem os direitos dos animais, e por vezes chamadas de falsas, deve-se a alguns desprezíveis pintainhos que terminámos engolindo pelo passado. Hoje, senhores, nem isso - alimentámo-nos de pequenos escorpiões, um que outro girino, ovos de granja, o que é supremamente assimilável, para usar a palavra da moda, posto que galinha de granja não é bem galinha senão a metáfora de uma galinha ou, se preferirem, apenas uma galinha virtual.
Não, nunca mais aquelas ninhadas inteiras de pintainhos desatentos em sua chilreante inocência, um a um, piando, hipnotizados pelo que de verde nossos olhos rechamam e caindo-nos à boca escancarada de presas afiadas como gumes. De nós, já sabem - leais; ainda que esquivas, leais. E sobretudo francas, de uma franqueza que por vezes nos causa sérios problemas - acabámos por dizer tudo o que sentimos. Ah!!! Tivesse cabelos os sacudiria assim de um modo altivo e desaforado, com a insolência da cobra que somos desde o princípio, desde sempre, desde o Éden e a primeira vez. Ah!!! Cabelos não temos.
Tudo se deu quando o Corvo nos procurou com vista a tratativas em torno de umas carniças arbitrariamente tomadas de assalto pela Águia, para além do Campo do Meio, ali onde, não é de hoje, meus lindos corvos e águias vêm se batendo há mais de duas gerações. O Campo é fértil depositário de elefantes morituros, a giz e cal um autêntico cemitério de ossos, alvos da alvura de um cão, e ali tem sido o palco da refrega. Ao longo desta rinha, mais de quinze corvos, antigos e modernos, foram mortos a tocaia e, contam, ao menos sete águias já pereceram desde o início do entrevero. O Campo do Meio, seguidamente alimentado de elefantes gravemente enfermos, é sempre a festa e o álacre regozijo das aves de rapina.
Dou toda razão a Águia, pois desde que me conheço por cobra, sei que é ali, à fronde das altíssimas paineiras, no que o Campo do Meio é pródigo, que procriam e incensam, ninam e nanam as águias meninas, e mesmo as águias mocinhas, a farta carne apodrecida dos elefantes, logo embaixo, ao alcance do bico e ao furor dos olhos que, muito de perto, enxergam demais feito lentes de aumento pois nunca recusámos o fato de que ver é, dela, da Águia, o mais afiado ofício. Ia dizendo ofídio, mas ofídio somos nós. Ah!!! Já ao Corvo, meu cliente, sobram argumentos - do testemunho de Deus assegurando que na qualidade de ave de rapina veio primeiro o nosso constituído às certezas tácitas de que muito antes das águias chegarem ao Campo do Meio, já lá estavam, grasnentos e urubus, voejantes e agoureiros; já lá estavam os tetravós do Corvo, este nosso cliente que, vos confidencio, fede um pouco, não exagerámos, um pouquinho acho que sim, mormente debaixo do rabinho. Ah!!! Descabelámos. Cabelos temos cobra que somos? Ah!!! Nem nas virilhas. Ah!!!
Fomos ver os ovos, isto era o que mais desejámos ao longo dos dias, desde que o Corvo contratara nossos serviços, quase digo honorários, mas calo-me, meus lindos, pois só vós sabeis o quanto para dinheiro não ligo, modestíssimas que somos, de hábitos frugais e caprichos idem, pois fomos ver os ovos da Águia que o Corvo havia feito refém tendo por cativeiro seu ninho. Andámos de olhos vendados boa parte de confusa travessia e só quando à borda de uma escarpa, a oeste do Campo do Meio, se não nos falha a língua, que a tudo sondava, antena canina, tivemos retirada a venda e ah!!!, da Águia ali os ovos feito um raro vinho, lácteos ovos divinos, em meio ao acerbo carniçal do ninho - aqui a perna enegrecida de uma rã, ali a aorta ainda pulsante de um elefante doentio, acolá o fígado inteiro de uma doninha. Ah!!! Como pode o ouro conviver com a fedentina, foi o que quedámos a indagar estupefatas à borda sanguinolenta do ninho.
Sairiam dali águias imperatrizes, de luxuriante penacho, que haveriam de fazer, de novo, de nós, ofídios, o pitéu mais apetecido, e num instante de agudo senso jurídico, peticionei ao Corvo, nosso constituído, a guarda de tão imensurável tesouro e assim que voejou, grasnento e lúbrico, o bico sangrando do sangue velho de uma elefoa, lambi, de cada futura ave, a sua alma líquida e estrelada de ovo glúteo e glabro, clara e gema, vero ovo de águia imperadora. Ah!!! E Cobra não sou?
Esgueirando-me pelas noturnas vielas, a língua tesa e viperina, coleei-me escarpa abaixo, pedra por pedra, rio por rio, e assim foi que de sombra em sombra dei com o Campo do Meio e as águias assentadas, invasoras, quase felinas. Logo de cara, argüiram-nos feito fôssemos bandidas, meretrizes. Lucí, querida. Não nos confunda, cobra causídica que somos, o verbo na boca, data vênia, as vistas do processo, e a vitória no fórum, ouviu? Ouviram? Lucí, querida. E foi uma festa de águias ocupadas com o sangue quente de ao menos cinco elefantes moribundos. Lá iriam se haver com um reles ofídio, ainda por cima formado em criminalística feito o que de ofídio somos? Claro que não, águias são águias e é todo delas o descortino.
Só me indagaram do Corvo que troça e trôo, onde andava o assassino. Nem um telefonema havia dado ainda o seqüestrador aos pais dos ovos, duas águias imperadoras, de amplo penacho e sobejas coroas. Ah!!! Aquietámos delas a alma em alvoroço, dizendo-lhes da dúvida de ainda se encontrarem vivos os ovos cativos. Para desespero das águias, claro, que, em todas as gerações, nem uma vez sequer, botaram fé no Corvo. Vivos os ovos cativos? Uma ova - falou entre a serrilha do bico a Águia, nossa professora. Ah!!! Que de rimas e rumores.
Dando com o Corvo, homiziado na igualmente fétida caverna da Hiena, outra conspiradora, às gargalhadas com ela, dançava nosso constituído. Riam-se de que, de que se riam Corvo e Hiena? - perguntámos, mas não obtivemos resposta alguma. Lenta chegámos e pudemos dizer aos dois, de inopino, que águia não mais havia no Campo do Meio, o que era, não refutámos, uma curiosa mentira.
Alucinado de amor, correu o Corvo a sacar de debaixo da asa a carteira e a pagar-nos, ao vivo e à vista, todo o não pouco dinheiro embutido nas tratativas e avisámos que voasse célere para devolver, da Águia, os alvos ovos nacarados. O que fez de imediato nosso constituído, grasnando e um pouco se rindo, da Hiena, o seu alvoroço, de fêmea no cio. Corvo e Hiena, pensámos, o que dará de um casal assim? Amêndoas com casca? Chouriço? Uma viagem para a Abissínia? Só o que sabemos, e disso não temos dúvida, malcheiram deles os beijos mais amorosos, digámos; e não pensemos mais nisso. Ah!!!
Rápido foi o tempo de chamar a um canto a Hiena e dizer-lhe de perto, baixinho, vede que Corvo, o seu corvo marido, que apuro de vôo e que de negras asas bailarinas, vê lá, o que de malabarismo e voejante coreografia, e enquanto via, a dentuça Hiena, de cruento focinho, apertando contra o céu os olhos pequeninos, prontas ao bote não hesitámos - num bote, um bote apenas, cravámos-lhe as presas, as duas, no grosseiro calcanhar de Aquiles.
Assim, ó - ah!!!
E muito mais que aos pintainhos, contra os quais nos pisam a honra, e os morticínios, dilatámos, dilatámos, de modo e jeito a engolir inteira a Hiena e seus mais dois filhinhos, mortos de surpresa, os pequenos ingênuos, ambos bem estragadinhos, mas comíveis, sobretudo porque da tenra carne o que mais amámos, amámos e regurgitámos, é o latejante coraçãozinho. Ah!!!
A hora que o Corvo retornar à caverna da amada, há de nos encontrar, por no mínimo três meses profundamente dormindo. A dinheirama em Kayman e, a Hiena, inteirinha na barriga.
Acho também que agora todos entenderam porque é impossível dar certo qualquer sociedade com o Macaco em torno de uma agência de turismo. É teimoso, o Macaco; e a carne, dura.
Lucí, querida.
Wilson Bueno é escritor, autor de Mar Paraguayo (Iluminuras), Cristal (Siciliano), entre outros