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Matérias da edição

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Praça Roosevelt

Ilustração: Editoria de Arte
Ilustração: Editoria de Arte

1.

luis me aconselha a trancar

a porta do quarto para dormir

a casa por algum motivo de dia

é grande mas de noite é ainda maior

quando chego

por onde passo

fecho as portas atrás de mim

que é para não me espalhar demais

para caber nesse cômodo

onde tudo esteja à vista

lá fora na praça

as pessoas não dormem nunca

fabricio escreveu que em são paulo

não faz noite pra valer

o céu nunca fica preto preto

tem noites mais pro rosa e noites

que puxam pro verde

e quando ele se mudou pra cá

não conseguia pregar o olho

com tanta claridade simplesmente

não conseguia

marilia me diz que um bebê

de seis semanas

com dois milímetros já tem

um coração que bate e que aparece

como um ponto piscando nos exames

kammal da minha janela

ao ver a obra do teatro

que há muitos anos pegou fogo

o barulho incessante dos guindastes e tratores

diz que a terra aqui

é vermelha

mas no rio é de que cor?

no rio se você cavar fundo

só vai achar areia?

agora toda vez que olho

pela janela de manhã

repito sem me dar conta

a terra aqui

é vermelha

 

 

2.

tem um poema de t.s. eliot que diz

o rio é dentro de nós

e o mar é o que fica em volta

as veias sobem e descem

num movimento que se pensar demais

arrisca parar de funcionar

as veias do meu avô não estão bombeando

a dose certa de oxigênio

mas o medo de escrever isso

é que se algo acontecer com ele o poema

vai virar uma espécie de maldição

semana que vem o bebê na barriga

completa cinco meses

os bebês na barriga quando se desenvolvem

passam por todas as etapas

da vida na terra

quer dizer começam como um grão um nada

quase um micróbio que o corpo da mãe

pode tentar expelir

como um ser estranho e perigoso

depois o embrião vira um invertebrado

um peixe nadando com cauda e sem pálpebras

até ganhar coluna vertebral

e feições humanas

se pensar bem até mesmo

o feto boiando no líquido amniótico

de certo modo imita

a forma gorda do planeta

agora está começando a esquentar

nos dias de verão a praça fica cheia

quarta-feira é dia de circo

assisto da janela

a mão esquecida

apoiada na barriga

 

 

3.

de manhã bem cedo fomos tomar

sol na praça

e uma senhora com o labrador

que sempre tem algo a dizer disse

você não devia sair sem meias

está muito frio para o menino

ficar fora de casa

da outra vez ela disse

que ele estava um pouco amarelo

deve ser icterícia

era a primeira vez que saíamos de casa

e o médico mais tarde

confirmou o diagnóstico

a um filho não se deve

ensinar a não ter medo

a um filho se deve ensinar

a ter os medos certos

a não derrapar na borda da piscina

a não se esgueirar na janela

a não ficar obcecado de paixão

a não dirigir embriagado

a não perder o fio da meada

a um filho se deve ensinar

que o medo em alguns casos pode ser

chamado de cautela

e que o medo em alguns casos

pode inspirar coragem

e quase nada

é mais bonito que coragem

 

 

Alice Sant’Anna é autora de Dobradura (7 letras, 2008), Rabo de Baleia (Cosac Naify, 2013), pelo qual recebeu o Prêmio APCA, e Pé do Ouvido (Companhia das Letras, 2016), além de algumas plaquetes independentes. Seus livros foram reunidos em Aula de Natação (INCM, 2018), em Portugal. Os poemas publicados nesta seção foram incluídos na tese de doutorado em Letras na PUC-RJ, defendida pela escritora em julho, e farão parte do próximo livro, ainda sem data de publicação.

 

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