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por João Rocha Rodrigues

Novas tecnologias e a expansão do espaço nas televisões e salas de cinema dão novo fôlego ao documentário neste início de século

A produção de documentários nacionais vive uma fase particularmente interessante. O festival internacional É Tudo Verdade, co-realizado pelo Sesc São Paulo, já passa de sua sétima edição, consolidado como o maior evento do gênero na América Latina e um dos mais importantes do mundo. Novos trabalhos conquistam as cobiçadas salas de projeção brasileiras com bilheterias surpreendentes e asseguram também espaço em importantes eventos do cinema nacional, como o disputado Festival de Gramado. Além disso, a televisão começa a se abrir às obras das produtoras independentes e novas tecnologias promovem uma ampliação do acesso às ferramentas audiovisuais. Diante desse quadro, a riqueza e a capacidade do país saltam aos olhos, mas ainda se restringem a um modesto lugar nas telas, sejam elas grandes ou pequenas.
Para Carlos Ebert, fotógrafo de cinema e vice-presidente da Associação Brasileira de Cinematografia, o documentário vive da diversidade de pontos de vista, de enfoques. "Acho que, sob esse aspecto, o brasileiro é muito rico. Você encontra hoje todos os tipos de abordagens, de formatos clássicos até propostas de investigação de linguagens." Leopoldo Nunes, presidente da Associação Brasileira de Documentaristas, concorda. "No Brasil, o documentário reuniu gente de tendências muito diferentes. Além disso, temos hoje base de produção e realizadores com olhares maduros em todos os cantos do país", acrescenta. "Vim agora de Belém do Pará e conheci pessoas incríveis que trabalham com a Amazônia. Um tempo atrás, apenas paulistas e cariocas faziam filmes sobre aquele lugar. Hoje há gente de lá produzindo. E é interessante porque eles têm uma visão crítica em relação ao que já se fez - eles vêem a região de uma maneira diferente", aponta. "É muito importante que haja essa diversidade."
No entanto, essa riqueza cultural do país ainda se encontra pouco explorada. É o que defende Maurício Dias, um dos produtores da Grifa Cinematográfica. "Fui a palestras e debates no mundo inteiro, e todos falam que o maior potencial de documentários do mundo se encontra na América Latina", afirma. "Há milhares deles sobre a Europa, a África, os EUA, a Austrália e até sobre a Nova Zelândia. Ninguém agüenta mais ver filmes sobre castelos, a história do vinho ou sobre o elefante africano", ironiza. "Temos uma série de elementos no Brasil que viabilizariam grandes produções do gênero", argumenta. "Sempre ouvimos dizer que o Brasil é um país sem história, mas na verdade ele é um país sem registro."
E, realmente, o interesse do mundo pelos nossos temas tem se refletido nas seleções dos principais eventos internacionais do gênero. É o que atesta Amir Labaki, diretor do festival É Tudo Verdade. "Nos últimos anos tenho corrido mundo com ciclos especiais de documentários brasileiros e encontrado salas cheias e platéias muito interessadas, de Montreal a Lussas, de Helsinque a Lisboa. Além disso, os principais festivais no mundo, como os de Amsterdã, Marselha e Lion, têm destacado anualmente a produção brasileira."

Tecnologia digital
Para Amir, um dos motivos do crescimento do documentário no país é a incorporação das novas tecnologias. "O vídeo digital ampliou a produção e alargou o universo temático possível. Com câmeras menores e fitas muito mais baratas, é possível rodar em espaços exíguos, com maior intimidade e por mais tempo. Quantidade, em geral, traz qualidade. Houve um inegável amadurecimento da produção brasileira nos últimos cinco anos", afirma. "Hoje é possível montar uma boa produtora com 10 mil dólares", retoma Ebert. "Essas condições propiciaram uma explosão documental, mas não necessariamente um aumento de qualidade. Acho prematuro afirmar isso", pondera. "O curioso é que a tecnologia está gerando uma investigação maior da linguagem. O fato de pessoas sem uma cultura audiovisual muito elaborada anteriormente estarem usando equipamentos de captação cinematográfica é interessantíssimo. Há uma democratização das ferramentas: pessoas de outras áreas, como artistas plásticos, gente de teatro, sociólogos e antropólogos em contato direto com instrumentos da produção audiovisual. Acredito que isso pode mexer com a linguagem, ampliá-la", vislumbra.
Como exemplo de uma aplicação bem-sucedida das novas possibilidades que a tecnologia propiciou, Ebert cita Eduardo Coutinho. Referência mundial no documentário, o diretor estabeleceu uma forma muito particular de produção. "Ela até se aprofundou com a tecnologia digital", lembra Ebert. "Quando ela apareceu, Coutinho já estava precisando de suas ferramentas. Então ele rapidamente se apropriou dessa tecnologia de uma forma interessante, propondo uma multiplicidade de pontos de vista, delegando o documentário para outros profissionais."
Considerado um dos mais importantes documentaristas ativos no mundo, Coutinho acaba de lançar no Festival de Gramado sua mais recente produção, Edifício Master, premiada pelo júri como melhor longa documental. Filmada com câmeras digitais, a obra enfoca o cotidiano desse condomínio carioca centrando-se nos depoimentos dos personagens, ricamente explorados pelo cineasta. Além disso, ele se prepara, ao lado de João Moreira Salles, para registrar de maneira singular a campanha eleitoral em curso.

Telas pequenas
Apesar de normalmente ter custos mais reduzidos que a produção ficcional, o documentário ainda é uma obra de difícil viabilização, mesmo com a chegada da tecnologia digital. Entretanto, diante de sua importância, vários países, principalmente os europeus, desenvolveram maneiras de garantir uma produção sistemática, que geralmente envolvem os canais de televisão. "Não há produção de documentários dissociada da parceria com a televisão", afirma Labaki. "Para nós, não há outra alternativa. A economia do gênero no Brasil só sairá do estágio precário que lhe é crônico com o estabelecimento de uma parceria muito estreita com as televisões abertas e por assinatura."
Ainda hoje, o maior problema enfrentado pela produção nacional é a ausência de espaço para a veiculação. "O documentário é uma obra de televisão, é seu canal natural", acredita Leopoldo Nunes. "Tanto que, diante do advento dos canais a cabo na década de 1990, este foi o gênero que mais cresceu."
Ele tem razão. Os canais a cabo passaram a ser mundialmente os grandes consumidores do gênero. Caso exemplar é o do Discovery Channel: em cerca de uma década conquistou enorme espaço entre o público de todo o mundo. "Essa é uma tendência que perseguimos", afirma o diretor da Grifa Cinematográfica. Em apenas seis anos de funcionamento, a produtora já realizou mais de trinta filmes, especializando-se nos trabalhos voltados à televisão. "No Caminho da Expedição Langsdorff, que foi o último filme que dirigi, passou em canais de todo o mundo", afirma Maurício. A produção foi viabilizada por meio de uma parceria entre a Discovery Internacional, a France 3 e a Grifa. No Brasil, o filme foi exibido na TV Escola e na TV Cultura. "Essa é uma metodologia, mas é um mercado no qual o Brasil ainda está mal posicionado", lamenta o diretor.
Outra alternativa, comum em muitos países, mas ainda rara entre os brasileiros, é a encomenda de documentários por parte dos canais de televisão. Um exemplo recente é A Guerra dos Paulistas, sobre a Revolução de 1932, solicitado pela TV Cultura e pela Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo aos diretores Luis Bolognesi e Laís Bodanzky. "Foi um prazer enorme ser chamada para fazer um trabalho desses", afirma a consagrada diretora de Bicho de Sete Cabeças e, também ao lado de Bolognesi, do documentário Cine Mambembe - O Cinema Descobre o Brasil. "É muito importante revisitar esses fatos, nossa memória recente. Essa história tinha que ser recontada", argumenta.
A diretora considera muito interessante a experiência de retomar o documentário depois do êxito de seu primeiro longa ficcional. "São processos de trabalho diferentes, mas acho que a proximidade com a ficção nos propiciou trazer um certo molho para o Guerra", afirma. "Só que o contrário também acontece. No Bicho de Sete Cabeças fizemos quase que uma pesquisa para um documentário sobre a questão manicomial no Brasil - tanto é que muita gente pensa que ele foi filmado dentro de hospitais, que os atores eram realmente internos", relembra. "Na direção do Bicho, nossa intenção era 'enganar' o espectador de forma que ele tivesse a sensação de estar assistindo a um documentário, que aquilo era real. Quando fazemos documentários, muitas vezes queremos provocar o contrário: que o espectador tenha a sensação de estar assistindo a uma ficção, que ele se envolva emocionalmente naquela história e deixe o coração seguir a narrativa", afirma a diretora.
Rudá de Andrade, um dos fundadores da Cinemateca Brasileira e, como o próprio se define, "documentarista esporádico", parece compreender a sensação da cineasta paulistana: "Como o documentário é a realidade vista e sentida por alguém, portanto uma interpretação, o gênero acaba sendo - ao contrário do que parece - uma forma muito livre e espontânea de criação", afirma. "Hoje a dramatização do documentário nas mais variadas formas (líricas, trágicas ou cômicas, introvertidas ou formalistas) tornou-se comum e, cada vez mais, vem aumentando o horizonte criativo do gênero. Isso ocorre no mundo e, evidentemente, no Brasil."
Rudá prepara-se para lançar, no dia 23 de setembro, no CineSesc, seu mais recente trabalho, intitulado Renata. Trata-se de um relato baseado nos diários da nadadora Renata Agondi, que morreu aos 25 anos ao tentar atravessar a nado o Canal da Mancha. O filme foi encomendado pela Universidade Santa Cecília, de Santos, e co-produzido pela TV Cultura.

Grandes telas
Apesar da nova onda de produções, as salas comerciais de cinema ainda parecem distantes da realidade dos produtores. O espaço é extremamente restrito, sobretudo para um gênero que nunca foi vedete de bilheteria. Estima-se que as produções nacionais, ficcionais ou não, representam apenas 5% das bilheterias. Cerca de 90% vão para o cinema norte-americano e outros 5% para outras cinematografias.
Apesar disso, o cineasta João Jardim, diretor de séries televisivas como Engraçadinha, não hesitou em encarar as dificuldades em seu primeiro longa. "Desejava fazer um filme que tivesse o tempo, a linguagem, a sonoplastia, a música do cinema. Interessava-me a alquimia de todos esses elementos", afirma o diretor do recente Janela da Alma. "Quando nos dispusemos a produzir o filme, partimos do princípio de que ele não teria público. Assim, foi preciso trabalhar como loucos para que o filme se sustentasse", explica. "Simplesmente colocá-lo no circuito não é suficiente. O cinema é muito cruel, se não vai ninguém comprar o ingresso, a obra sai de cartaz, não importa se é boa ou ruim", argumenta. "A única arma que encontramos para lutar contra essa crueldade foi criar uma expectativa em relação ao filme. Ele foi lançado em todos os festivais possíveis, fizemos debates e tenho ido a todas as cidades estreá-lo. Para documentário, talvez a única forma seja gerar esse boca a boca. Foi o caminho que encontramos", esclarece.
Carlos Ebert é otimista em relação ao futuro deste gênero cinematográfico. "Ele vai crescer. O público de cinema tem demonstrado mais interesse - os números das bilheterias provam isso. Acho que se está desmistificando a idéia de que não se paga ingresso para ver documentário." "Nós estamos preparados, armados para produzir", acrescenta Leopoldo Nunes. "Conheço praticamente o Brasil inteiro e posso afirmar que nos 27 estados da federação há base e gente apta a fazer excelentes filmes. Quando criarmos condições, o país inteiro irá produzir", acredita.

Um novo fôlego - Agência Nacional de Cinema pretende estreitar as relações entre produtores e Estado

No início da década de 1990, a produção audiovisual brasileira sofreu um duro golpe. O desmonte do sistema estatal de apoio à produção e à distribuição cinematográfica, com a extinção da Embrafilme e do Concine, fez com que a participação brasileira no setor audiovisual tivesse uma brusca queda. Alguns anos depois, o apoio, a produção, a comercialização, a distribuição e a exibição passaram a ser feitos quase que exclusivamente através das leis de incentivo à cultura, com o mercado definindo quais produções deveriam ser privilegiadas.
A Agência Nacional de Cinema (Ancine), criada em janeiro deste ano, pretende resgatar o papel do Estado na produção do país. Uma medida nessa direção foi tomada em maio, com a instituição da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica (Condecine), um tributo que soma recursos oriundos das operadoras internacionais de televisão a cabo e das projeções de filmes estrangeiros. Pela lei, o dinheiro arrecadado deve ser destinado à produção independente. "As medidas fazem parte da nova política que o governo deseja que seja adotada doravante pelo Estado brasileiro", afirma José Álvaro Moisés, secretário de Audiovisual do Ministério da Cultura.
A forma de distribuição dos recursos ainda está em fase de discussão, mas Leopoldo Nunes, da Associação Brasileira de Documentaristas, acredita que as novas medidas sejam fundamentais para o setor, especialmente para o gênero documental. "Espero que o documentário seja a vertente mais importante. Seria um passo para sistematizar a produção do país", defende. "Estamos construindo uma instituição essencial, que pode trazer muitos frutos para a produção nacional."