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Falta de competitividade compromete futuro do porto de Santos

ALBERTO MAWAKDIYE

O porto de Santos, o maior da América Latina, precisa com urgência de uma injeção de investimentos, sob risco de perder essa condição. Embora não esteja de modo algum decadente em termos de movimentação de cargas – sozinho, ainda responde por um quarto de tudo o que se exporta e se importa no Brasil, o equivalente a US$ 27,8 bilhões em 2001 –, apresenta problemas estruturais que começam a abalar sua competitividade. O acesso difícil para trens e caminhões e o layout confuso e acanhado das instalações estão dificultando a vida dos exportadores, que já não conseguem encontrar com facilidade terminais disponíveis. Muitos empresários estão migrando para portos mais modernos ou espaçosos, como o do Rio de Janeiro, o de Itajaí (SC) e o de Paranaguá (PR).

A "fuga" é ainda insignificante em termos globais, já que Santos movimenta uma diversidade enorme de mercadorias – de produtos industriais, agrícolas e minerais a bens de capital –, por se encontrar no estado economicamente mais desenvolvido do Brasil, e a maioria dos outros portos é mais especializada. Mas tende a se acentuar na medida em que seus rivais também estão investindo em modernização e na busca de clientes – Sepetiba (RJ) é o que apresenta melhor visão de futuro. E os concorrentes se tornarão, com o passar do tempo, ainda mais atrativos se algo não for feito no porto paulista. Vários produtores de soja do centro-oeste já passaram a fazer seus embarques por Paranaguá, que, embora seja mais distante e tenha tarifas um pouco mais altas, oferece vantagens em termos de espaço e acesso. E o movimento de contêineres no Rio de Janeiro tem crescido a uma velocidade bem maior do que a observada em Santos.

Os planos de modernização estrutural e logística do porto de Santos existem há tempos. Talvez comecem finalmente a ser tirados do papel se a União – responsável por sua administração – transferi-lo de fato para a esfera estadual, como já aconteceu com praticamente todos os outros do país, com exceção de Rio de Janeiro, Belém, Vitória e Macapá, cuja regionalização está em andamento. A transferência da administração do porto santista estava prevista para junho passado, mas o processo emperrou por conta de uma dívida de quase R$ 800 milhões que a Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp), empresa federal que administra o porto, mantém com fornecedores, prefeituras da Baixada Santista, INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), Pasep (Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público), Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social) e na área trabalhista. O governo estadual quer que a União assuma essa dívida, em troca do compromisso de investir no porto e na infra-estrutura de apoio. Brasília, no entanto, sob a justificativa de que não teria caixa para quitar o débito, pretende que o estado de São Paulo herde a dívida.

De qualquer maneira, a regionalização do porto de Santos dificilmente deixará de ocorrer. Além de fazer parte do programa de governo do presidente Fernando Henrique Cardoso – a delegação dos portos via convênios entre estados e União é objeto de uma lei federal –, hoje é uma aspiração geral, de empresários a trabalhadores portuários, de políticos a especialistas do setor, embora obviamente com enfoques diferentes. "Não há a menor justificativa para que o porto de Santos continue a ser administrado por Brasília", critica o economista Josef Barat, consultor de várias entidades públicas e privadas da área de transportes. "Essa centralização dificulta a tomada de decisões. É uma concepção antiquada e antieconômica, que só alimenta a burocracia e não resulta em investimentos."

Filtro

São inúmeras as queixas dos empresários que operam ou utilizam o porto de Santos contra a demora na tomada de decisões pelas autoridades portuárias, sejam elas administrativas ou operacionais – tudo tem de ser filtrado por Brasília. Eles também reclamam da infinidade de órgãos federais existentes ali e que muitas vezes mal conversam entre si, por falta de uma coordenação mais próxima dos usuários. Há, dentro do porto, representantes dos ministérios da Agricultura, dos Transportes, da Saúde, da Receita Federal, entre outros, e a falta de sintonia entre eles torna o dia-a-dia administrativo e alfandegário confuso e improdutivo. Nas mãos do governo estadual, esse problema poderia ser pelo menos atenuado.

O processo de regionalização prevê a transferência da administração do porto para uma empresa formada pelo governo do estado de São Paulo e pelas prefeituras de Santos, Cubatão e Guarujá, cidades que abrigam o equipamento ou estão em sua área de influência direta. A "posse" do porto, no entanto, continuaria formalmente com a União, como prega a Constituição Federal. A regionalização seria uma espécie de "concessão" entre esferas de poder. Já a operação portuária prosseguiria nas mãos das operadoras privadas, que arrendaram 50 terminais antes administrados pela Codesp (equivalentes a 80% da área total de terminais públicos) a partir de 1994, e hoje movimentam a maior parte das entradas e saídas de mercadorias.

A Codesp também continuaria a existir, cuidando dos pequenos portos de cabotagem do estado e administrando a dívida em nome da União, de modo análogo à Rede Ferroviária Federal, que hoje só existe para gerenciar o débito assumido pela União quando da privatização das ferrovias e negociar os cerca de 35 mil imóveis que ainda lhe pertencem. Brasília, no entanto, parece não querer ver repetido esse modelo.

"Essa é a prova de que o governo federal está usando outro peso e outra medida no caso de Santos", dispara o consultor Adriano Murgel Branco, ex-secretário de Transportes e de Habitação do estado. "Se a nova empresa assumir a dívida, vai entrar em cena já estrangulada em termos financeiros." Murgel Branco diz que a União está negando na prática o que havia combinado. Segundo argumenta, as duas comissões que estruturaram o processo de regionalização – a primeira, mais conceitual e coordenada pelo próprio Murgel Branco, já extinta, e a outra, de cunho mais executivo, ainda em atividade – estipularam que toda a receita obtida pela nova empresa terá de ser investida no próprio porto. Mas isso será impossível, com quase R$ 800 milhões no passivo. Os trabalhos em ambas as comissões foram tocados por representantes do Ministério dos Transportes, governo estadual, prefeituras, entidades empresariais e de trabalhadores.

Há quem veja na disputa pela dívida da Codesp interferências políticas mesquinhas. A área de transportes sempre foi feudo do PMDB, em especial o porto de Santos, e os caciques desse partido estariam temerosos de perder influência se ele passasse para o governo paulista, hoje nas mãos do rival PSDB.

Retrocesso

A demora do governo federal em efetuar a transferência do porto para a esfera estadual começa a irritar os maiores interessados, os empresários. Já insatisfeitos por terem sido alijados da administração da nova empresa – a proposta de participação chegou a ser apresentada formalmente pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), mas foi rejeitada –, eles temem agora que o processo seja "rolado" indefinidamente e acabe dando em nada. "Isso seria lamentável, um verdadeiro retrocesso", esbraveja Wilen Manteli, presidente da Associação Brasileira dos Terminais Portuários (ABTP), que reúne as operadoras de terminais do país. "Ficou comprovado que apenas o arrendamento dos terminais não bastou, embora os custos operacionais tenham caído à metade depois disso. Para o porto ser eficiente, é preciso também mexer na administração e investir em logística."

Manteli diz que os empresários estão "fartos" da enorme burocracia que domina a vida do porto e que os eventuais novos investimentos privados vão depender da dinâmica que for adotada daqui por diante. "É preciso repensar tudo, dos serviços jurídicos ao trabalho de checagem, do cronograma de manutenção à jornada de trabalho dos portuários e às vias de acesso", acrescenta o dirigente empresarial. "E o impasse criado em torno da regionalização não ajuda em nada a resolver esses problemas."

Também os trabalhadores começam a torcer o nariz para o atraso na assinatura do convênio de transferência. Naturalmente, querem ver logo a situação resolvida, eles que já foram penalizados com o arrendamento dos terminais, o qual quebrou a espinha do lendário movimento de estivadores de Santos e jogou milhares deles no desemprego. Temem que algo pior possa acontecer se a regionalização não sair, ou demorar demais. "Quero ver como a União e o governo estadual vão fazer para transferir os trabalhadores da Codesp para a nova empresa", diz o vereador (PPS) e ex-dirigente portuário José Antonio Marques Almeida, o Jama, referindo-se ao período de "quarentena" em que entrou o serviço público devido às eleições de 2002 e que impede qualquer tipo de contratação ou demissão de funcionários. "Não foi à toa que junho passado foi fixado como data-limite da regionalização. Era o último mês em que a transferência podia ser executada antes das eleições e da posse dos novos governantes."

De fato, caso a regionalização se concretize antes da virada do ano, os administradores terão de encontrar algum artifício jurídico para montar o quadro de funcionários da nova empresa – ou deixá-la como uma casca vazia, até que o fim da quarentena eleitoral permita as demissões e as recontratações. O que pode azedar, nesse ínterim, o clima político e sindical na região, já não muito saudável. Os sindicatos de trabalhadores portuários poderão muito bem recolocar em discussão uma idéia que parecia esquecida, a de que a Codesp seja meramente estadualizada (sem a dívida, é claro) e não se crie nenhuma empresa nova. A proposta foi vencida porque até mesmo uma parte dos trabalhadores prefere que a transição do porto para o governo do estado seja feita por uma empresa sem vínculos com o passado. Mas tem seus defensores e também aqueles que gostariam de vê-la mais bem debatida.

É o caso da deputada federal Telma de Souza (PT), ex-prefeita de Santos e em cuja administração, uma década atrás, houve enorme mobilização pró-regionalização do porto, que acabou por convencer o governo Mário Covas a encampar a proposta e o Ministério dos Transportes a estendê-la depois para todo o país. "A manutenção da Codesp é uma proposta legítima, que tem suas virtudes e defeitos", diz Telma. "Mas muita coisa nesse processo está sendo decidida sem a necessária discussão. Até agora não entendi, por exemplo, por que os trabalhadores e os empresários não podem participar da administração da nova empresa."

Produtividade

Numa leitura mais atenta, a regionalização do porto de Santos não deixa de ser um prolongamento institucional – com grandes conseqüências na área de infra-estrutura – do processo de concessão dos terminais portuários, que modernizou toda a operação executada nos cais e nos armazéns. Desde que a União iniciou o arrendamento, em 1994, os novos operadores privados investiram, em conjunto, aproximadamente US$ 1 bilhão em maquinário, infra-estrutura operacional e informatização, a fim de tornar os terminais mais modernos e competitivos. Quase todas formadas por consórcios entre empreiteiras, empresas de agribusiness e de navegação, e irrigadas com dinheiro de bancos ou de fundos de investimentos – como a gigantesca Santos-Brasil, do ramo de contêineres –, as operadoras dependem agora de o poder público fazer sua parte para o porto deslanchar, eliminando gargalos de acesso e logística que estão expulsando clientes para outros portos.

O governo paulista só teria a ganhar com isso. A enorme melhoria na produtividade do porto de Santos no período pós-arrendamento resultou em mais negócios no estado e, conseqüentemente, mais arrecadação. O surpreendente é que o salto de qualidade em termos de movimentação de cargas, produtividade e redução de custos aconteceu em curtíssimo espaço de tempo. Um estudo encomendado pela Universidade Santa Cecília, de Santos, aos economistas José Rodrigues e José Pascoal Vaz, "Porto de Santos 1990-1999 – Uma Década de Transformações", mostra como quase todos os números relativos à movimentação de cargas melhoraram no período – um pouco ao preço de ter concentrado renda nas mãos dos operadores, que passaram a pagar muito menos à prefeitura de Santos do que fazia a Codesp (deixando a cidade à míngua) e ficaram com a cobrança da maioria das taxas portuárias. A redução em quase dois terços da mão-de-obra portuária devido à automação também ajudou a elevar a produtividade.

Segundo o estudo, a movimentação de cargas no porto de Santos, que era de 27,1 milhões de toneladas por ano na década de 80, passou a 34,2 milhões de toneladas anuais na primeira metade dos anos 90 e, no final dessa mesma década, saltou para 42,6 milhões de toneladas ao ano – quase 40% a mais do que em 1989. Só como comparação, o PIB brasileiro cresceu, nos anos 90, à ordem de 1,78% ao ano. No mesmo período, a movimentação de cargas no porto se ampliou em 3,35% ao ano.

Nos granéis sólidos (como minérios e adubos), houve incremento de cerca de 50%, e nos granéis líquidos (óleos e combustíveis, principalmente), de 22%. Produtos agroindustriais também apresentaram crescimento significativo. A própria movimentação de contêineres – item de altíssimo valor agregado e em que o porto de Santos perdeu terreno para os concorrentes, como o do Rio de Janeiro – foi digna de nota. Santos respondia por 58% do total de contêineres movimentados em portos brasileiros no final da década de 80, e, embora esse índice tenha caído para 39,64% em 1999, em número de unidades houve crescimento absoluto de 42,8%, no mesmo período – de 380 mil anuais para 590 mil. Em termos de tonelagem de carga (há contêineres de tamanhos diferentes), o porto movimentou um volume 118,4% maior em 1999 do que em 1990. O número de navios atracados também cresceu depois do arrendamento dos terminais. Foi de 3.775 navios por ano na década de 90, mas no triênio 1997/99 a média anual saltou para 3.974, o que mostra, definitivamente, que o porto entrou em nova fase.

Operação

O desempenho operacional dos terminais no embarque e desembarque também melhorou significativamente. Segundo dados da Codesp, por conta da automação crescente dos trabalhos portuários, em 1998 um navio de contêineres esperava oito horas para atracar. Dois anos depois, essa demora era de três horas, período equivalente ou inferior ao da maioria dos portos brasileiros de grande porte. A produtividade no embarque de contêineres também aumentou: antes eram embarcadas 20 unidades por hora, agora são 27 – perdendo ainda para o Rio de Janeiro, onde são 40 contêineres por hora. Naturalmente, devido a tudo isso, os custos portuários também baixaram, elevando a competitividade tarifária santista – mas nesse item os concorrentes mais uma vez seguiram o mesmo caminho. Em 1997, a movimentação de um contêiner em Santos custava US$ 313 e em Paranaguá, US$ 409. Em 2001, os preços haviam desabado para US$ 171 e US$ 181, respectivamente. No caso de Santos, essa queda foi possível pela redução das despesas de custeio, de R$ 228 milhões em 1998 para R$ 131 milhões no ano passado.

A ironia por trás de toda a história de perda de competitividade é que o porto de Santos ajudou a financiar a modernização daqueles que viriam a se tornar seus concorrentes. Criado em 1988 e extinto em 1996, pouco depois do início do processo de arrendamento dos terminais, o Adicional de Tarifa Portuária (ATP) era uma taxa baseada na movimentação de cargas e mais tirou do porto de Santos do que deu a ele. No período de vigência da tarifa, foram cobrados dos usuários R$ 478,7 milhões, que, depois de reunidos ao montante arrecadado nos outros portos brasileiros, foram posteriormente rateados entre todos eles. Santos, porém, recebeu somente R$ 140,5 milhões de ATP entre 1988 e 1996. A diferença, de R$ 338,2 milhões, foi aplicada em outros portos. E, para piorar, do total de R$ 1,6 bilhão investido pelo poder público em obras portuárias brasileiras desde 1995, apenas pequena parcela foi destinada a Santos. Em geral, esse dinheiro foi utilizado para "tirar do buraco" alguns terminais e instalações portuárias que não apresentavam as condições técnicas e operacionais mínimas para atrair as empresas eventualmente interessadas no arrendamento.

Os planos para a modernização física e logística da zona portuária santista abrangem a maioria das áreas de infra-estrutura e têm como paradigma os modernos portos europeus, asiáticos e norte-americanos. Ou seja, seguem a tendência contemporânea de torná-la um vetor estratégico do desenvolvimento econômico, em vez de simples entreposto de mercadorias. De acordo com esses planos, o porto não somente concentraria o fluxo de cargas de longo percurso como a cabotagem brasileira e latino-americana (que ocupa hoje em Santos não mais do que 20% das atividades portuárias), além de articular o transporte marítimo com o terrestre e o fluvial. Catalisaria ainda a implantação de empreendimentos industriais e de serviços na região – o chamado retroporto –, com importantes privilégios em termos de impostos. Para resumir, ele não apenas ficaria à espera das mercadorias, mas estimularia a produção e buscaria os produtos, em tese, onde quer que estivessem.

Com essa estratégia – que vai ao encontro da aspiração brasileira de ampliar o volume de exportações para tentar equilibrar a claudicante balança comercial do país –, o governo estadual calcula que o porto de Santos poderia movimentar 78 milhões de toneladas por ano de mercadorias daqui a cinco anos, o que equivaleria a um aumento médio de 10% ao ano e cerca de 80% a mais do que o total em 1999. O índice também é o dobro do crescimento previsto para o PIB nesse período.

"A tarefa parece enorme, mas um grande porto, sem tudo isso, tende hoje a definhar", sublinha o economista Josef Barat. "Para ser bem-sucedido, é preciso enfronhar-se na produção, fazer com que as mercadorias cheguem aos terminais por uma rede de transportes de primeira. E também enfrentar a concorrência sem hesitação." Barat cita o exemplo de portos norte-americanos, como Jacksonville, Tampa e Miami, todos no sudeste dos Estados Unidos, que se modernizaram e hoje concorrem ferozmente entre si, e os europeus, como Southampton, Le Havre, Roterdã, Bremen e Hamburgo, também altamente mecanizados e que praticamente se digladiam. "O porto de Bremen, no noroeste da Alemanha, implantou uma linha férrea até a Polônia e a Ucrânia unicamente para buscar trigo e depois exportá-lo", ilustra o especialista, para quem a timidez do Brasil no aspecto comercial-portuário pode ser comprovada pelo fato de o país movimentar apenas 60% dos contêineres operados na cidade de Hong Kong. "É essa mentalidade agressiva que os portos brasileiros precisam adotar."

Configuração

O problema é que o esquema logístico-econômico previsto para Santos precisaria ser inteiramente montado, uma vez que o que está em vigor é o mesmo da primeira metade do século 20. Existem ferrovias que ligam o porto ao interior de São Paulo e a uma parte de Mato Grosso do Sul, no centro-oeste – construídas entre os séculos 19 e 20 para o transporte de café –, mas não há ligação para as regiões sul e centro-norte. A malha ferroviária brasileira, aliás, tem pouco mais de 30 mil quilômetros de extensão, o que beira o ridículo, dado o tamanho do país. Quase tudo chega ao porto através de rodovia e há pouquíssima integração entre os modais rodo-ferro-hidro-portuário. As estradas regionais também são escassas e existem poucas conexões com as ferrovias. Só uma ou outra região produtora dispõe de algum tipo de ligação direta e economicamente eficaz com o porto de Santos. Essa distorção se deve ao fato de o Brasil ter-se constituído, até a industrialização inaugurada pelo presidente Getúlio Vargas em 1930, numa economia voltada para a exportação de produtos primários e para a importação de bens industrializados – o que, na verdade, justificou a criação do porto de Santos no fim do século 19, a partir de um atracadouro existente desde a época colonial. As economias regionais não tinham necessidade de comunicação entre si, e cada uma delas especializou-se, no século 20, em um bem primário de exportação: café em São Paulo, madeira e carnes no sul, cacau, açúcar e algodão no nordeste, borracha na Amazônia e babaçu no norte-nordeste.

A ligação entre as regiões sempre foi feita através de numerosos pequenos portos de cabotagem, os quais entraram em decadência vertiginosa com a predominância das rodovias, que os substituíram. E as hidrovias só começaram a existir efetivamente no país na década de 1980. O resultado é que, hoje, o porto de Santos recebe por rodovia 74% da soja que exporta – a modalidade mais cara e antieconômica. As ferrovias participam com 25%, e a inacabada hidrovia Tietê-Paraná, a única da metade sul do país e que é o modal de transporte mais barato, com apenas 1%. A cabotagem não fornece praticamente nada. Com relação a quase todos os outros produtos, a proporção é parecida, com nítida vantagem para as rodovias.

É um erro estratégico que se repete nos portos do restante do país – que, diga-se de passagem, também querem corrigi-lo, a exemplo de Santos. Nada mais comum do que o transporte de carne entre Santa Catarina, no sul, e Pernambuco, no nordeste, ser feito, por exemplo, por caminhões. As ferrovias, hidrovias e a cabotagem não são aproveitadas, devido à falta de coordenação intermodal e de investimentos.

Competitividade

Tudo isso se reflete na falta de competitividade geral da atividade portuária brasileira, agravada pelos impostos em cascata que incidem sobre as operações de exportação e importação. O frete portuário no Brasil chega a custar o dobro do que em alguns portos europeus e norte-americanos. Nos Estados Unidos, o escoamento de granéis agrícolas das regiões produtoras do meio-oeste, a uma distância média de 1,5 mil quilômetros do porto de Nova Orleans, no sul do país, custa, em média, US$ 8 a tonelada. No embarque, esse valor é acrescido de US$ 4. Como sobre esses produtos não incide imposto de exportação, o produtor norte-americano retém 95% do total da venda ao exterior.

Já no Brasil o escoamento das regiões produtoras situadas a uma distância equivalente do porto de Santos, ou seja, no centro-oeste, custa, em média, US$ 45 a tonelada, mais US$ 9 pelo embarque no porto. Com essa carga tributária, o produtor brasileiro recebe apenas 60% do valor da exportação. A falta de armazéns nos centros de produção, problema inexistente nos Estados Unidos, só agrava a situação.

A vantagem de Santos na comparação com outros portos brasileiros é que pelo menos uma base para a integração intermodal já existe. "Quase tudo já está pronto, o que falta são obras complementares e uma estratégia clara que as oriente", afirma o consultor Adriano Murgel Branco, para quem os próprios portos de cabotagem, que em geral são de outros estados e estão fora da jurisdição paulista, podem receber investimentos via convênios e parcerias. "Será necessária apenas uma ou outra obra nova."

A malha rodoviária paulista está há algumas décadas praticamente concluída – resta apenas construir algumas estradas vicinais e regionais –, e ficará ainda mais densa com a conclusão da terceira pista da Rodovia dos Imigrantes, que une a capital paulista à Baixada Santista, e do Rodoanel, via expressa que circundará a região metropolitana de São Paulo e ligará as mais de dez estradas interestaduais que passam por ali, desobrigando os caminhoneiros de atravessar o absurdamente congestionado centro de São Paulo. A malha ferroviária também está mais ou menos pronta. Falta apenas construir o Ferroanel, análogo ao Rodoanel e também na Grande São Paulo, e levar ao porto a via férrea Campinas-Santos, da antiga Estrada de Ferro Sorocabana, que recebeu US$ 270 milhões de investimentos nos anos 80 e apresenta um índice de utilização de apenas 16% – justamente por falta de acesso direto à área portuária.

A hidrovia Tietê-Paraná também se encontra quase toda implantada, restando apenas a conclusão da eclusa de Jupiá, no extremo oeste do estado, para permitir o acesso à região sul do Brasil e aos países platinos e a navegabilidade em 100% do sistema. O sul de Minas Gerais e o centro-oeste já estão ligados fisicamente à hidrovia. Apesar dos muitos investimentos industriais e agroindustriais ao longo de suas margens, ela ainda é subutilizada (o gasoduto Bolívia-Brasil, que passa a seu lado, tem sido um indutor de desenvolvimento mais importante). A hidrovia depende em demasia dos acessos rodoferroviários para o porto de Santos (ela termina na cidade de Pederneiras, a mais de 200 quilômetros do porto), o que desanima os industriais e os produtores rurais, que acabam por optar por outros modais de transporte. O equipamento também é mal atendido pelas estradas vicinais e regionais, além de encontrar-se um tanto isolado dos centros de produção.

Layout

"O problema mais grave do porto de Santos são suas portas de entrada, completamente inadequadas e ultrapassadas", sentencia o consultor Manuel de Andrade Reis, que coordena a comissão mista executiva de regionalização. "Sem mexer ali, de nada adiantará investir em outros lugares." De fato, o sistema viário que atende o porto confunde-se com a malha urbana de Santos, os acessos ferroviários são escassos, fragmentados, e os que existem não têm padronização de bitolas. Segundo Reis, a reformulação imediata do sistema viário e a readequação da malha ferroviária deveriam ser prioridade do governo estadual e também da prefeitura de Santos, que sofre diretamente com os congestionamentos de caminhões verificados todos os dias na área portuária e adjacências. As linhas férreas que chegam a Santos também se confundem com a que liga Santos ao litoral sul.

As companhias ferroviárias que exploram as linhas para Santos – Ferroban e MRS Logística – também poderiam investir na compra ou adaptação de equipamentos, tendo em vista a padronização de bitolas. As duas empresas fizeram aumentar a participação do modal ferrovia no porto de Santos de 4% para acima de 20% em pouco mais de uma década, com a compra de novas locomotivas e vagões. Esse índice poderia ser ainda maior se o porto permitisse o acesso de mais composições. Mas, para que essa expansão aconteça, as ferrovias terão, inevitavelmente, de também reduzir as tarifas cobradas na entrada do porto. São inúmeras as queixas dos empresários relativas ao preço de ingresso ao equipamento, cerca de dez vezes maior do que o do frete ferroviário comum.

Outra medida urgente é a remodelação da zona portuária, que necessita de obras de infra-estrutura, como o aprofundamento do canal e intervenções na área de saneamento. Seria necessário ainda retirar o navio Ais Giorgios, que afundou parcialmente há alguns anos diante do cais e cuja carcaça virou atração turística, ao preço de atrapalhar o tráfego das embarcações. O layout do porto também deveria ser redesenhado, já que é tão confuso e improvisado que acabam faltando vagas para os exportadores e importadores, embora ainda haja muitos espaços vazios. Os terminais foram se acumulando, ao longo da história, conforme a demanda exigia, e com isso a ocupação da área portuária não obedeceu a nenhum tipo de racionalização.

Com 7,7 milhões de metros quadrados, o porto arrendou até agora 80% do espaço público para os operadores privados, restando mais de 2 milhões de metros quadrados para serem usados com a mesma finalidade. A área remanescente está ocupada por terminais privativos, como o da Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa) e os das grandes empresas do setor químico ou agroindustrial, como Cutrale, Ultrafértil, Cargill e Dow Química, mas ainda há muito espaço disponível.

O próprio processo de arrendamento contribuiu para agravar a falta de racionalização. Por exigência da lei de licitações, cada terminal só pode receber um tipo de mercadoria, estabelecido no processo de concorrência. O resultado é que um terminal destinado a armazenar açúcar, por exemplo, não pode operar com nenhum outro produto, situação que não ocorria antes do arrendamento – a Codesp podia "jogar" livremente com os espaços e com as cargas que chegavam ao porto. A irracionalidade é hoje tão grande que os terminais de açúcar só operam 65% do ano, no período de safra, ficando às moscas na entressafra. Com isso, a capacidade total de armazenagem do porto caiu de 80 milhões de toneladas por ano para 68 milhões de toneladas anuais.

O governo estadual já se comprometeu a rever essa distorção – que influi decisivamente no preço da armazenagem. Alguns operadores cobram o que querem para aproveitar o excesso de demanda, ou então discriminam empresas entre seus clientes, num inequívoco indício de cartelização. Mas até que as mudanças ocorram, os empresários que precisam do porto vão operando como podem. Uma das maiores processadoras de soja do país, a Caramuru, reformou e ampliou há dois anos, em parceria com a Ferronorte, um pequeno armazém da Citrosuco, porque estava difícil encontrar abrigo para a soja em casos de necessidade. Como o problema não foi resolvido, a empresa, em parceria com a própria Ferronorte, teve de obter da Codesp a concessão de uma área para a construção de um terminal exclusivo, o que a princípio não desejava.

"Não havia outra saída", justifica César Borges, diretor da Caramuru e também da Associação Brasileira de Agribusiness (Abag). "Se não construíssemos este terminal, teríamos de vender parte da soja para os concorrentes." Localizado no chamado corredor de exportação do porto, o novo terminal da Caramuru, que custou R$ 32 milhões, é de grande porte, com capacidade de armazenagem de 180 mil toneladas, sendo 135 mil toneladas no estágio atual. Já no ano que vem deverá movimentar 2,5 milhões de toneladas de grãos e farelo de soja, que representam 5% das cargas que passam pelo porto e 10% do total da soja exportada pelo Brasil.

Retroporto

Outra providência para aproveitar melhor os espaços do porto poderia ser adotada logo que a nova empresa portuária fosse criada. Parte da área onde hoje ficam os terminais privativos poderia ser transformada num retroporto, um parque industrial (geralmente de montagem) voltado para a exportação e livre de uma série de impostos. Já há uma proposta do Centro das Indústrias do Estado de São Paulo (Ciesp) santista de implantar ali um distrito industrial, com o respaldo do setor calçadista e de plásticos. O retroporto, aliás, não precisaria se limitar à área do porto, a exemplo do que acontece com empreendimentos similares em outros países. A indústria automobilística do ABC paulista, assim como outros segmentos desse decadente pólo, poderia ser incluída no retroporto, devido à proximidade geográfica.

A própria cidade de Santos poderá ter participação, uma vez que a prefeitura tem planos de destinar uma área específica dentro do município para a construção de terminais e de pequenos distritos industriais voltados para a exportação. Quer também multiplicar projetos turísticos focalizados na área portuária– há nos quarteirões próximos ao porto construções belíssimas do começo do século 20, apogeu da era do café, como o Theatro Colyseu e a Bolsa do Café, além de um arruamento relativamente preservado. A Codesp já cedeu à prefeitura quatro armazéns de interesse histórico para implantação de um centro cultural. "Trata-se, na verdade, de um projeto urbanístico amplo, pois queremos inserir o porto na vida da cidade, a exemplo do que fizeram várias capitais do nordeste, como Recife e Fortaleza", conta José Manuel Costa Alves, chefe do Departamento de Desenvolvimento Social e Econômico de Santos. "O porto sempre deu as costas para a cidade. Vamos começar a mudar isso, no contexto do processo de regionalização."

Mesmo que não saiam inteiramente do papel, esses projetos da prefeitura, escorados na transferência do porto, poderiam recuperar um pouco a capacidade de investimento do município, sem dúvida o que mais perdeu com o arrendamento dos terminais portuários. Hoje, Santos é a cidade com um dos mais elevados índices de desemprego do Brasil – 22% da população economicamente ativa (PEA) –, fruto em grande parte da automação das atividades portuárias e das mudanças no processo de contratação de estivadores. Os empregos diretos no porto caíram de cerca de 30 mil para 10 mil em menos de uma década, e a massa salarial que deixou de circular na cidade é estimada em mais de R$ 200 milhões por ano – e nesse cálculo não estão incluídos os milhares de trabalhadores avulsos que também perderam seus empregos. Os operadores privados, obviamente, lucraram com isso – entre 1990 e 1999, segundo a pesquisa da Universidade Santa Cecília, a remuneração do trabalho declinou 33,1% dentro do porto, enquanto houve um crescimento de 47,9% no volume de carga movimentada. O custo da mão-de-obra por tonelada reduziu-se a praticamente metade, de R$ 16,62 em 1990 para R$ 8,06 em 1999. Mas a cidade quase não vê esse lucro. A participação do ICMS na receita do município, devido principalmente ao desemprego, desabou de 34,3% para 15,7% em uma década.

Os prejuízos ocasionados pelo arrendamento dos terminais são também diretos. A queda de receita da Codesp depois das concessões fez com que a companhia não pagasse até hoje dívidas referentes a Imposto Predial, Territorial e Urbano (IPTU) e a Imposto sobre Serviços (ISS) superiores a R$ 200 milhões. E a transferência da cobrança sobre movimentação de cargas, a "taxa de capatazia", da Codesp para os operadores privados – uma das premissas do arrendamento –, fez com que outros R$ 200 milhões anuais deixassem de circular na cidade. "O que aconteceu com Santos foi um verdadeiro massacre", esbraveja o vereador santista Fausto Figueira (PT). "É preciso fazer alguma coisa, pois como está a situação não pode continuar."