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Foto: © Neto Gonçalves
Foto: © Neto Gonçalves

LÍDER INDÍGENA, AMBIENTALISTA E ESCRITOR

COMPARTILHA A ESPERANÇA FUNDADA NA EXPERIÊNCIA

 

Eleito, em 2020, intelectual do ano pela União Brasileira de Escritores (UBE), o líder indígena e escritor Ailton Krenak levou o troféu Juca Pato, conferido a personalidades que contribuíram para o desenvolvimento do país, na defesa dos valores democráticos e republicanos. Voz ativa do movimento socioambiental e pela defesa dos direitos indígenas, Krenak é cada vez mais ouvido. Mas não é de hoje que compartilha ideias e experiências, seja como morador da região do Médio Rio Doce, em Minas Gerais, seja pela sua participação em momentos emblemáticos da história recente do Brasil, como a atuação para incluir o capítulo sobre a população indígena na Constituição Federal de 1988. Sua vivência é complementada pela trajetória acadêmica (é doutor honoris causa pela Universidade Federal de Juiz de Fora, em Minas Gerais) e por seus livros. São de 2020 A Vida Não É Útil e O Amanhã Não Está à Venda, e, de 2019, Ideias para Adiar o Fim do Mundo (todos pela Companhia das Letras). Em conversa online transmitida pelo canal do Sesc São Paulo no YouTube como parte da programação Sesc Ideias – Crônicas Terranas, Mundos por Vir, explicou o conceito de “esperança placebo” e reforçou que a presença no mundo só faz sentido quando ela é dividida com outros seres: “A alegria de estar no mundo é o compartilhamento. Se eu extinguir as outras espécies, o mundo fica cada vez mais triste”.

 

Presente e futuro

A absurda negativa do momento é a aposta em alguma coisa que virá depois. A ideia da esperança manipulada dessa maneira é o que chamo de “esperança placebo”. Já a esperança que faz reconhecer a situação de risco e integrar o sentimento de medo perante algo real pode nos mover em busca de entender o evento e agir dentro dele. A esperança tem que ativar o desejo de conhecer e ser capaz de atuar no lugar em que se vive ou mesmo no lugar projetado nos termos de uma esperança em um tempo prospectivo que vai sempre na mesma direção. É bem-vindo um alerta, porque somos, o tempo todo, obrigados a imaginar a possibilidade de existir um amanhã, que é quase uma garantia de estar vivo hoje.

E isso tem a ver com esperança, mas uma esperança fundada em uma experiência. É a experiência de estar vivendo o dia de hoje que nos habilita a pensar o dia de amanhã. Isso não é uma esperança placebo, mas potencializa a nossa vida.

A esperança deveria nos mover no sentido de criar a passagem dentro da ideia de um tempo. Mesmo que seja a ideia que dialoga com o tempo prospectivo, que avança para o futuro, essa esperança pode nos dar capacidade e coragem para enfrentar o dia de hoje e viver o agora.

 

A esperança tem que ativar o desejo de conhecer

e ser capaz de atuar no lugar em que se vive

 

Lar coletivo

O que me inspirou a alinhar ideias no livro Ideias para Adiar o Fim do Mundo foram visões que recebi dos meus antepassados, foi habitar um mundo coletivo. É uma perspectiva de mundo que só tem sentido se eu o estiver coabitando com outros seres. É o que me dá a alegria de estar participando dele. A alegria de estar no mundo é o compartilhamento.

Se eu extinguir as outras espécies, o mundo fica cada vez mais triste. Tenho falado que a presença das borboletas e as plantas do quintal continuam me mostrando a vitalidade e a alegria. Alguém pode achar estranho meu pensamento sobre uma árvore estar alegre ou sobre a possibilidade de uma borboleta expressar contentamento ao voar, mas é isso que me acontece ao ver as borboletas voando.

 

Espaço do afeto

Estou passando a quarentena com um coletivo de 130 famílias localizado em uma reserva criada há 100 anos para ser destruída. Então, o paralelo que posso pensar do mundo que estamos vendo sumir, desaparecer sob os nossos pés, é uma experiência vivida pelo povo Krenak ao menos nos últimos 100 anos. A minha relação com as florestas, rios, montanhas é alimentada pela minha memória, pois o território ao meu redor foi exaurido por várias atividades humanas especulativas e o uso desrespeitoso do território. As paisagens que nos rodeiam têm sentido. Quando tiram uma montanha, e reagimos contra as atividades que a retiram, não fazemos por uma provocação, mas porque queremos continuar a desenvolver os afetos com esse lugar.

 

 

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