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Um corpo no mundo
Festival de Triuatlo, São Carlos | Foto: Julio Ricco.
Ao longo da história da humanidade, foram concebidas várias teorias a respeito da relação entre corpo e mente. No entanto, em meados do século 20, estudiosos de diversas áreas, tais como filosofia e psicologia, passaram a refutar tal separação. Afinal de contas, mente e corpo dependem um do outro para a manutenção de uma vida saudável e em equilíbrio. Para a professora e pesquisadora inglesa Margaret Whitehead, que detém a cadeira WH Duncan em Saúde Pública na Universidade de Liverpool (criada em homenagem ao médico William Henry Duncan) e lidera o Centro Colaborador da Organização Mundial de Saúde (OMS) para Pesquisa Política sobre os Determinantes Sociais da Saúde, há um “mal-estar generalizado com nosso estilo de vida” dada essa separação. “O que pode exacerbar os problemas de obesidade e agravar problemas de saúde físicos e mentais”, escreve no recém-lançado Letramento Corporal – Atividades Físicas e Esportivas para Toda a Vida (Penso), organizado e escrito pela pesquisadora e outros especialistas da área. Na contramão dessa separação entre corpo e mente, o conceito de letramento corporal, desenvolvido por Whitehead, explica por que é fundamental que ambos sejam estimulados e exercitados. Por definição, “o letramento corporal pode ser descrito como a motivação, a confiança, a competência motora, o conhecimento e a compreensão para manter a atividade física ao longo de toda a vida”, descreve. Nesta entrevista, realizada durante a 5ª edição da Semana Internacional Esporte pela Mudança Social, no Sesc 24 de Maio, Whitehead fala sobre esse conceito, como colocá-lo em prática e seus benefícios a longo prazo.
Com o avanço de aparatos tecnológicos, focamos em aptidões intelectuais e nos distanciamos da importância do corpo. Que análise fazer deste cenário?
O fato é que não somos feitos de uma mente e de um corpo. Nem a mente é uma parte superior, nem o único valor do corpo é manter a mente funcionando. Está claro que não existe nenhuma separação entre nossa natureza corporal e nossa natureza afetiva. Somos todos uma coisa. Na verdade, hoje em dia, é a natureza da nossa condição humana, nossa natureza incorporada que é muito importante para estimular, enriquecer e criar nossas percepções cognitivas e nossas habilidades. Em certo sentido, a mente conta com o potencial do corpo para desenvolver tais conceitos. Hoje em dia, há a teoria da existência essencialmente incorporada, e há um ativismo e uma gama variada de teorias, uma visão sólida, tanto na filosofia, quanto na psicologia cognitiva e na neuropsicologia, de que somos um todo.
Que formação e estudos a levaram a refletir sobre o que chama de natureza incorporada?
Minha formação é como professora de educação física. Meu primeiro emprego foi em uma escola onde dei aulas para crianças dos cinco aos 16 anos. Fazia muita dança nessas aulas. Depois disso, meu trabalho seguinte foi numa faculdade em Cambridge de formação de professores. Enquanto estive lá, tive a sorte de estar dentro de um contexto de pesquisa extremamente rico, em que todos questionavam, perguntavam e compartilhavam. Todos eram respeitados por suas próprias capacidades. Fui encorajada, pelo questionamento, a olhar para a filosofia. Então, enquanto eu estava no meu primeiro emprego, comecei a fazer filosofia. Depois, mudei para uma faculdade de educação física. Lá estava eu, interessada em filosofia, trabalhando, ensinando pessoas como ensinar educação física e indo a escolas. Durante todo esse período na escola e na faculdade, parecia que eu estava lutando no meu canto, tentando justificar a atividade física como algo importante. Porque ela tende a ser um assunto não acadêmico, algo não importante. Mas acredito que capitalizar nosso potencial corporal seja extremamente importante.
Vemos o mundo sob a perspectiva de nossa corporeidade. O que influencia significativamente a forma como o interpretamos e entendemos
Foi nesse momento, entre a escola e a faculdade, que percebeu a necessidade de uma mudança da visão sobre a atividade física?
Fiquei muito preocupada quando visitava as escolas e também via o que estava acontecendo no mundo. Na escola havia muito mais interesse nos [alunos] com melhor desenvoltura. A sensação era de que um dos principais trabalhos do professor é a identificação de talentos, o que de fato é uma de suas funções. Fiquei muito perturbada com a pouca quantidade de pessoas que praticavam atividades físicas ao longo da vida: muito poucas. Consequentemente houve um crescimento na taxa de obesidade, um crescimento de, possivelmente, doenças mentais e estresse, o que interpreto como uma falta de equilíbrio. Me parecia que havia um enorme valor na atividade física de diversas maneiras, mas tinha que encontrar uma base sólida sobre a qual argumentar que capitalizar nosso aspecto físico é importante.
O que você quer dizer com uma “base sólida sobre a qual argumentar”?
Eu me deparei com alguns aspectos, em particular, da filosofia. Os existencialistas dizem que nós somos o que somos devido às interações com outras pessoas. Então, a existência precede a essência. Nós existimos e nosso ser e natureza são criados pelas nossas interações com as pessoas, pensamentos, desafios etc. Então, se você seguir nesse sentido, qualquer aspecto da natureza humana que nos ofereça interações, que nos alimente, deve ser importante. Deve nos possibilitar uma rica percepção de nós mesmos. Nossa natureza incorporada é significativamente importante no desenvolvimento da interação. Já a fenomenologia diz que nossa percepção é a percepção de um ser incorporado. Então, vemos o mundo sob a perspectiva de nossa corporeidade. O que influencia significativamente a forma como o interpretamos e entendemos. Esse foi um sinal. Lá estava eu preocupada com a falta de respeito pela educação física na escola e na vida, de maneira geral.
Foto: Leila Fugii.
Não existe um nível no qual todos devem chegar aos 7, 11, 12, 25, ou 70 anos.
Isso é irrelevante
Foi a partir desses estudos que desenvolveu o conceito de letramento corporal?
Tive de pensar: essa é minha paixão [estudar sobre e ensinar atividade física], é aquilo em que acredito. Então, como vou alcançar as pessoas? O que vou fazer com essa justificativa para minha paixão? Li bastante, e a ideia de letramento corporal nos últimos 80 anos foi mencionada diversas vezes, mas nunca assumida, nunca vista com profundidade ou desenvolvida. Nunca houve uma justificativa sólida para tal. Então, decidi que letramento corporal era um bom termo para ser usado porque fala dessa natureza incorporada. E minha definição de letramento é interação. Interação em que o corpo tem um papel essencial na experiência. Quando falo de letramento, não pense em ler e escrever. Nesse aspecto, tive ajuda porque, hoje em dia, fala-se em letramento histórico, letramento musical, letramento cívico... Até mesmo letramento emocional. Acho que muitas pessoas estão se dando conta de que essa interação é importante. Essa foi minha motivação, vinda da minha experiência, a partir do meu estudo, da minha confiança e comprometimento de que tinha algo de valor a dizer. Desenvolvi o conceito de que o propósito é valorizar e assumir a responsabilidade da escolha de atividades físicas para toda a vida, bem como mantê-las.
Nem a mente é uma parte superior, nem o único valor do
corpo é manter a mente funcionando
De que forma, então, deveria se dar esse aprendizado nas escolas ou universidades?
Começa no jeito como praticantes [professores] se relacionam com os participantes [alunos]. Os primeiros precisam tomar decisões sobre o que vão ensinar ou o que vão introduzir e que atividades irão propor. Depois disso, eles têm que levar em consideração como estão engajando os participantes e qual a natureza dos desafios do aprendizado. Precisam ser muito honestos e perceptivos sobre toda a ambientação da atividade e se irão adotar algum sistema para avaliar as pessoas. Se um dos elementos-chave do letramento corporal é a motivação, vale promover uma conversa motivacional: “Não existe comparação e você não irá fracassar porque ninguém é melhor ou pior que ninguém. Você está no seu próprio percurso e pode obter progressos o tempo todo”. Esse é um cenário sem derrotas.
Foto: Mari Carvalho.
Você está no seu próprio percurso e pode obter progresso o tempo todo
Dessa forma, não há vitórias ou perdas, mas existe um objetivo a ser alcançado?
Não existe um nível no qual todos devem chegar aos 7, 11, 12, 25 ou 70 anos. Isso é irrelevante. Somos todos diferentes. Passamos por diferentes experiências e temos capacidades diferentes. Dessa forma, é possível desenvolver uma autoestima e uma percepção de autoconfiança. E, se você disser que saiu enriquecido depois de uma vivência dessas, você volta buscando mais. Esse é o tipo de atmosfera do “eu posso”. Temos de ser claros: se você quiser trabalhar essa aspiração do letramento corporal, seu foco está num resultado a longo prazo. É preciso olhar para um caminho integral sobre o que você ensina e como você ensina. Perceber a química da relação que você cria e como você trabalha isso. Torne esse trabalho o mais significativo possível para que eles [os participantes] valorizem e queiram voltar para mais.
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