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O grande desafio


Colheita de café em Timor Leste / Foto: Leonardo Sakamoto

Timorenses se empenham na reconstrução do país devastado

LEONARDO SAKAMOTO*

Timor Leste tornou-se o mais jovem país do mundo no primeiro minuto do dia 20 de maio, quando Kay Rala Xanana Gusmão foi empossado presidente da República. A antiga colônia portuguesa, tomada pela Indonésia em 1975, chegou à independência em um referendo 24 anos depois, quando 78,5% da população votaram pela liberdade. Durante esse tempo, cerca de 300 mil pessoas perderam a vida – 44% da população em relação ao início do conflito. Um dos maiores genocídios do século 20. Grupos insatisfeitos com o resultado provocaram uma onda de destruição. Muito pouco sobrou. Passado um período de transição sob administração especial das Nações Unidas, os governantes eleitos pelo povo têm pela frente a dura tarefa de fazer Timor renascer.
O sistema de governo é parlamentarista, e a Frente Revolucionária de Timor Leste Independente (Fretilin) detém a maioria das cadeiras. Mari Alkatiri é o primeiro-ministro. O presidente, que prefere ficar acima do debate partidário, defende uma democracia mais direta, com o uso de consultas e mais participação dos 850 mil habitantes. A Fretilin, por sua vez, quer a democracia representativa, com o poder no Parlamento.
Um dos dez países mais pobres do mundo vê na agricultura orgânica, na exploração de gás e petróleo (Timor possui uma das 20 maiores reservas do planeta) e no ecoturismo caminhos para o desenvolvimento de sua economia.
Xanana Gusmão era comandante-geral das Forças Armadas de Libertação Nacional de Timor Leste (Falintil) e líder máximo da resistência. Capturado, esteve preso durante sete anos. Carismático e inteligente, viu reunida em torno de si a totalidade da população, que só aceitava negociar depois que ele estivesse livre.
Entre 28 de julho e 3 de agosto, aconteceu a primeira visita oficial de um chefe de Estado timorense ao Brasil. Xanana Gusmão participou do encontro da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) em Brasília, na qual Timor foi aceito como membro. Em busca de apoio, encontrou-se com diversas autoridades e empresários.
Xanana Gusmão e o general Taur Matan Ruak, comandante das forças armadas de Timor Leste, concederam entrevistas exclusivas a Problemas Brasileiros.

Problemas Brasileiros – Passada a fase de transição, Timor está pronto para ser livre? E Xanana Gusmão está pronto para novamente liderar seu povo?
Xanana Gusmão – O sentimento de necessidade de libertação nasce da ausência de liberdade. Os timorenses estão prontos, como se diz, para ser livres desde o dia em que deixaram de ter a liberdade de determinar seu próprio futuro.
O povo de Timor Leste expressou de forma inquestionável seu desejo em relação ao futuro quando votou a 30 de agosto de 1999. Essa opção, tomada com risco da própria vida, foi feita sem levar em conta quem era o "líder".
Hoje, Timor Leste é um Estado independente, que dispõe de instituições que estamos em processo de consolidar. Fortalecer essas instituições, fazer respeitar a lei fundamental, que é a Constituição, e assegurarmo-nos de que o sistema democrático é participado e o Estado de direito prevalece em Timor creio serem a "liderança" necessária a esse país recentemente nascido. Esse é também um processo de aprendizagem.

PB – Grande parte do país foi destruída à época do referendo, e agora há um trabalho gigantesco pela frente. Os grupos políticos timorenses superaram suas diferenças?
Xanana Gusmão – A reconstrução de Timor Leste é já uma realidade parcial do ponto de vista físico-material, e foi possível até a data graças à mobilização da comunidade internacional e ao apoio que foi canalizado para nosso país de modo a reorganizar e reestruturar, com a rapidez possível, a base mínima a partir da qual ele poderia começar a funcionar.
Agora, cabe aos timorenses continuar e aprofundar esse processo: reconstruir o tecido econômico, consolidar as estruturas sociopolíticas, construir um sistema democrático em que o cidadão sente que participa e sua voz é ouvida, e iniciar a implementação de um plano de desenvolvimento que, porque estratégico, e num faseamento que irá até aos 25 anos, permita tirar nossa população do nível de pobreza em que se encontra e restaurar a dignidade das condições de vida em geral.
Pergunta-me se superamos as diferenças. Espero que não. Este é o momento de vivenciá-las. É na diferença que vamos crescer, amadurecer, aprender o respeito democrático e enriquecer nosso debate e as opções tão difíceis que temos de fazer nestes primeiros anos de independência. No que é fundamental e estratégico para o futuro do país, as diversas forças políticas e da sociedade civil estão em acordo. Creio que isso é essencial. No resto, a diferença não só é desejável como saudável.

PB – O Brasil, apesar de suas riquezas naturais, é extremamente dependente do capital internacional e tem uma das maiores dívidas externas do mundo. O pagamento de parcelas de juros ao Fundo Monetário Internacional e outras agências de crédito tem impossibilitado o investimento em projetos sociais. Enquanto isso, mais de 30 milhões de brasileiros vivem abaixo da linha de pobreza. Como será possível desenvolver Timor e manter a soberania?
Xanana Gusmão – Pela forma como me coloca a pergunta, a resposta "natural" seria: "Não contraindo dívidas". Timor Leste tem um enorme potencial em diversos setores. Creio que, com a formulação de uma arquitetura legislativa que incentive o investimento direto nacional e estrangeiro, garanta o funcionamento pleno do setor privado e a abertura de nosso país ao mundo, teremos as condições necessárias de desenvolvimento. O que significa, em primeiro lugar, aliviar a pobreza imediata em que se encontra a esmagadora maioria de nossa população – cerca de 41% vivem abaixo da linha de pobreza absoluta, com menos de 55 centavos de dólar diários. Para atingir esse objetivo prioritário e estratégico, impõem-se dois passos: garantir o investimento para criar emprego e riqueza e, em segundo lugar, assegurar a educação das gerações mais jovens. Se não encararmos esses dois desafios em conjunto, dificilmente o país garantirá um tipo de desenvolvimento que seja não apenas sustentável no futuro como também consolidado no tempo. Por outro lado, há que afirmar também a soberania através da criação de meios próprios de financiamento de nosso Orçamento Geral do Estado. Atualmente, este é garantido por doações da comunidade internacional. Esse é um objetivo para os anos que se aproximam e um desafio imenso que, estou certo, iremos vencer.
A soberania tem igualmente seu lado político e, aqui, só a consolidação das nossas instituições, o desenvolvimento de uma cultura democrática e de um governo baseado em bons princípios, com a implantação de práticas transparentes e de combate à corrupção – infelizmente tão disseminada e enraizada nos chamados países em vias de desenvolvimento –, o fortalecimento da sociedade civil e do seu papel crítico e participativo e a educação das gerações mais jovens para a garantia de uma cidadania responsável, tal como em tantos outros países do mundo, poderão garantir a soberania da nação.

PB – Qual a perspectiva para que todos os refugiados possam voltar às suas casas?
Xanana Gusmão – Estima-se em 250 mil o número de timorenses que foram deslocados para Timor Ocidental, em setembro de 1999, após a realização do referendo de 30 de agosto. Atualmente, as Nações Unidas calculam em cerca de 50 mil o total de timorenses de leste que ainda permanecem em Timor Ocidental. Em outras palavras, cerca de quatro quintos dos deslocados já regressaram. É algo surpreendente, na medida em que nossa população não atinge 900 mil habitantes. Em qualquer sociedade, estando as suas estruturas fragmentadas, a inserção de um tal número de pessoas causaria impactos difíceis de imaginar e, mesmo, prever. Creio que poderá haver sempre uma parcela de timorenses que não regressará a Timor Leste, por razões diversas, nomeadamente funcionários da administração pública indonésia.
Em todo esse fenômeno de retorno a Timor Leste, o processo de reconciliação desempenhou um papel crucial. Não fora o grau de conscientização política, sentido humanista e enorme vontade de olhar o futuro e não cair no erro de viver eternamente o passado, demonstrados por nossa população, acredito que teríamos vivido um clima de conflituosidade. A proposta de lei de anistia, atualmente em debate, será um instrumento relevante para tranqüilizar espíritos em todo o país.
Atribuímos importância ao relacionamento que desenvolvemos com a República da Indonésia. O regresso dos timorenses a Timor Leste já deixou de ser um problema, e consideramos que agora o que importa é garantir que o entendimento entre Indonésia e Timor Leste seja de bons vizinhos, de respeito mútuo entre duas nações soberanas e de cooperação que desejamos desenvolver em variadas áreas e que cremos ser benéfica para ambos os países. Caminhamos para isso, e a recente visita oficial que fiz à Indonésia, pela forma calorosa como fomos recebidos pela chefe de Estado, presidente Megawati Sukarnoputri, seu governo e o Parlamento, é a prova da vontade das duas nações de construir essa relação.

PB – Quando conversamos na Penitenciária de Cipinang, em setembro de 1998, o senhor disse que seu país não exigia muito do governo brasileiro no caso da independência porque compreendia nossas relações comerciais com a Indonésia. Hoje, quatro anos depois e com Timor livre, como o senhor encara que deva ser a atuação do Brasil na reconstrução e desenvolvimento de seu país?
Xanana Gusmão – O Brasil tem um papel insubstituível em Timor Leste. Basta ver a forma como nossas crianças correm para o colo dos soldados brasileiros nas cerimônias de despedida dos vários contingentes que já estiveram estacionados em Timor. A rádio passa com enorme freqüência e recorrência a música brasileira, cujas letras são cantadas do início ao fim mesmo por quem não sabe falar português. Nossos doentes preferem esperar para ser atendidos por um médico brasileiro, porque "compreendem melhor o que sentimos". Em todo o Timor Leste, onde estão brasileiros está a população em volta, e a se comunicar, mesmo perante as dificuldades lingüísticas. Isso tem um significado que devemos levar em conta em qualquer avaliação que possamos fazer da cooperação brasileira e do relacionamento entre Estados.
Por isso falamos em comunidade de afetos quando nos referimos ao tipo de contato que existe entre os membros da CPLP. Relacionamo-nos com muitas nações do mundo, em todos os continentes. Queremos nos aproximar dos países da região e dos nossos vizinhos imediatos em particular, mas o caso do Brasil e demais membros da CPLP é único. Trata-se de afeto de irmãos, insubstituível porque foi tecido na história, na solidariedade e no sofrimento conjunto.
Nós esperamos muito do Brasil pelo que podemos aprender e cooperar. Naturalmente nunca haverá competição entre nós em matéria econômica. Mas são tantas as áreas em que o Brasil oferece fraternalmente seu apoio a Timor Leste: na formação diplomática, na Justiça, na educação, na agricultura... Contudo, e apesar do esforço que o país já está fazendo em Timor Leste, somos constantemente confrontados com pedidos de todos os setores para que aumente a presença brasileira.
A área de maior necessidade imediata é, indiscutivelmente, a da educação e, mais concretamente, a do ensino e expansão da língua portuguesa. Somos já membros de pleno direito da CPLP. Na nossa Carta fundadora, a expansão da língua portuguesa e seu enriquecimento são tratados como imperativos.
Só com uma presença generalizada de técnicos, professores, alfabetizadores, de programação televisiva e de rádio é que conseguiremos disseminar a língua portuguesa, pela qual optamos como oficial a par da língua nacional, o tétum.
Nossa população mantém um relacionamento carinhoso com os brasileiros que cumprem missões em Timor Leste. Venham para Timor Leste ajudar no nosso desenvolvimento. Venham os professores, os técnicos, os investidores, e por que não as novelas brasileiras, as quais os timorenses seguem apaixonadamente. Veja o caso de Lucélia Santos. Ainda hoje ela é a "Escrava Isaura", que foi tão intensamente seguida pelos timorenses.

PB – O café continuará sendo importante na pauta de exportações? Como está o processo para fechar outras parcerias com o Brasil no campo de tecnologia agropecuária?
Xanana Gusmão – O café é um dos ex-libris do meu país. Lamentavelmente, durante muitos anos, foi indevidamente tratado e cuidado, pelo que agora sofremos as conseqüências de produção limitada de café de primeira qualidade. No setor da agricultura, o domínio desse produto tem merecido do Brasil uma atenção especial, e foi assinado em 18 de maio deste ano um protocolo de cooperação para 16 meses, exatamente para o melhoramento da produção, incluindo técnicas de cultivo, capacitação dos agricultores para a fase de colheita e a produção de um manual prático sobre o café.
Comparativamente ao Brasil, a produção do café timorense não tem concorrência possível, a não ser que Timor Leste opte por uma produção, inevitavelmente limitada do ponto de vista quantitativo, com características únicas, em que o Café Timor se torne sinônimo de qualidade e uma marca reconhecida como tal.
Como se vê, o relacionamento do Brasil com Timor apresenta aspectos singulares: um dos concorrentes de um dos nossos principais produtos agrícolas ajuda-nos a aprimorá-lo para melhor competirmos! Só entre irmãos é possível uma cooperação dessa natureza.
A experiência do Brasil no setor agropecuário é enorme e rica. Sem dúvida que seria da maior importância para Timor poder contar, por exemplo, com formação e treinamento de técnicos nas áreas da pecuária, das florestas, da veterinária, da bioestatística e, mesmo, da investigação agronômica. Estamos a começar o relacionamento entre Estados e, como tal, também iniciamos o debate setorial sobre como prestar mais e melhor cooperação mútua.


Cooperação militar

O general Taur Matan Ruak, de 46 anos, é também uma figura carismática e de grande simpatia. Desde jovem lutou pela independência, haja vista que já era um dos comandantes da guerrilha com apenas 19 anos. Assumiu as Falintil na selva quando Xanana Gusmão foi capturado.

Problemas Brasileiros – É de interesse de Timor uma parceria com o Brasil em treinamento militar?
Taur Matan Ruak – O Brasil é um dos países de expressão lusófona. É de interesse de nosso governo e, particularmente, do exército manter uma cooperação estreita com o Brasil. E já fizemos demandas com esse objetivo. Esperamos que, a médio ou mesmo a curto prazo, consigamos aquilo que tanto desejamos – envolver o exército brasileiro na formação de nossos homens.

PB – Como estão organizadas e quais são os principais objetivos das forças armadas de Timor?
Matan Ruak – Propõe-se criar um exército composto de 3 mil homens, dos quais 1,5 mil regulares e 1,5 mil reservistas. Atualmente, temos um batalhão de infantaria ligeira, composto por 475 homens já formados, uma unidade de componente naval, composta por 50 homens, e, neste momento, estamos a começar com os treinos do efetivo do segundo batalhão. Prevê-se concluir a formação das forças regulares no final de 2003. Pois, como se sabe, a retirada total das forças de manutenção de paz está agendada para princípios do último semestre de 2004. Fundamentalmente, temos três missões importantes: defender o país de agressão externa, assumir os compromissos militares internacionais de nosso Estado e dar apoio humanitário em situações de desastre natural.


* O jornalista Leonardo Sakamoto esteve em Timor Leste em 1998, realizando reportagem sobre a luta pela independência. Naquela época, entrevistou Xanana Gusmão, preso em Jacarta.