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Sinais de alerta
Médico psiquiatra chama a atenção para ansiedade e depressão no atual cenário e comenta pesquisa que irá comparar a saúde antes e após a pandemia
Não foi só a rotina que mudou com a pandemia. Com ela, muitos hábitos que regulavam o dia a dia e a saúde das pessoas se transformaram. Como o costume de acordar e dormir no mesmo horário, de sair de casa para trabalhar, para se exercitar ou para socializar com familiares e amigos. A casa se tornou escritório, escola, academia, espaço de lazer etc. Consequentemente, a rotina perdeu seu trono. Mais irritados, menos tolerantes, mais carentes, menos pacientes: as emoções estão à flor da pele. Professor do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), o médico psiquiatra André Brunoni observa um crescimento ou agravamento de casos de transtornos de ansiedade e de depressão. Ele ainda faz um alerta para uma futura onda de transtornos mentais pós-pandemia. A fim de compreender esse cenário e alterações na saúde nos últimos 12 anos, Brunoni coordena um grupo de pesquisadores de todo o país que fazem parte do Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto – Elsa Brasil. Ainda em andamento, a pesquisa monitora, desde 2008, a saúde de 15 mil funcionários de universidades públicas e centros de pesquisa das regiões Nordeste, Sul e Sudeste do Brasil. Dessa forma, será possível analisar de maneira contundente a saúde da população. “O Elsa não foi desenhado especificamente para uma condição. Então, ele analisa doenças cardiovasculares, câncer, diabetes; enfim, faz um acompanhamento da pessoa, de seu estilo de vida, entre outras coisas. E, com a pandemia, colocamos a saúde mental em perspectiva”, explica.
Do que trata a pesquisa Elsa Brasil?
Trata-se de um estudo longitudinal que começou em 2008 com pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Acompanhamos 15.105 pessoas, funcionários públicos da universidade, pessoas estáveis numa empresa, por ser uma pesquisa de longo prazo. Ou seja, depois de cinco ou dez anos essas pessoas estariam no mesmo emprego, na mesma cidade e país. Pessoas de idades variadas, dos 35 aos 74 anos.
Hoje, 12 anos depois, esse estudo foi desenhado para observar doenças crônicas. Apesar de muitos não pensarem dessa maneira, as doenças mentais são doenças crônicas, elas têm todas as características de doenças crônicas: acontecem ao longo da vida, não têm um tratamento 100%, há épocas de melhora e de piora. O Elsa não foi desenhado especificamente para uma condição. Então, ele analisa doenças cardiovasculares, câncer, diabetes; enfim, faz um acompanhamento da pessoa, de seu estilo de vida, entre outras coisas. E, com a pandemia, colocamos a saúde mental em perspectiva.
A ansiedade é um comportamento normal,
mas o transtorno de ansiedade é outra coisa
Nesse caso, o que já observaram de diferente na pandemia?
Estudos mostraram uma associação da quarentena e do distanciamento social com sintomas de ansiedade e depressão. Aí veio essa ideia de que haveria uma chamada “quarta onda” dos transtornos mentais [pessoas que não tinham transtornos mentais passariam a ter]. Mas, apesar dessa possibilidade, isso não ficou claro com base nesses estudos, porque ninguém garante que os sintomas de ansiedade e os sintomas de depressão se tornarão as doenças depressão e ansiedade. Podem ser apenas episódios. Fazendo uma analogia: a pressão pode aumentar, mas pode não ser uma hipertensão. Ou o açúcar no sangue pode aumentar, mas nem sempre vira diabetes. Da mesma maneira, num momento de incertezas, as pessoas ficam mais ansiosas, não dormem bem e isso é normal. Aliás, seria bem estranho que alguém ficasse tão dissociado a ponto de não ter nenhum tipo de repercussão. Então, há uma instabilidade, mas a gente não sabe o que vai acontecer depois. Pode ser que piorem os transtornos mentais, pode haver uma onda, e quando se fala em onda, se fala naquela ideia específica de: quem não tinha transtorno mental passa a ter. Isso seria a onda. Agora, se ficar estável, um platô, então é algo que precisa ser estudado melhor. Será que não teve uma onda? Será que um subgrupo de pessoas piorou, mas outro subgrupo de pessoas melhorou? É isso que a gente quer avaliar e por isso a gente acompanha essas pessoas ao longo da pandemia.
Estudos mostraram uma associação da quarentena e
do distanciamento social com sintomas
de ansiedade e depressão
Um diferencial do estudo é que ele já está em andamento há 12 anos. O que isso pode trazer em resultados?
É importante saber como esse grupo de pessoas (que faz parte da pesquisa) estava antes da pandemia. Porque a gente já sabe que aquele e aquela que têm transtorno mental tendem muito mais a ter a saúde mental debilitada na quarentena do que pessoas que não têm. Com base no relato de psiquiatras, percebeu-se que nesse caso houve uma piora. Só não confirmamos isso ainda no nosso estudo. Mas de uma maneira geral, no Elsa, a gente viu que 75% das pessoas não têm transtorno mental, que 25% têm e que os transtornos variam de uma ansiedade mais fácil de lidar até um quadro mais grave: há aí um grande espectro. Os transtornos mentais são vários, mas os mais comuns são os transtornos depressivos e os transtornos ansiosos.
Podemos dizer que a ansiedade é algo comum da nossa constituição, da nossa sociedade?
A ansiedade é um comportamento normal, mas o transtorno de ansiedade é outra coisa. O principal sintoma desse transtorno é uma ansiedade que a gente chama de patológica. Ela é uma ansiedade paralisante, que impede a pessoa de fazer as atividades dela. É algo que acontece a maior parte do tempo e não só no momento de maior estresse. Não há um único sintoma. Há sintomas como insônia, tensão muscular, irritabilidade. E, fora isso, há ansiedades específicas, como o transtorno de pânico e as fobias, como a fobia social, outros transtornos que estão nesse espectro. Da mesma maneira, no caso dos transtornos depressivos há outro sintoma além da depressão. Como a falta de prazer em coisas que antes eram consideradas prazerosas, alterações no sono, no apetite, pensamentos de culpa.
O que seria essa falta de prazer?
Falta de prazer em fazer coisas que antes eram prazerosas. Se a pessoa não gosta de ir ao trabalho, isso não é um sintoma, ela não gosta, mas se ela gosta de ver jogos de futebol na tevê e ela não quer mais ver as partidas, não tem mais interesse nisso, ou senta na frente da tevê e não se conecta com aquilo que antes lhe dava prazer, aí sim, há o sintoma. O nome técnico desse sintoma é anedonia.
Quanto ao sono, na capital paulista, é comum encontrar pessoas com problemas para dormir por várias razões. Essa pandemia, de maneira geral, está agravando esse quadro?
Esse é um sintoma que a gente vai analisar no estudo. Lembrando que o diagnóstico não é baseado apenas em um sintoma. Há sempre um conjunto de sintomas que conduzem a um diagnóstico. Isso porque os sintomas, individualmente, podem fazer parte de muitos transtornos, como a insônia. Pode ser uma insônia primária, influenciada por fatores ambientais, pelo barulho no bairro, ou porque a pessoa trabalha à noite e precisa dormir de dia e isso desregula o ciclo vigília/sono. Ou pode ser uma insônia secundária, e aí também há várias causas, mas a maior parte é psiquiátrica. Então, quer dizer, um sintoma só não faz um diagnóstico, é sempre um conjunto de sintomas.
O isolamento social provocou uma mudança de rotina. Começa-se a trabalhar em casa, quando antes as pessoas saíam pela manhã para voltar à noite. O que já dá para observar desse cenário em que há uma pressão externa do trabalho, da economia, e a pressão interna, da própria situação emocional, da casa?
É isso que queremos entender. Se tiver um transtorno de saúde mental, qual é a principal razão? E como a gente está acompanhando um grupo grande de pessoas, conseguimos ter desde a pessoa com um filho pequeno e que perde o emprego, ou aquela que já trabalhava no escritório e que considera melhor o home office para não acordar cedo nem pegar trânsito. São muitas variáveis.
A gente ainda não analisou nossos dados, mas já estão saindo alguns estudos longitudinais. Por exemplo, um grande estudo inglês já mostrou que não houve uma onda generalizada (de transtornos de saúde mental), mas um grupo específico afetado: mulheres com filhos pequenos. Parece que, pelo menos nesse estudo inglês, a principal sobrecarga foi das mulheres que acumulam a função de cuidar dos filhos pequenos e de trabalhar.
Um grande estudo inglês já mostrou
que não houve uma onda generalizada
(de transtornos de saúde mental), mas um grupo
específico afetado: mulheres com filhos pequenos
Há também outra questão como o aumento de divórcios provocado por esse isolamento social. O que isso quer dizer?
Lembro a frase clássica do filósofo Jean-Paul Sartre: “O inferno são os outros”. Essa é justamente a frase e a temática da peça [Entre Quatro Paredes, escrita por Sartre em 1944] sobre quatro pessoas presas dentro de casa. Em algum momento, elas percebem que já morreram e o inferno é ficar o tempo todo convivendo umas com as outras. Parece que o ser humano, ainda que um animal social, e que tenha um companheiro ou companheira, tem uma necessidade além disso. Não sei dizer se o divórcio é a melhor solução, ou se o casamento já não estava bem e a quarentena precipitou a separação.
O que a gente sabe é que, em São Paulo, a maioria das pessoas vive em espaços pequenos. Então, imaginar um casal e crianças convivendo nesse mesmo espaço, sem a possibilidade de sair, provoca estresse.
Hoje a tecnologia também está levando ao estresse. Há quem não suporte mais fazervideochamadas ou se comunicar por aplicativos etc.Do ponto de vista de saúde mental, o que isso gera ou vai gerar na sociedade?
Essa é uma bomba-relógio. As pessoas não aguentam mais tanta tecnologia e podem desenvolver, num determinado momento, algum transtorno mental. Até por isso, propõe-se que esta “quarta onda” não seja imediata, mas que apareça depois de alguns meses da quarentena. Isso de ficar em múltiplas telas precisa ser considerado. A gente sabe de algo que é da nossa biologia: é muito mais cansativo para o cérebro fazer interações num ambiente bidimensional, digamos assim. Por mais avançada que seja a tecnologia, você ainda está sentado, olhando para uma luz que vem de trás e que vai cansando. Muito diferente do ambiente real, tridimensional. Exemplo: numa videochamada com várias pessoas, você escuta o que falam, escuta ao longe um cachorro latindo, um barulho do outro etc. Prestar atenção em cinco, seis ambientes diferentes, além do ambiente em que você está, cansa.
Por conta dessas diferentes telas e estímulos, estamos mais distraídos e menos atentos também?
Exato. É a multitarefa: você está numa videochamada, ao mesmo tempo, manda uma mensagem e lê um e-mail. Vai acontecendo tudo de forma contínua. Claro que pegar trânsito não é bom, mas quando se tem um dia a dia com uma rotina, com o processo de acordar, de se vestir e sair de casa, é como se você fosse se preparando e preparando seu cérebro para o trabalho. Diferentemente de um momento de videochamada, em que você ainda está de pijama, não tomou café e, enfim, não preparou seu cérebro para começar. Isso é estressante.
Mudar a rotina e hábitos traz transtornos?
É aquilo que Daniel Kahneman [prêmio Nobel de Economia], autor de Rápido e Devagar – Duas Formas de Pensar (Objetiva), fala: o pensar rápido é um pensamento automático relacionado à rotina. Você não precisa pensar, na verdade, tanto que, na rotina, às vezes você nem lembra, ao chegar ao escritório, o que você fez até chegar lá, o que tomou no café da manhã, por exemplo. É automático. Agora, quando você sai dessa rotina, você tem que pensar o tempo todo no que vai fazer. Isso também é cognitivamente mais demandante.
A diferença social e econômica traz para cada grupo distintos transtornos de saúde mental?
A questão socioeconômica, sem dúvida, até em tempos de pré-pandemia, é um determinante. Participei de um encontro em novembro do ano passado que falava a respeito. O que acontece é que, às vezes, a gente fica estudando a ressonância do cérebro ou uma determinada molécula, faz-se o diagnóstico disso e daquilo, mas, até hoje, a maneira mais fácil de fazer um diagnóstico de transtorno mental é fazendo perguntas sobre o nível socioeconômico. Em outras palavras, é um preditor. Dando um exemplo, para alguém num nível socioeconômico mais baixo, você pode multiplicar por três o risco de desenvolver um transtorno mental. Por isso, no Elsa fazemos perguntas como: qual o tamanho da sua casa, qual a metragem, qual sua fonte de renda, entre outras questões.
Outro aspecto constatado pelo home office na pandemia é que muitas pessoas estão trabalhando mais, por isso sobra menos tempo para si. Esse cenário também gera problemas de saúde?
Sim. Há pessoas que estão trabalhando mais e parece que os aplicativos derrubam essa fronteira entre trabalho e descanso em casa, até porque o trabalho acontece em casa. Isso é outro fator, mas a gente sabe que a sobrecarga no ambiente de trabalho também está relacionada a um baixo controle sobre as demandas. Então, quando alguém trabalha muito e tem baixo controle sobre o que está trabalhando, isso gera um estresse ocupacional, inclusive.
Vemos um aumento no número de pessoas que vivem constantemente o medo do contágio e o medo de sair de casa. Como identificar e lidar com esses e outros medos durante a pandemia?
São diferentes manifestações dos transtornos de ansiedade. Um deles é o transtorno de ansiedade generalizada, não focada, e há as ansiedades direcionadas. Como você falou, de fobias simples às mais complexas. O medo de contaminação também é entendido como parte do espectro do transtorno de ansiedade. Mas o caso de quem se preocupa com a limpeza e higiene da casa, dos alimentos, das roupas é diferente de quem apresenta um Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC), porque nesse caso a pessoa tem pensamentos obsessivos e rituais compulsivos. Para ter um diagnóstico, deve-se buscar um psiquiatra, um psicólogo, um profissional de saúde mental. Entre todos os transtornos mentais comuns nem sempre há uma barreira clara entre o que é comum e o que é patológico. Não há esse ponto de corte claro, e sim um espectro. E, para começar a suspeitar, é preciso observar quando esse tipo de distúrbio começa e se ele é incapacitante ou paralisante. Se a pessoa sente que isso está acontecendo, já acendeu o sinal amarelo para buscar ajuda.
Pode dar um exemplo?
A pessoa fica com tanto medo de sair de casa que não sai de casa nem numa situação absolutamente necessária, mesmo podendo controlar o risco. Aí é excessivo. Outra questão é se isso acontece com recorrência. A pessoa pode estar meio obsessiva, no sentido leigo, de chegar em casa, lavar as roupas, tomar banho, cuidar da higiene, mas depois ela relaxa. Agora, se ela não relaxa, se volta a limpar o que já limpou e só pensa nisso, aí já é algo que nos mostra que essa pessoa precisa de ajuda.
Que cuidados podemos tomar para preservar nossa saúde mental?
Para a maior parte dos transtornos mentais, sabemos que uma dieta saudável e equilibrada faz com que a produção de hormônios, de aminoácidos e de neurotransmissores, por exemplo, fique num nível aceitável. Exercício físico também ajuda a liberar hormônios e substâncias que favorecem a saúde mental. Outra coisa é dormir e acordar sempre no mesmo horário, pois sabemos que distúrbios do sono desregulam muito a saúde. Por exemplo, quando a pessoa não dorme direito, no dia seguinte ela fica irritada, mal-humorada. Agora, imagine alguém que chuta o balde na quarentena e esquece de dormir e acordar no mesmo horário? Essa pessoa corre ainda mais o risco de desenvolver um transtorno mental e, se ela já o tinha, corre o risco de piorar. Outra dica é lembrar que cada um tem uma necessidade e seu tempo. Agora que estamos tendo uma certa flexibilização para sair de casa por algumas horas, é possível ir a algum parque, encontrar algum amigo. Aproveitar que os parques estão abertos durante a semana e que, se não existe fronteira entre descanso e trabalho, é possível se programar em horários alternativos. A questão é não descuidar das medidas de prevenção (contra o novo coronavírus). Outra coisa: nada dura para sempre. A gente vai sair dessa, assim como as guerras uma hora acabam. Não podemos perder a esperança.
A gente vai sair dessa, assim como as guerras
uma hora acabam. Não podemos perder a esperança