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Cena de "Cidade de Deus" / Divulgação

O horror e a crueldade de um universo em que todos são vítimas

CARLA ARANHA

Os casebres perfilados nas ruas sem esgoto, sem água encanada, sem calçamento, sem nada ecoam os tiros disparados pelas gangues rivais dentro da favela. De um lado, Zé Pequeno, de outro, Mané Galinha, líderes de bandos inimigos. No meio, a arte. Busca-Pé, posicionado entre os dois grupos, saca sua máquina fotográfica e faz rodar o filme, de sua vida e das nossas também.

No cinema, é um breve e bem-vindo momento de alívio durante os 135 minutos em que os espectadores vivem em suspenso, segurando a respiração, tal e qual os milhões de habitantes das favelas de todo o Brasil, submetidos a uma rotina diária de medo, humilhação, sangue e dor. O chamado à consciência que representa o filme Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, chegou também aos críticos de cinema de Cannes, na França, onde a fita foi exibida com sucesso no festival deste ano, embora fora da competição oficial. "A ação se passa no Rio de Janeiro, mas retrata uma realidade universal, a da grande riqueza lado a lado com a miséria", diz Meirelles, explicando a boa acolhida da obra na Europa.

Além de ter obtido resenhas favoráveis nos principais jornais europeus, como "Le Monde" e "The Guardian", o filme teve seus direitos de distribuição vendidos para a poderosa Miramax. Assim, o diretor recuperou os quase US$ 3 milhões que investiu do próprio bolso para levar Cidade de Deus às telas, baseado no romance de Paulo Lins, ele próprio um ex-morador da favela que dá nome ao livro.

"Algumas obras de arte têm o poder de mudar nossa vida. O livro de Paulo Lins é uma delas", diz Fernando Meirelles. "Fiquei surpreso ao perceber que aquela era uma realidade quase desconhecida para mim e para muitos brasileiros, apesar de convivermos com ela diariamente."

Para encenar a vida daqueles que sofrem o que Meirelles chama de apartheid social, foram recrutados cem jovens nos morros cariocas. A co-diretora, Kátia Lund, fez pessoalmente a triagem – compareceram 2 mil garotos aos testes. Coube ao elenco amador quase todos os papéis. A exceção é o ator Matheus Nachtergaele, de Central do Brasil e Auto da Compadecida, que faz o traficante Sandro Cenoura.

O filme expõe os abismos sociais das grandes cidades brasileiras, num universo em que até o linguajar de seus atores causa estranheza. Em alguns momentos chega a ser difícil entender as frases pontilhadas de gírias e cheias de erros de gramática, típicos daqueles que não puderam freqüentar a escola. Os diálogos, curtos e cortantes, transmitem em poucas palavras a enorme distância existente entre os favelados e os outros. "É a gente da favela e vocês da sociedade", diz um dos personagens, reproduzindo uma fala que o próprio Meirelles ouviu muitas vezes da boca dos favelados enquanto rodava o filme.

São frases que passam pelo estômago. Um estômago habituado a não enjoar diante das valas de esgoto a céu aberto e do sangue derramado durante as atrocidades cometidas por mocinhos e bandidos. E pensar que a Cidade de Deus foi o local imaginado por Santo Agostinho por volta do início do século 5º, em sua obra homônima, como o Reino de Cristo, em contraposição à Cidade dos Homens, esta satânica e injusta, que seria eternamente punida.

Certamente o filósofo cristão não poderia imaginar que num país distante, completamente desconhecido em sua época, existiria um dia uma bela cidade chamada Rio de Janeiro, onde, no século 20, haveria um conjunto habitacional para pobres, longe de tudo e sem qualquer infra-estrutura. E muito menos que, ironicamente, esse depósito de gente receberia o nome da sociedade ideal imaginada por ele.

Em Cidade de Deus, os moradores ora têm de escapar do crime organizado, ora da polícia. É um lugar em que os garotos correm, se escondem, suam frio e se despedem da infância antes que ela tenha terminado. "Existe um descaso total para com essas pessoas. Elas são excluídas de forma sistemática. Dizemos besteiras como que em São Paulo as favelas rodeiam a cidade e, no Rio de Janeiro, estão no meio dela. Aquilo é a cidade! São casas, ali moram pessoas", diz Fernando Meirelles, que anteriormente havia filmado Domésticas, em 1999, e o curta Palace II, em 2001.

As últimas estatísticas corroboram a análise do cineasta. Um levantamento recente feito pelo jornal "Folha de S. Paulo", com base nos dados do Censo 2000 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostra que um em cada dez moradores da cidade de São Paulo vive em favela, cortiço ou nas ruas. Trata-se de um contingente de mais de 1 milhão de pessoas – só a população de favelados ultrapassa 900 mil.

Para Cecília Coimbra, psicóloga e vice-diretora do Grupo Tortura Nunca Mais, do Rio de Janeiro, os moradores das áreas mais pobres são humilhados, desrespeitados, violentados, enclausurados e exterminados cotidianamente. "Eles são vistos como não-pessoas", diz Cecília, que lançou no ano passado o livro Operação Rio – O Mito das Classes Perigosas. Tal visão, segundo a autora, dá armas às políticas de repressão aplicadas a essa parcela do povo brasileiro. "Trata-se de uma mentalidade que acaba por justificar qualquer ação policial nos morros e as mortes ocorridas, muitas vezes de inocentes", afirma ela.

Em fins dos anos 70 e início dos 80, época retratada no filme de Fernando Meirelles, as ações dos agentes do Estado contra os moradores das favelas e os pobres em geral se intensificaram, de acordo com Cecília. "Durante a ditadura, o inimigo era o militante político, geralmente um cidadão de classe média. Depois passou a ser o pobre, o desfavorecido, o indefeso."

Não por acaso, o romance do escritor e professor de português Paulo Lins tem início em 1966, pouco tempo depois da instauração da ditadura, quando a política de achatamento do salário mínimo, o crescimento da miséria e, no plano urbano, a formação de guetos sociais ganharam força.

Foi nesse período que a expansão da Cidade de Deus se deu rapidamente, com a transferência de centenas de pessoas de várias favelas do Rio de Janeiro para o conjunto habitacional de Jacarepaguá. Nos anos 70, com o aumento da população, o lugar se transformou em favela e foi se expandindo sem governo, sem infra-estrutura, sem escola e sem saneamento básico. O crime organizado então tomou corpo, cresceu e começou a matar.

A ação termina nos anos 80, uma época emblemática do aumento da violência no país, e é também quando a guerra entre os líderes dos bandos inimigos da favela atinge seu ápice. Entre mortos e feridos, poucos se salvam – um deles é Busca-Pé, personagem vivido pelo ator amador Alexandre Rodrigues, que vê na arte seu salvo-conduto.

Foi nesse período que a perseguição dos agentes do Estado aos favelados (bandidos ou não) também aumentou, segundo Sônia Carvalho, diretora do Centro de Justiça Global, uma das mais importantes organizações não-governamentais de direitos humanos do Brasil.

Recentemente a entidade divulgou um relatório sobre a tortura no país segundo o qual, só no estado de São Paulo, nos últimos dois anos foram torturadas 4 mil pessoas, o que dá mais de cinco pessoas seviciadas por dia. Ou seja, enquanto você está lendo este texto provavelmente há alguém levando choque elétrico, sendo "afogado" ou espancado. "Isso acontece todos os dias no país, sem que a mídia ou as autoridades dêem muita importância ao fato", diz Sônia Carvalho.

O relatório "Execuções Sumárias, Arbitrárias ou Extrajudiciais – Abril de 2001", do Centro de Justiça Global, Federação Internacional de Direitos Humanos, Franciscan International/Dominicans for Justice and Peace, Movimento Nacional de Direitos Humanos, Plataforma Interamericana de Direitos Humanos e Fundação Ford, traz estatísticas relativas ao tema. De acordo com o levantamento, os negros e pardos constituem 71,28% das vítimas dos homicídios em geral praticados no Brasil (tendo como base o ano de 1999). No caso de mortes causadas por policiais e grupos de extermínio, essa porcentagem aumenta para 84,96%. Além disso, a maioria dos mortos é do sexo masculino (97,39%) e jovem (55,92% têm entre 18 e 35 anos, e 7,14% morrem com menos de 18 anos de idade).

"Infelizmente, muitos não passam da adolescência", diz Fernando Meirelles, referindo-se aos moradores das favelas. O cineasta conviveu durante três meses com eles enquanto rodava o filme na favela de Sepetiba, no Rio de Janeiro, porque Cidade de Deus não oferecia a segurança necessária. "No ano passado, 17 mil meninos de 12 a 20 anos foram mortos à bala no Brasil", afirma o diretor.

Foi assim que morreram, entre tantos outros, os adolescentes cariocas Halerson Vieira da Silva, 15 anos, Edson Gomes de Lira, 14 anos, e Alex Rodrigues, 17 anos, moradores do Jardim Santa Catarina, em um subúrbio do Rio. Eles foram seqüestrados por dois carros da polícia no dia 27 de agosto de 2000 e mortos na madrugada do dia seguinte. Os três amigos tinham saído na noite de sábado para encontrar colegas do bairro, mas no caminho foram surpreendidos pelos carros do Serviço Reservado do 7º Batalhão de Polícia, conforme consta no inquérito policial instaurado na 74ª Delegacia de Polícia. Depois de uma tentativa frustrada de extorsão de dinheiro feita ao pai de Edson, Antônio de Lira, os três foram torturados e mortos. Antônio credita as mortes a um desejo de vingança, visto que ele procurou a delegacia para relatar o fato quando recebeu o primeiro telefonema dos seqüestradores.

Rodrigo Marques da Silva, 15 anos, também não conseguiu chegar à maioridade. Ele morava no Morro da Coroa, em Santa Teresa (no Rio de Janeiro), e não tinha antecedentes criminais. Morreu durante uma batida do 1º Batalhão de Polícia Militar enquanto descia as vielas da favela que levam ao campo de futebol. O laudo do Instituto Médico Legal mostra que o garoto levou um tiro na cabeça e outro na perna, ambos pelas costas. Os cinco policiais envolvidos no caso foram afastados da corporação. Esse e outros casos de morte precoce provocada por policiais e grupos de extermínio estão disponíveis no site www.global.org.

Mas a verdade é que a insegurança tem causas variadas. Segundo Nancy Cardia, do Núcleo de Estudos da Violência, da Universidade de São Paulo (USP), o desemprego, a falta de escola, de saúde e principalmente de perspectivas formam um quadro de violência à flor da pele. "É também uma vida de profunda instabilidade, em que não é possível planejar o futuro, mesmo porque não há emprego ou quaisquer garantias econômicas", diz ela.

Talvez esse clima de terror ajude a explicar por que parecem tão chocantes e ao mesmo tempo naturais as mortes escabrosas que ocorrem nesse cenário. Paulo Lins descreve em seu livro o assassinato de um bebê. O pai, desconfiado de que o filho seja de outro, esquarteja o recém-nascido, coloca-o numa caixa de sapato e a entrega à mãe, que cai desmaiada.

Cenas de crianças matando podem parecer tão chocantes quanto essa morte brutal da ficção – e são. Em Cidade de Deus, elas pegam em armas, atiram e tomam o poder dos bandidos adultos, em cenas de arrepiar. "Nada mais é do que a realidade. Hoje, há pelo menos 20 mil garotos armados que vivem do tráfico de drogas. Desses, mil estão liderando o crime e controlam todo o subúrbio carioca", afirma Fernando Meirelles.

Para que as crianças das favelas tenham uma infância normal – e não peguem em armas –, só com escola e oportunidade de emprego, na opinião do diretor. Caso contrário, continuará a ser pronunciada pelos morros afora a fala de um dos garotos de Cidade de Deus que tanto chocou os críticos de cinema brasileiros e europeus: "Não sou criança, não. Fumo, cheiro, matei, roubei. Sou sujeito-homem". Resta saber se os da "sociedade", como a rapaziada do morro se refere àqueles que não vivem ali, são sujeitos-gente, e não sujeitos-verme.

"As próximas eleições estão aí", lembra Meirelles. "A única saída é a inclusão social, o que depende de vontade política. Senão, em 2008 vamos dizer: ‘Como era bom em 2002, quando havia só fuzil e míssil’, e estou falando sério". O alerta está dado.


Nas páginas de "Cidade de Deus"

Como o personagem Busca-Pé, o escritor carioca Paulo Lins cresceu em Cidade de Deus, de onde saiu com pouco mais de 30 anos. Paulo se formou em letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e logo se integrou ao grupo Cooperativa de Poetas. Enquanto dava aulas de português e escrevia poesias, ele foi preparando terreno para seu romance de estréia, "Cidade de Deus", lançado em 1997 pela editora Companhia das Letras.

"Só consegui estudar porque era o caçula de quatro irmãos. Todos eles trabalhavam e eu pude me dedicar aos estudos", conta. Ele diz que, entre seus amigos e conhecidos da Cidade de Deus, quatro (de um grupo de cem) conseguiram mudar de condição social, graças a bons empregos e profissões bem remuneradas.

Trata-se de uma proporção cruel que permeia todo o livro de Paulo Lins. As histórias, de bandidos e traficantes, se sucedem umas às outras, sem que haja uma redenção possível. Até que, um dia, um garoto com pendores artísticos empunha uma câmara fotográfica e com ela muda seu destino.