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Teatro
De volta à cena
Em texto exclusivo, Berta Zemel, uma das grandes atrizes do teatro brasileiro, declara que nunca se afastou dos palcos
As manifestações artísticas nessa época moderna, em que tantos valores se romperam e outros surgiram e envelheceram com a rapidez de um raio, demonstram que valores eternos permaneceram nestes "novos tempos" (expressão de Hegel que prefiro à expressão "pós-moderna"). O projeto da modernidade ainda não foi cumprido e, apesar de tantas mudanças radicais, os conteúdos permanentes continuam vivos - com outras formas. Foram esses conteúdos que persegui.
Durante duas décadas não estive afastada dos palcos como muitos afirmaram. Eu continuava em outras áreas da cena. Na primeira década fiquei ausente apenas do circuito regular, mas, por meio da companhia Teatro Móvel de São Paulo, viajamos durante anos seguidos pelo interior de São Paulo e pelas capitais e interior de outros estados, enfim, por todo o país. Estávamos presentes em cidades pequenas e médias, onde o teatro regular não chega.
Caminhamos por circuitos universitários, colegiais e cidades dispostas a nos acolher em um trabalho atento, sempre observando bem de perto a reação do espectador. Fazíamos isso com pesquisas, debates, horas e horas gravadas com a opinião de toda a sorte de espectador, cursos, seminários e oficinas em quase todas as cidades pelas quais passávamos. O processo era buscar fatos que estavam acontecendo dentro e fora do espetáculo. Procurávamos uma transformação que, se acontecesse, deveria vir do próprio público, a fim de sabermos como construir um conteúdo e fazer dele uma comunicação.
Paralelamente a essa busca, comecei a perceber que seria ainda mais enriquecedor trabalhar com pretendentes a ator. Mas trabalhar de maneira aberta, refletindo as questões que íamos colhendo no curso dessas viagens e observando em profundidade as necessidades dos grupos que vinham buscar ensinamentos - busca que transformamos em algo maior que uma aula: em uma parceria.
A partir dessa premissa, juntos fazíamos perguntas, hipóteses e, muitas vezes, tínhamos poucas certezas. Nesse trabalho, já na segunda década, realizamos laboratórios cênicos, oficinas teatrais, experiências com textos - sempre dos melhores escritores de seus tempos, nacionais e estrangeiros: Sófocles, Molière, Martins Pena, Roberto Gomes, Antonin Artaud, Machado de Assis; além de autores fora do gênero teatral, como poetas e romancistas, cujas obras transformávamos em espetáculos por meio de um trabalho em profundidade.
Estava disposta a continuar essa pesquisa que realizava e realizo com muita liberdade e prazer. Um determinado dia, recebi o telefonema do diretor e autor teatral Luiz Valcazaras, que me dizia estar em um projeto que tinha como tema o trabalho e as cartas da psiquiatra Nise da Silveira ao filósofo Baruch Spinoza. Wolney de Assis, meu companheiro, que trabalhou lado a lado comigo em todos esses anos, também ator, diretor de teatro e psicanalista, há algum tempo havia me dado um livro de Nise da Silveira, Mundo das Imagens.
Fiquei fascinada com o convite; refleti sobre a minha volta. Marquei um encontro com Luiz para conversarmos, e quando ele me disse que o processo de trabalho seria de inteira liberdade de pesquisa e criação, sem limite de tempo, eu disse: "Faço". Imediatamente começamos a trabalhar. Percebi a profundidade e a qualidade que Luiz exigia e me entreguei inteiramente a esse trabalho, sem limites mas coordenado.
Em março de 2000 o espetáculo estava montado. Estreamos Anjo Duro em Curitiba com grande sucesso. Viemos a São Paulo e estreamos para nossa primeira temporada regular no teatro Sérgio Cardoso. Devido ao grande sucesso e à aceitação popular, estendemos a temporada para outro teatro, o TBC. Seguiram-se temporadas em Recife, Olinda, Rio de Janeiro e Baixada Fluminense. Voltando a São Paulo, fizemos uma nova temporada no teatro Centro da Terra e continuamos pelos bairros de São Paulo, em teatros do município e nos Sescs Ipiranga e São Caetano. No momento em que escrevo este depoimento, nos preparamos para uma apresentação no Sesc Pinheiros.
A resposta do público, da crítica, dos colegas e o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) deram-me a certeza de que a minha continuação no palco, além dos cursos e oficinas, era uma decisão para o resto da vida. Volto à minha casa, que é o teatro, perplexa ao pensar como pude ficar tanto tempo fora de cena como atriz. E já preparo novos projetos, inclusive o estabelecimento de um espaço em que todos esses trabalhos de pesquisa teatral, cursos livres, debates e oficinas, que hoje realizamos em nossa escola Fábrica, serão desenvolvidos, com calma, tempo e a profundidade necessários.
Ao lado do espetáculo Anjo Duro, que continuará sua carreira por um longo tempo ainda (espero), pretendo montar ou remontar A Vinda do Messias, de Timochenco Wehby, que conta a história de uma moça que vem do interior para a capital de São Paulo e que, por fazer parte de um contingente humano sem mão-de-obra especializada, se perde no mundo da comunicação e no discurso de vários salvadores (messias) que lhe são oferecidos. Pensamos em montar também D. Iaiá, a história de uma mulher de família rica, urbana, do início do século em São Paulo, que, por ter vontade própria e se colocar contra a hipocrisia da sociedade da época, é alijada da família e da sociedade, segregada como louca (ou teria ficado louca) e trancada em seu quarto por anos a fio.
Acredito no teatro como foro privilegiado de debates e comunicação. Nada mais próximo, profundo e ainda mais diversificador do que um ser humano se abrindo e se contando para outro ser. É isso que o teatro faz melhor e é aí que pretendo estar em todos os meus momentos daqui em diante.
Berta Zemel apresentou o espetáculo Anjo Duro, em agosto, no Sesc Pinheiros