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O futuro da televisão

 

Hora de acordar, de dormir, de jantar. Era a televisão que ditava hábitos corriqueiros e até mesmo alimentares dos brasileiros. A panela de pressão podia apitar durante a novela das oito que ninguém se levantaria do sofá. Já as crianças, elas deveriam estar prontas para dormir antes mesmo do noticiário da noite. Situações ultrapassadas pela inserção de novos meios de exibição de conteúdo audiovisual pós-internet discada. “Durante a segunda metade do século passado, o videotape facilitou a emissão de programas pré-gravados, a sucessão de bitolas aumentou o nível de definição da imagem, que também ganhou cor. O controle remoto estimulou a prática do zapping. A transmissão via satélite favoreceu a circulação de imagens ao vivo. Mas durante mais de cinco décadas as emissoras estruturaram a programação em torno de uma grade que determinava a sucessão, periodicidade e horário de cada programa em função do que se imaginava sobre a audiência de cada canal, em cada país”, analisa Esther Hamburger, professora titular de História do Audiovisual e de Projeto do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Qual será, então, o futuro da TV?

A professora e pesquisadora Esther Hamburger e Sabina Anzuategui, professora do curso de Rádio, TV e Internet na Faculdade Cásper Líbero, refletem sobre esse cenário que abarca mais perguntas do que respostas.

A revolução fora da caixa

Esther Hamburger

A televisão está sendo “revolucionada”, citando a expressão que a australiana, estudiosa da mídia, Amanda Lotz cunhou para descrever a superação da estrutura baseada em emissoras que marcou os primeiros quase 60 anos de história desse meio [de comunicação] mais popular do século 20.

As plataformas de internet que diversificaram o panorama podem ser consideradas televisão? O debate interessa não no sentido taxonômico, mas para esclarecer que ferramentas e conceitos ajudam a realizar e a entender a cultura visual, ou cultura audiovisual. Como o cinema, a televisão e a internet se relacionam nas redes audiovisuais contemporâneas? Até que ponto os repertórios e conceitos do cinema e da televisão, mesmo que arqueológicos, funcionam como referências que permitem salientar situações contemporâneas? Qual o peso de estruturas narrativas consolidadas, como as novelas latino-americanas, no formato dominante nas séries contemporâneas, melodrama e notícia? Documentário e ficção, nação, conflitos internacionais, antecipações distópicas em versão seriada?

As perguntas são muitas e suscitam mais debates do que respostas unívocas e excludentes. Os exemplos a seguir ajudam a pensar um panorama transmidiático e transnacional em rápida transformação. No início de Milagre em Milão, filme de 1951 de Vittorio de Sica, um bebê nasce em um repolho, no meio de uma plantação urbana cultivada por uma velha e bondosa senhora. Quando fica órfã, a criança é levada para um orfanato. Ao se tornar adulto, o jovem quase autista realiza-se como liderança do bem em uma espécie de favela ao redor de Milão. Rocco e Seus Irmãos, de Luchino Visconti, de 1960, pertencente ao mesmo cânon do cinema italiano, problematiza a migração do campo para a cidade.

Essas e outras personagens do neorrealismo servem de inspiração para Lazzaro Felice, filme da premiada jovem diretora italiana Alice Rohrwacher, que apresenta também um tom irônico à la Fellini. Em 2018, Lazzaro Felice recebeu o Prêmio Especial do Júri no Festival de Cannes. No mesmo ano, o filme foi lançado na Netflix, plataforma transnacional que oferece séries, novelas, documentários e filmes dos mais diversos países para os mais diversos países, sem passar pelo cinema.

A concorrente HBO, também baseada nos Estados Unidos, apela à produção cinematográfica mexicana. O diretor Alfonso Cuarón, um dos três diretores contemporâneos daquele país consagrados em Hollywood, aceitou o financiamento da plataforma digital, que produziu seu filme Roma, com apelo autobiográfico, em preto e branco, com produção monumental. A reconstituição de época conta com manifestações públicas de rua, multidão de figurantes e material de arquivo para contar uma história de família que se enlaça com a história do país. O diretor fotógrafo esbanja travellings e panorâmicas em um filme feito para ser visto na TV, com raras exibições nos cinemas – o suficiente para garantir a multiplicidade de indicações ao Oscar.

Em 2016 o diretor norte-americano Jim Jarmush aceitou financiamento da Amazon Prime Video [plataforma de conteúdo audiovisual on demand] para seu filme Paterson, que rompeu um jejum de 12 anos de produções. Os exemplos são inúmeros e vêm causando nos bem estabelecidos festivais de cinema. Mas as séries dominam as distribuidoras de internet, as emissoras de televisão aberta e a cabo.

Stop ou play

Durante a segunda metade do século passado, o videotape facilitou a emissão de programas pré-gravados, a sucessão de bitolas aumentou o nível de definição da imagem, que também ganhou cor. O controle remoto estimulou a prática do zapping. A transmissão via satélite favoreceu a circulação de imagens ao vivo. Mas durante mais de cinco décadas as emissoras estruturaram a programação em torno de uma grade que determinava a sucessão, periodicidade e horário de cada programa em função do que se imaginava sobre a audiência de cada canal, em cada país.

Tania Modleski, professora de literatura inglesa na Universidade do Sul da Califórnia, imaginou a sintonia entre o ritmo repetitivo das soap operas (versão norte-americana da novela diária e que dura por anos) e a rotina fragmentada do serviço doméstico. É outra a relação entre a temporalidade de exibição, a temporalidade da narrativa e a temporalidade da rotina de quem assiste a séries exibidas na internet.

O binge watching [assistir de maneira compulsiva ou, como acontece, “fazer maratonas”] explode a grade de programação. A prática de assistir a todos ou muitos episódios de uma só vez transforma a série em um filme longuíssimo a ser visto em casa, no monitor do computador ou na TV. Susan Sontag, nos anos 1980, se refere à série Berlin Alexanderplatz, adaptada do romance de Alfred Döblin por Rainer Werner Fassbinder em 14 episódios para a TV alemã, como um “filme longo”.

Assistir à série predileta no celular, no computador, nas horas vagas no metrô (...) parece mais atraente do que nos horários programados pelas emissoras

Nos anos 1990, a TV paga por assinatura e transmissão a cabo diversificou a oferta de conteúdos. Surgiram os primeiros canais especializados em segmentos de programação e segmentos do público: notícias, esportes, programação infantil etc. A estreia de Twin Peaks, em 1990, na rede de TV aberta ABC, nos Estados Unidos, prenunciou o aquecimento da televisão como veículo de narrativas seriadas com capítulos contínuos e altos valores de produção.

O modelo pegou, deixando para trás os seriados semanais compostos de episódios com começo, meio e fim. No Brasil e na América Latina as séries contínuas, e não os seriados episódicos, há muito preponderam. Twin Peaks introduziu também um, até então, raro, elemento político reflexivo no horário nobre da televisão aberta no país em que o cinema se enraizou no cotidiano da população por meio de redes de salas de exibição nos mais diversos bairros e cidades.

A série escrita por David Lynch em parceria com Marc Frost chamou a atenção para a falência do American Way of Life. Em Twin Peaks nada é o que aparenta. Cada personagem esconde alguma conexão com um submundo corrompido, sexo, violência, drogas, suspense e horror. O tom é discretamente irônico. O formato de narrativa seriada contínua de Twin Peaks foi adotado por séries posteriores. Por exemplo, Breaking Bad, originalmente no canal a cabo AMC, classificada como neofaroeste, conta a história da conversão de um cidadão de bem em rei da droga. No Brasil a série pode ser vista na TV Record, no canal a cabo AXN, além de na Netflix.

No atual momento milhares de séries são produzidas nos mais diversos canais e plataformas dos mais diversos países. O excesso de oferta faz com que muitas vezes algumas séries passem despercebidas, o que não necessariamente significa que sejam desprovidas de interesse. O caso recente da norte-americana You não renovada pelo canal a cabo que a lançou, mas que estourou na Netflix, sugere que o público dela não assiste à TV convencional.

Pouco se sabe sobre o público ou os hábitos nas plataformas de vídeo na internet. A Netflix raramente divulga números. Quando o faz, são números genéricos, sem especificação de região geográfica ou de marcadores sociais. Até que ponto as limitações de acesso à internet restringem as novas formas de distribuição? Há uma produtiva valorização de produções locais. Assistir à série predileta no celular, no computador, nas horas vagas no metrô, nas madrugadas silenciosas ou numa brecha no serviço parece mais atraente do que nos horários programados pelas emissoras.

Esther Hamburger é professora titular de História do Audiovisual e de Projeto do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), doutora em Antropologia pela Universidade de Chicago, com a tese Politics and Intimacy in Brazilian Telenovelas, publicada em português como O Brasil Antenado, a Sociedade da Novela.

 

Um futuro sem TV?

Sabina Anzuategui

Quando nasci, nossa casa já tinha um pequeno televisor em preto e branco. Eram meados dos anos 1970, e quase metade dos lares do país tinha aparelhos de TV. Meus pais cresceram ouvindo músicas e programas de rádio. Eu não gostava de rádio na infância. Quando eles ligavam o aparelho do carro, eu perguntava: “Não tem música pra criança?”. A rádio FM nessa época tocava Djavan, 14 Bis, A Cor do Som. Para mim, não tinha graça.

Já a TV era uma caixa de surpresas. Num canto da minha memória, como cenas quase inacreditáveis de tão fantásticas, estão o programa Globinho e a apresentadora Paula Saldanha. Eu me encantava com a família Barbapapa, os gatinhos Mio e Mao e a animação A Linha, de Osvaldo Cavandoli. Como era possível existirem imagens tão incríveis? A TV era uma tentação e uma promessa de alegria imediata, pedindo apenas que ligássemos o botão. Para assisti-la, esquecíamos até de brincar. Minha mãe regulava os horários e estávamos sempre perguntando: “Posso ligar a TV?”.

Aos domingos, quando eu acordava de manhã, a emissora ainda não estava no ar. Na tela aparecia apenas uma barra colorida. Quando se aproximava o início da programação, entrava um videoclipe com a canção Além do Horizonte, do cantor Roberto Carlos. No clipe, um casal passeava por uma praia em roupas de banho. O rapaz mergulhava no mar com snorkel, e quando saía da água um close mostrava seu rosto com máscara de mergulho. A máscara estava cheia de água, e dentro nadava um peixinho.

Na TV conheci o personagem Charlie Brown e aprendi a rir dos fracassos com doçura. Com os heróis da Liga da Justiça entendi que é difícil vencer os vilões, porque um herói não pode usar golpes baixos nem ferir inocentes. Descobri a irreverência com os Trapalhões e depois com a TV Pirata. Na adolescência, ouvi pela primeira vez o nome do cineasta Glauber Rocha, num episódio do seriado Armação Ilimitada.

Quando entrei na faculdade de Cinema, em 1993, um professor disse logo nas primeiras aulas: o cinema já não é tão importante. “Minha geração foi mais ao cinema que leu”, disse. “Mas a geração de vocês viu mais TV do que foi ao cinema”.

A televisão recebeu alguns apelidos: “caixinha mágica”, “babá eletrônica”, “máquina de fazer idiotas”. Os apelidos remetem a seu poder de seduzir, hipnotizar e alienar. Acusada de estimular o consumismo e influenciar eleições, ela teve também argumentos em sua defesa. Ampliou e divulgou a dramaturgia brasileira, estimulou a música popular nacional. Também honrou (timidamente) seu potencial educativo. Num ponto de ônibus, um dia, ouvi duas pessoas conversando sobre nutrição e diabetes. Uma delas afirmou com confiança: “Quem assiste TV sabe das coisas”.

Escrevo esses parágrafos no passado porque hoje, aos quarenta e poucos anos, são raros os dias em que ligo o aparelho na TV aberta. A programação dos canais em VHF foi perdendo espaço desde os anos 1980: videocassete, videogames, TV a cabo, internet e celulares. Os adultos que cresceram com a TV mudaram rapidamente seus hábitos, e entre os jovens essa transformação é ainda mais radical.

As novas gerações vivem outra experiência. Que ambiente audiovisual é a “casa” das crianças e jovens hoje? Qual o conteúdo familiar que “está sempre lá”, sem muito esforço, sem necessidade de pensar nem escolher demais? Para mim esse ambiente foi a TV aberta. Para eles não é mais.

Novos tempos

“Assistir TV”, para muitas pessoas hoje, requer a mesma decisão que ler um livro. É preciso parar e escolher – reagir ao impulso automático de simplesmente olhar mais um story ou vídeo por streaming. Vídeos amadores com poucos segundos transmitem confissões, opiniões, erotismo e humor. Desconhecidos se tornam populares em poucas horas e são esquecidos com a mesma rapidez. Há coletâneas das melhores e mais saudosas bobagens da internet. Ouvi uma jovem dizer que não tem paciência para filmes por causa de suas “células cerebrais acostumadas com stories”.

Estamos num período em que tecnologias novas se misturam às antigas, e os hábitos se dispersam. Quando éramos adolescentes, eu e meus irmãos brigávamos sobre o que assistir na única TV da casa. Hoje meu pai assiste sozinho aos esportes pela TV a cabo na sala, enquanto minha mãe, no quarto, acompanha a TV aberta fazendo exercícios de yoga. As casas têm várias telas. Alguns espectadores desistem da TV aberta, outros permanecem nela por comodidade.

Se eu fosse criança hoje, talvez achasse a TV tão chata como antes me parecia o rádio

Especialistas tentam adivinhar o futuro da TV, nesse cenário. As plataformas de streaming concorrem com a TV aberta e os canais a cabo pela atenção dos espectadores. As notícias prometem aparelhos televisivos mais complexos e interativos, que ofereceriam uma experiência personalizada a cada espectador, com publicidade direcionada e mais eficiente. A renda dos produtores de conteúdo vem de fontes variadas – algumas empresas vendem espaço publicitário, outras dependem de assinatura. Mas a base de tudo ainda é o indecifrável “público”: pessoas seduzidas por imagens e dispostas a gastar seu dinheiro em troca de alguma diversão.

Imagino o que aconteceria se as redes de TV brasileiras não pudessem se adaptar aos novos tempos e fossem à falência. O universo de imagens que me formou desde a infância poderia deixar de existir. Seria uma grande perda? É difícil adivinhar.

De certa maneira, a televisão brasileira já não tem a mágica dos anos 1970 e 1980. A TV aberta quase não tem programas infantis. Se eu fosse criança hoje, talvez achasse a TV tão chata como antes me parecia o rádio. Os humoristas mais originais surgem na internet, e não na TV. Será que pode desaparecer uma rede televisiva que foi um império, que uniu e uniformizou o país em torno de telenovelas e telejornais? Tudo pode ou não acontecer. O futurismo não é meu esporte favorito. E, pensando bem, para nós – espectadores comuns –, algumas mudanças podem não fazer muita diferença.

Para descansar um pouco no sofá, depois de jantar, o espectador não pede muito. Uma história interessante, um bom jogo, bons atores e apresentadores, boa música. Uma dose de diversão com pitadas de informação – pois também nos entretemos com entrevistas, jornalistas e documentários. O segredo do sucesso ninguém sabe. Como diz a sabedoria popular, é aquele simples que não é tão simples.

Não faz muita diferença, para o espectador, se o conteúdo virá da TV aberta, do streaming ou do cabo. Nós vamos atrás das novidades e nos acostumamos com o que está mais disponível. Aprendemos a gostar (ou odiar) do que encontramos à nossa frente, sem esquentar a cabeça com as batalhas criativas e comerciais que se travam atrás da tela. Os profissionais da TV se preocupam com o futuro. Nós, espectadores, queremos só aproveitá-lo.

Sabina Anzuategui é escritora e roteirista, publicou o estudo O Grito de Jorge
Andrade: a Experiência de um Autor na Telenovela Brasileira dos Anos 1970
e é professora do curso de Rádio, TV e Internet na Faculdade Cásper
Líbero e da pós-graduação do Senac Lapa Scipião.

 

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