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A Panc que não era Panc

 

Terroir: Palavra francesa, sem tradução para outros idiomas.
Conjunto de fatores como topografia, geologia, clima, cultura, história e tradição.

 

Nasci em São Paulo, por um acaso do destino e por força de uma lua cheia que teimou em estourar a bolsa antes da viagem para Minas Gerais.

Não contente, assim como um jogador de futebol, fui naturalizada mineira por meus pais; criada na pequena cidade de Andrelândia.

Ali cresci brincando com meus irmãos no quintal da casa dos meus avós, que abrigava uma horta e um pomar. A hora mais esperada do dia era o fim da tarde, quando podíamos correr entre os canteiros enquanto meu avô regava as plantas e nós também. Ficou gravado em minha memória o cheiro da terra molhada e a gota de água que escorria sem grudar nas folhas de couve, muito verde e rugosa.

Ladeando todo o muro do quintal, tinha uma trepadeira frondosa e de folhas triangulares. Era domingo, dia de cozido de frango caipira da minha avó. Eu que gostava de ficar na cozinha espiando as panelas, fui solicitada a colher algumas daquelas folhas. “Mas vó, a senhora vai colocar mato no frango?”– indaguei. “Sim, menina! Não é mato, é ora-pro-nóbis.”

O frango era uma delícia! A guarnição, além do angú, era um refogado de cará moela. Eu que fazia cara feia para aquela iguaria pálida e meio azulada, comia tudo porque minha avó dizia que deixava a pele bonita. E assim cresci, querendo saber o que tinha no alimento que deixava a pele bonita.

Eu e minha família viemos morar em São Paulo, estudei Nutrição e comecei a estagiar no Sesc. Dava aulas de cores dos alimentos na horta de Itaquera, ficava entusiasmada em ensinar às pessoas a conexão entre o pigmento dos vegetais e seus nutrientes. Descobri por que aquela couve mineira e rugosa era tão mais verde e por que a beterraba de lá tinha gosto de terra. O ferro explica. Estudei Gastronomia e descobri que aquela ora-pro-nóbis era prato típico de Tiradentes.

Fiz o melhor frango caipira da turma de Cozinha Brasileira, minha referência era muito forte, descobri o verdadeiro sentido da palavra terroir.

O tempo passou, fui trabalhar em um paraíso verde. Em Interlagos a topografia me lembrava o mar de morros de Minas Gerais e também tinha um quintal muito divertido para brincar – uma horta agroecológica. Tive o privilégio de fazer as pessoas vivenciarem o mesmo que eu sentia na minha infância, conduzindo o Café da Roça. O cheiro do fogão a lenha, a caneca de ágata, o chá com erva colhida no dia. Muitas eram as aulas de plantas alimentícias não convencionais. Um dia apresentaram o cará do ar, eu fiquei indignada que isso era uma Panc – Planta Alimentícia Não Convencional, era o cará moela da minha avó.

Dias de hoje, venho trabalhar no maior corredor cultural e cosmopolita da América Latina. Ao visitar pela primeira vez o Sesc Avenida Paulista observo o mirante, mas me encanto mesmo com aquele bocado de terra embaixo da escada do Terraço – sim, é uma horta! É singela e improvável, mas ainda assim um pedacinho daquele quintal. Começo a desenhar o cardápio, estreamos com um sanduíche com pasta de queijos mineiros e Panc: ora-pro-nóbis. Panc? Sim, aqui ela é; tanto que com três meses de funcionamento acabamos com toda a safra da grande São Paulo. Plantaremos ora-pro-nóbis na horta do Terraço e nos tornaremos uma agricultura de subsistência. Para mim, é quase uma agricultura familiar ou ainda um novo termo: agricultura de terroir.

 

Tessa Cristine Alves é nutricionista e
gastrônoma e coordenadora do setor de
Alimentação do Sesc Avenida Paulista

 

 

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