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Cuidar é para todos

Imagens: Editoria de Arte
Imagens: Editoria de Arte

"Deixe que ela cuida”. Essa sentença ainda é ouvida em milhões de lares brasileiros pela menina de 12 anos ou pela mulher de 70. Crenças, cultura, hábitos, entre outros fatores que moldam a sociedade, determinam: cabe às mulheres zelar pelos outros, ainda que tenham que abrir mão de estudo ou de trabalho ou somar essa responsabilidade à jornada laboral. Segundo dados da pesquisa Care Works and Care Jobs, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), divulgada em 2018, em nenhum país os homens e as mulheres dedicam a mesma quantidade de horas com cuidados não remunerados. Mulheres e meninas destinam, em média, três vezes mais tempo que homens e meninos. E essas horas aumentam consideravelmente quanto maior a situação de vulnerabilidade delas. “Antes da pandemia, as mulheres já dedicavam semanalmente 50% a mais de tempo do que os homens para o trabalho doméstico não remunerado. No cenário atual, elas se encontram ainda mais sobrecarregadas, como revelam os dados da pesquisa Sem Parar: O Trabalho e a Vida das Mulheres na Pandemia, publicada pela organização Gênero e Número e pela Sempre Viva Organização Feminista”, destaca a advogada Clara Carolina de Sá, do Instituto Alziras, que já foi Conselheira Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente no Brasil. No entanto, “o bem-estar de uma criança precisa estar diretamente ligado ao bem-estar das pessoas que têm a função/o compromisso de cuidar delas”, explica a pedagoga Clelia Rosa, que atua na área da Educação, trabalhando para a promoção da igualdade racial e de gênero desde a infância. Por que, então, a responsabilidade social do cuidado ainda não é compartilhada por todos os atores da sociedade? E quem cuida daqueles e daquelas que cuidam? Essas e outras questões são levantadas por Rosa e Sá neste Em Pauta. Outras reflexões sobre o tema acontecem, até abril de 2021, em bate-papos, vivências, apresentações e diálogos promovidos pela ação Cuidar de Quem Cuida – Redes de Apoio e Cuidados, realizada pelo Sesc São Paulo. Confira: sescsp.org.br/cuidardequemcuida.

 

Cuidar é verbo!

CLELIA ROSA

Cuidar é verbo! E, como verbo, indica uma ação. Ação que pode ser executada por todas as pessoas. Entretanto, o que sabemos é que, histórica e socialmente, esta ação ficou a cargo das mulheres. Historicamente, foi dada ao gênero feminino essa atribuição.

Mães, enfermeiras, professoras, cuidadoras, seja de crianças, seja de pessoas idosas, cozinheiras. São as mulheres que estão no topo da lista quando o trabalho tem relação direta com o ato de cuidar. É preciso lembrar que o fato de as mulheres serem a grande maioria nas atribuições referentes ao cuidado nada tem a ver com questões biológicas e/ou genéticas, mas apenas e exclusivamente está ligado a uma convenção social que delega às mulheres essa “missão”.

Elas estão sempre cuidando de alguém ou de alguma coisa para outro alguém. Mas quem cuida delas? Quem pensa nas pessoas que cuidam? Além de no próprio travesseiro, onde mais elas encontram acolhimento? Muitas vezes, as pessoas que cuidam (na grande maioria, mulheres) não se sentem merecedoras de cuidado, se colocam em último lugar e chegam ao nível máximo de esgotamento porque não foram cuidadas, e também por não conseguirem praticar um autocuidado: não conseguem cuidar de si.

Arrisco dizer que a palavra autocuidado nunca foi tão utilizada como nestes tempos. Um autocuidado pode começar com um simples skin care (cuidados com a pele) e ir se consolidando em ações mais profundas e, por isso, às vezes, mais demoradas, como cuidar da saúde mental, que requer visitar lembranças, modos de comportamento; cuidar daquilo que se come, em relação à quantidade e, principalmente, à qualidade do que se come.

O cuidar de si aos poucos vai deixando de lado a ideia de que é uma ação egocêntrica e se consolidando em estar bem para poder cuidar do outro e estar bem com ele.

 

Circularidade

Se tivéssemos a circularidade como elemento fundamental na nossa formação cultural (valor civilizatório afrobrasileiro), teríamos um a outro de forma mais concreta. Poderíamos cuidar e sermos cuidados. A circularidade propõe uma relação de interdependência, em que ações individuais são realizadas em função de um coletivo. Nesse sentido, ninguém fica de fora. Todas as pessoas dentro desse “círculo” têm um papel de importância, valor e cuidado.

Numa relação de interdependência, seria entendido que cuidar de uma criança pressupõe também cuidar das pessoas que cuidam dela, ou seja, um olhar atento para seus pais, professores e cuidadoras. O bem-estar de uma criança precisa estar diretamente ligado ao bem-estar das pessoas que têm a função/o compromisso de cuidar delas.

Nesse sentido, a construção e manutenção da aldeia, ou, como convencionamos nomear, de redes de apoio, é de fundamental importância. A tomada de consciência dessa relação de interdependência é que poderia garantir que todas as pessoas (adultos e crianças) fossem cuidadas, respeitando suas singularidades e necessidades.

 

“É preciso uma aldeia inteira

para educar uma criança”, diz um

provérbio africano que talvez você já tenha

lido ou ouvido. Pois bem, quem

é você dentro dessa aldeia?

 

Pelo bem comum

A criação dessa rede de apoio se dá a partir da identificação das afinidades das pessoas que a compõem e também das pessoas que vão, pouco a pouco, se aproximando e sendo parte dela. Mas o grande elo que mantém uma pessoa como parte de uma rede de apoio é a compreensão da importância da vida coletiva. É saber que o bem comum precisa ser de todos e para todos. É colocar os seus talentos a serviço do coletivo e também ser beneficiado pelo talento de outro membro dessa rede. É o Eu que anda de mãos dadas com o Nós.

Romper a lógica do individualismo, se arriscar e andar na contramão de uma sociedade em que a competição se tornou um grande elemento das nossas relações. Esse é um dos grandes desafios que famílias e educadores precisam enfrentar para construir uma sólida e ao mesmo tempo flexível rede de apoio. “É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”, diz um provérbio africano que talvez você já tenha lido ou ouvido. Pois bem, quem é você dentro dessa aldeia? De quem você cuida? Da criança? Ou dos cuidadores dela?

Essas perguntas são para movimentar o nosso pensamento e direcionar o nosso olhar para as pessoas que estão na relação direta com as crianças. São as pessoas que fazem a gestão dos tempos, dos espaços e dos materiais com os quais as crianças se relacionam, convivem e aprendem. São suas mães, pais, professores, cuidadores. São pessoas que escolheram e/ou foram designadas para cuidar e apoiar as crianças para que elas tenham um desenvolvimento (físico, cognitivo, emocional) seguro e pleno.

 

Dividir é somar

As crianças são o futuro, mas são acima de tudo o presente. Portanto, é fundamental garantir uma relação com o tempo do agora, o tempo do presente, e proporcionar para elas experiências significativas para o seu pleno desenvolvimento. Mas, como fazer isso estando cansado, estressado, solitário? Como cuidar do outro sem conseguir cuidar de si mesmo?

É também nesse momento que a aldeia se põe em movimento na direção daquela pessoa que precisa da sombra, da brisa e, por que não dizer, do Sol e de toda sua energia. Dividir as funções de atenção e cuidado, não no intuito de “aliviar” a tarefa da outra pessoa, mas sim por se entender como corresponsável por essa tarefa. Por se sentir cocriador da manutenção e do bem-estar de toda a sua comunidade.

Cuidar da rotina, do cotidiano, das relações, da linguagem, dos afetos. Gestos e ações que precisaram ser reinventados em função de uma crise sanitária mundial que nos colocou diante da ação inseparável que é cuidar de si e cuidar do outro. Nesse contexto, toda ação de cuidado é ao mesmo tempo singular e plural. Cuidar de si é cuidar do outro, cuidar de si é cuidar da família, da natureza, das nossas relações. Cuidar é verbo e precisa ser conjugado por todes nós.

Clelia Rosa é mãe da Eloisa e da Aisha; pedagoga e mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp); cocriadora do Coletivo Luderê Afro Lúdico. Atua na área da Educação, trabalhando para a promoção da igualdade racial e de gênero desde a infância.

 

 

Rede de apoio: uma questão política

CLARA CAROLINA DE SÁ

Os municípios estão chegando ao final de mais um ciclo de governo e novas eleições se aproximam. Este ano, porém, estamos diante de um fato novo, uma pandemia que afeta a vida da população em geral e das mulheres em particular. Nesse importante período de decisão a respeito do futuro de nossas cidades e dos rumos de nossa democracia, aspectos da conjuntura e do que representa a participação política das mulheres devem ser objeto de reflexão por toda a sociedade.

Nesse contexto, as mulheres vivenciam muitos desafios na esfera privada e assumiram importante protagonismo na esfera pública. Seja como lideranças políticas ou na linha de frente dos serviços essenciais que contam com uma força de trabalho majoritariamente feminina.

Na esfera privada, o fechamento das escolas e a sobrecarga do sistema de saúde transferiram para as famílias, particularmente para as mulheres, uma parcela da responsabilidade pública pelos cuidados cotidianos com a manutenção da vida de crianças, pessoas com deficiência, idosas e doentes.

 

Sobrecarregadas

Antes da pandemia, as mulheres já dedicavam semanalmente 50% a mais de tempo do que os homens para o trabalho doméstico não remunerado. No cenário atual, elas se encontram ainda mais sobrecarregadas, como revelam os dados da pesquisa Sem Parar: O Trabalho e a Vida das Mulheres na Pandemia, publicada pela organização Gênero e Número e pela Sempre Viva Organização Feminista.

Em um momento de tanta vulnerabilidade, quando as taxas de desemprego aumentam e os índices de violência doméstica e feminicídio crescem significativamente, 42% das mulheres declaram não ter apoio externo de profissionais, instituições ou vizinhos na dinâmica do cuidado,ou seja, enfrentam dificuldades objetivas diante de relações de trabalho precarizadas, da falta de acesso a redes de apoio e da insuficiência de políticas públicas de proteção. Além de terem que lidar com desafios subjetivos, representados pelo medo, pela sensação de desamparo e pela desorientação decorrente das ameaças à saúde.

 

É no espaço da política que tomamos a decisão

de valorizar ou não uma agenda nacional de cuidado

compartilhado entre todos, cuidando de quem cuida

 

Caso a caso

É importante lembrar ainda que os efeitos da pandemia atingem as mulheres de forma desigual, a depender de sua raça, de sua classe social, do lugar onde vivem e do tipo de atividade profissional que exercem. A Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2017-2018, recém-publicada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revelou que as mulheres e a população negra estão mais expostas ao aumento recente da fome e da insegurança alimentar em seus domicílios. E vale lembrar que esses dados ainda não computaram o impacto devastador da pandemia. Ou seja, os números podem ser ainda piores.

A pandemia, por um lado, tem evidenciado a centralidade do papel das mulheres para a organização da vida em sociedade e, por outro, reforça a necessidade de avançarmos rumo a uma democracia paritária, na qual as mulheres possam participar mais ativamente da construção de soluções para os problemas públicos que impactam diretamente sua vida.

 

Decisão política

A pesquisa Perfil das Prefeitas do Brasil 2017-2020, lançada pelo Instituto Alziras, buscou conhecer quem são as mulheres que administram as cidades brasileiras com o objetivo de valorizar e visibilizar seu fazer político, atravessado pelo enfrentamento de variadas formas de violências e pelas desigualdades de gênero estruturais.

E é no espaço da política que tomamos a decisão de valorizar ou não uma agenda nacional de cuidado compartilhado entre todos, cuidando de quem cuida, para a garantia de uma sociedade mais justa e democrática.

CLARA CAROLINA DE SÁ é advogada e especialista em gestão pública; foi Conselheira Nacional de Assistência Social e Conselheira Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente no Brasil; é cofundadora e uma das diretoras do Instituto Alziras, organização sem fins lucrativos que atua para ampliar a participação política das mulheres.

 

 

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