Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

O mito Euclides


Desfile na Semana Euclidiana / Foto: Carlos Juliano Barros

Aos cem anos, "Os Sertões" continuam a provocar polêmica

CARLOS JULIANO BARROS

O ano de 1902 consagrou um engenheiro que entraria para a história como autor de um dos mais célebres livros do Brasil. Os Sertões, de Euclides da Cunha, têm como pano de fundo a Guerra de Canudos, ocorrida no interior da Bahia, em 1897. Republicano convicto, o escritor acompanhou o massacre dos sertanejos liderados pelo beato Antônio Conselheiro, tido como monarquista, pelas tropas do exército brasileiro. Cem anos depois da primeira edição, estudiosos de todo o país ainda refletem sobre a atualidade do livro e das idéias de Euclides.

A obra já foi rotulada de "bíblia da nacionalidade", conta a antropóloga Regina Abreu, da Universidade do Rio de Janeiro (UniRio), por estar associada à instituição da República no país. Euclides também se preocupou em retratar uma região esquecida, onde estaria o cerne do povo brasileiro: o sertanejo. Ele pretendia, cinco anos depois do término da guerra, um "livro vingador", que denunciasse a chacina em que se convertera a campanha contra Canudos. Justiça que não havia feito nos artigos escritos para o jornal "O Estado de S. Paulo" durante o período da luta a que assistiu, entre agosto e outubro de 1897.

O livro

Coragem não falta a quem ousa se aventurar pelas mais de 500 páginas de Os Sertões. Com um vocabulário rico, a obra constituiu um ambicioso estudo sobre a região em que se construiu o arraial de Canudos. Um olhar rápido sobre o livro fará perceber as três partes que o compõem. A primeira, batizada de "A Terra", consiste em um denso ensaio sobre a geologia e geografia do sertão baiano. Em "O Homem", Euclides arrisca uma análise antropológica do sertanejo e da história de Antônio Conselheiro. Por fim, "A Luta" narra o conflito entre as tropas da República e os jagunços.

"Ele se intitulava cientista, por falar da guerra sob o aspecto do meio e da raça", dizia o professor da Universidade de São Paulo (USP) Roberto Ventura, escritor e crítico literário, recentemente falecido, que há anos se dedicava ao estudo da obra de Euclides da Cunha. O próprio Euclides, em carta ao crítico literário José Veríssimo, defendia uma aliança ou "consórcio entre ciência e arte, a tendência mais elevada do pensamento humano". De acordo com o professor Valentim Facioli, também da USP, "Euclides escreve Os Sertões com a intenção de realizar esse consórcio. Mas há um problema fundamental: ele tentou dar conta de saberes que não existiam. Quando ele percebe um furo em suas teorias, preenche mediante efeitos retóricos e literários".

Euclides pode ser entendido como um intelectual, daqueles que têm a pretensão de abraçar todos os campos do conhecimento. Nesse sentido, a obra é reflexo dessa "linha enciclopedista" do autor, ressalta Facioli. Por outro lado, o geólogo José Carlos de Santana, da Universidade Estadual de Feira de Santana (BA), afirma que "o importante é saber até que ponto ele era atualizado e sabia usar isso na sua narrativa", e garante que Euclides se "baseou nos mais conceituados pensadores da época".

Críticas também não faltam às ideologias que nortearam o escritor. Já na nota preliminar da primeira edição, ele adverte que "a civilização avançará nos sertões, (...) no esmagamento das raças fracas pelas raças fortes". Embora seus admiradores mais ortodoxos discordem, não há como negar que o engenheiro teve como referência teorias racistas – que consideravam o negro e o índio menos evoluídos do que o branco – em suas análises sobre o episódio de Canudos. "Na época de Euclides começam os questionamentos dessas teorias, mas até os anos 20 elas têm certa atualidade", diz Regina Abreu. Mas também não se pode execrá-lo, já que "ele vem de um tempo em que todos estavam fazendo a mesma coisa", argumenta o professor de literatura brasileira da Universidade de Austin (EUA), Leopoldo Bernucci, que organizou uma das mais completas edições já publicadas de Os Sertões, com cerca de 3 mil notas explicativas. "Ele não era um teórico, mas um bom leitor e observador, que combinava as teorias que aprendia", conclui Bernucci.

O arraial

Euclides não conseguia entender como seres humanos podiam viver em uma terra tão hostil como o sertão. "Ele viu que a ciência do século 19 não explicava o fenômeno e, por isso, tentou ir além", afirma Regina Abreu. Também não era fácil compreender como os conselheiristas resistiam heroicamente aos 6 mil homens fortemente armados da quarta expedição enviada para destruir Canudos. Ainda menos óbvio, para um ateu, era aceitar que mais de 20 mil pessoas se entregassem cegamente à tutela religiosa de um "louco", um "apóstolo extravagante", nas palavras do próprio escritor. O Conselheiro mexia com o inconsciente da República, que ainda engatinhava e via no episódio a oportunidade ideal para se firmar.

Antes de viajar para o sertão, Euclides escreveu artigos para o jornal "O Estado de S. Paulo" defendendo a destruição do arraial, em nome dos interesses da pátria. Depois de retornar de Canudos, impressionado com a péssima organização do exército e com a valentia dos sertanejos, lamentou a extinção da cidade do Conselheiro, que preferia ver incorporada à civilização. Euclides não elogiava o sertanejo, atrasado em "três séculos", como ele mesmo dizia, mas reconhecia nele o elemento de formação da nacionalidade brasileira. "A expressão ‘o sertanejo é antes de tudo um forte’ é uma frase de efeito, compensatória. Ele é forte porque consegue viver no meio do sertão", afirma Valentim Facioli.

O arraial foi completamente devastado pela guerra. As 5,2 mil casas de Canudos não destruídas no conflito acabaram incendiadas pelo exército. Restaram apenas os escombros das igrejas. O povoado ainda foi reocupado, mas, na década de 1970, seus moradores foram retirados para a construção do açude de Cocorobó. Deu tempo, ainda, para que Glauber Rocha rodasse, em 1962, o filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, inspirado na saga de Antônio Conselheiro. Contudo, as águas da represa não sepultaram o massacre de Canudos. Em 1996, surgiram as primeiras ruínas da cidade, depois de uma grande seca na região, que possibilitaram uma ampla investigação arqueológica sobre o local da guerra. A pesquisa, comandada por Paulo Zanettini e Erika Gonzales, ambos professores da USP, põe em xeque as versões oficiais sobre o tamanho de Canudos. Afinal, o exército precisava justificar gastos e fracassos da desastrosa campanha.

A vida

"O que aconteceu com ele foi uma tragédia grega." A definição de Roberto Ventura, que planejava lançar em dezembro deste ano mais uma biografia do escritor, dá a dimensão exata de sua vida conturbada. Parece ficção: casado com a filha de um importante general, Euclides foi morto em 1909, aos 43 anos, num duelo com o jovem cadete Dilermando de Assis, amante de sua mulher, Anna. "Naquele tempo não havia divórcio, mas eles podiam se separar. Resolver a bala é que não dá", pondera Valentim Facioli. O drama conjugal foi eternizado pela minissérie global "Desejo", que revoltou os defensores mais conservadores do escritor por colocar Anna na figura de esposa abandonada.

"Euclides era um grande polemista", resume Carlos Avighi, professor e jornalista da Escola de Comunicações e Artes da USP. Estava sempre em busca de situações de conflito. Quando ainda era muito jovem, deixou-se seduzir pelo positivismo, filosofia do século 19 baseada no apego às ciências e ao progresso. A influência veio da Escola Militar da Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, um caldeirão de idéias republicanas onde Euclides cursava engenharia. Com 22 anos, ele protagonizou um episódio que lhe renderia a expulsão da escola e muita fama nas conversas sobre política da época. O escritor foi preso por quebrar sua espada na frente do ministro da Guerra de dom Pedro II, recusando-se a prestar continência ao representante do Império.

O ato de insubordinação possibilitou a Euclides entrar em contato com importantes figuras no futuro processo de proclamação da República, entre elas Júlio Mesquita, diretor do jornal "O Estado de S. Paulo". A idéia de mandar o engenheiro para Canudos com a quarta expedição do exército partiu do próprio Mesquita, desconfiado das informações oficiais sobre o fracasso das três anteriores, incapazes de destruir o arraial do Conselheiro. De acordo com Avighi, Euclides da Cunha pode ser considerado "um dos primeiros correspondentes de guerra do país". Além das reportagens, ele também acertou com o jornal a publicação de um livro sobre o conflito.

Porém, a obra foi impressa por uma editora do Rio de Janeiro, e metade dos custos foi bancada pelo próprio autor. Poucos apostavam em um livro tão extenso e complexo. Ao ser lançado, em 2 de dezembro de 1902, o êxito perante os críticos da época foi absoluto. "O movimento de consagração começou com José Veríssimo, Araripe Júnior e Sílvio Romero, verdadeiros formadores de opinião", conta Regina Abreu. Reza a lenda que Euclides teria corrigido, um por um, os erros tipográficos e gramaticais dos mil exemplares da primeira edição. A obra alçou o engenheiro-escritor à eternidade. Com a positiva repercussão de seu primeiro livro, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, em 1903. No discurso de recepção ao novo membro, Sílvio Romero resumiu o súbito sucesso que o próprio Euclides não esperava: "Dormiu obscuro e acordou célebre".

A publicação de Os Sertões abriu muitas portas a seu autor. A convite do barão de Rio Branco, ministro das Relações Exteriores, ele embarcou para a Amazônia no final de 1904, chefiando uma comissão responsável pela determinação das fronteiras entre Brasil e Peru. Em cartas a amigos, Euclides havia confidenciado o desejo de conhecer a região, tema de outro estudo que se chamaria Paraíso Perdido, se não tivesse morrido tão jovem. "Antes de chegar lá, ele já tinha lido muitos textos de viajantes sobre a área", conta o romancista amazonense Milton Hatoum, autor de Relato de um Certo Oriente e Dois Irmãos. Hatoum afirma que o "Euclides da Amazônia é muito diferente do Euclides de Canudos", pois ele já havia renunciado, em boa parte, às teorias racistas que tachavam o sertanejo de sub-raça. Na verdade, ele constatou que o seringueiro, explorado em regime de semi-escravidão nas terras do norte, era o sertanejo que havia fugido do nordeste em busca de melhores condições de vida. Os artigos sobre a Amazônia foram reunidos no livro À Margem da História.

A Semana

São José do Rio Pardo (SP), 15 de agosto de 1912. Inconformados com a decisão judicial que inocentava Dilermando de Assis do assassinato de Euclides, amigos do escritor se dirigem à cabana onde ele escreveu boa parte de Os Sertões – enquanto comandava a construção de uma ponte na cidade – para lhe prestar uma homenagem. Tem início, assim, um dos mais antigos eventos culturais do país. A partir de 1938, a comemoração alonga-se de 9 a 15 de agosto, inaugurando a Semana Euclidiana. "Antigamente era um evento esportivo e social", conta Álvaro de Oliveira Netto, diretor da Casa de Cultura Euclides da Cunha, instalada no local onde o próprio engenheiro morou com a família, entre 1898 e 1901. Na década de 60 foram criados os ciclos de estudos, em que alunos realizam, ao final das comemorações, uma maratona – prova – sobre os assuntos discutidos.

A Semana Euclidiana de 2002 foi a maior da história. Quase 500 maratonistas de 40 cidades diferentes participaram de palestras, eventos culturais e artísticos sobre a vida e a obra do engenheiro-escritor. São estudantes do ensino fundamental, médio e superior, orientados por mais de 50 professores de todo o país. Para o ano que vem, a comissão organizadora da Semana pensa em algumas mudanças, como a criação de oficinas de cinema e música que abarquem o tema.

São José do Rio Pardo parece ter crescido à sombra de Euclides da Cunha. As referências a seu nome e obra estão por toda parte: em um colégio estadual; na ponte que construiu enquanto escrevia Os Sertões; e até no hino da cidade. A professora Cármen Trovatto, diretora da Universidade Paulista (Unip), em São José, que lançou o livro A Tradição Euclidiana – Uma Ponte entre a História e a Memória durante a Semana, compara o culto ao escritor na cidade a "uma religião".

Álvaro Netto justifica a admiração pelo escritor: "O euclidianismo revela um pensamento muito atual, que é a conscientização sobre os problemas brasileiros". E acrescenta dizendo que "a mitificação é em torno de uma filosofia de vida contra a violência e a exclusão social". Sem dúvida, Euclides conquistou uma legião de admiradores no Brasil e no mundo. O livro que o consagrou já foi traduzido para dez idiomas diferentes. Todavia, o tradutor para o holandês de Os Sertões, August Willemsen, acha que, às vezes, a adoração é um pouco exagerada. "Na Holanda um escritor não é objeto de admiração incondicional como aqui. Lá, uma manifestação popular como esta seria impensável para quem quer que seja", afirma Willemsen, referindo-se ao desfile que dá início às comemorações da Semana. O holandês, que já traduziu outros grandes escritores brasileiros, como Guimarães Rosa e Machado de Assis, acha que Euclides da Cunha "não é um gênio, mas autor de um livro genial".

O mito

Em 1994, o jornalista Rinaldo Gama, da revista "Veja", fez uma pesquisa com grandes intelectuais do Brasil que apontaram Os Sertões como o maior livro da história do país. "Euclides foi um gênio verbal", diz Milton Hatoum, que, por outro lado, vê um pouco de ingenuidade na crença inabalável que o escritor tinha no progresso.

A tragédia familiar que custaria sua vida foi o que potencializou a criação de um mito. "Por protesto e adoração" é o lema do movimento euclidiano que se formou após sua morte: protesto pela absolvição de Dilermando e adoração pela obra do escritor. E em torno de Euclides da Cunha surgiu uma "religião cívica", como define Roberto Ventura. Para quem perdeu a Semana Euclidiana e quer saber mais sobre Os Sertões e seu autor, é só arrumar as malas e partir para o seminário internacional sobre o livro, que será realizado na Bahia, de 2 a 7 de dezembro. É uma boa oportunidade para ver que o mito está muito vivo ainda, para o bem ou para o mal.


Centenário no palco

Apesar do orçamento curto e de uma equipe pequena, o Teatro Oficina, localizado no Bixiga, região central de São Paulo, estréia no dia 2 de dezembro uma montagem de "Os Sertões" em comemoração do centenário da obra. "Além de um cientista, Euclides da Cunha era um artista, um poeta. Ele inventou o Brasil", justifica José Celso Martinez Correa, diretor do teatro.

Aos sábados, os ensaios da peça são abertos ao público. "A idéia é fazer o livro entrar no corpo das pessoas, de forma carnavalesca", explica Zé Celso. A organização do espetáculo tem um sonho ambicioso: envolver o espaço e a comunidade do Bixiga na encenação. "Vamos lutar para que a montagem seja feita pelo quarteirão, como se a área tombada do teatro representasse Canudos", completa o diretor.

É justamente essa área que há anos provoca uma disputa judicial entre o Oficina e o Grupo Sílvio Santos. O empresário, dono de boa parte dos terrenos ao redor do teatro, pretende construir um moderno centro de entretenimento, um "shopping cultural" que abrigaria cinemas e casas de espetáculos. De acordo com a assessoria de imprensa do grupo, o projeto, que "revitalizaria a região, tomada por mendigos e pela violência", conta com o apoio da prefeitura e da população do bairro.

Porém, as obras não foram iniciadas por proibição da Justiça. De acordo com a direção do Oficina, o empreendimento de Sílvio Santos impediria a ampliação do teatro e prejudicaria sua atual arquitetura. "Vão trazer Las Vegas para cá e expulsar a população do Bixiga", afirma Zé Celso. "Querem construir um apartheid", completa, referindo-se às queixas contra os moradores de rua do bairro. O diretor resume a encenação de "Os Sertões" como um ato de criação política, para "provar que a arte tem o poder de derrubar paredes".