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Como me tornei pai

 

A única memória paterna que tenho é a de um homem lançando-me da sombra de uma mangueira ao lombo grosso de um jumento. Esse homem era Seu Grande, meu padrinho, homem negro, corpo atarracado, apegado ao trabalho que, com Dona Lió, criou filhos, netos e um bocado de afilhados. As pisadas maciças de meu padrinho assentavam as histórias naquele chão, onde vivi minha primeira infância. Nosso encontro após 20 anos fez com que eu me sentisse atento a minha existência como homem negro, vivo, presente e pertencente, fértil como a lama da eira do Rio Itapecuru. Não havia momento mais oportuno para a notícia que rompia os dois mil quilômetros desde São Paulo. A voz de Gabriela chiava imprecisa no único orelhão do povoado: – Antonio, estou grávida! Eu ouvia a notícia e tentava costurar os sentidos daqueles acontecimentos, em um instante eu menino, defronte daquela imagem suntuosa da paternidade e, também, seria pai? Assim, por conta do mundo? Talvez por não ter tido um pai por perto eu tenha cultivado o desejo de paternidade, mas tive medo, um medo segredado e constrangedor. Contive o choro, represei esses temores com arroubos de brio e obstinação – e um pouco de teimosia. Ademais, como homem negro, estou habituado a lidar com histórias recortadas, reinventar-me em outros territórios, tecer sentidos nessas memórias idiossincráticas.

Tornei-me pai de Anita. Com seis anos, ela é uma menina gentil e carinhosa, gosta muito de livros, desenhar, recortar papéis, desmontar objetos e construir brinquedos. Adora os animais, sobretudo filhotes, principalmente gatos. Seu principal programa é o cineminha em casa, com pipoca e tudo. Nossos encontros são quinzenais. Chora de saudades da mãe quando está comigo, reclama a saudade do pai quando está com a mãe. Do meu lado, logo que ela se vai a casa volta a ser uma espera até o dia de seu retorno. Quando ela ainda morava em Bauru, eu chegava ao portão da casa de sua mãe e assoviava um código, ela gritava lá de dentro: – Papai! Um poema sonoro, crê. Eu gostava de chegar pela madrugada, surpreendê-la pela manhã. Uma festa só. Foram três anos nessa rotina, em todas as minhas folgas de trabalho. No geral, eu estava muito cansado, até que recebi a alegre notícia de sua mudança para Bertioga. Com a novidade eu conseguiria trazer Anita para São Paulo com mais frequência, construiríamos um lar que possibilitaria a convivência com minha família, sobretudo com minha mãe e com minha atual companheira, Tamiris. Até então Anita não havia tomado consciência de que eu e sua mãe não éramos um casal, houve um choque inicial, breve e passageiro, logo tudo se reinventou. Enfim, ser pai tem sido ressignificar experiência, narrar outras histórias e tecer novos encontros.

Como pai e como educador do Espaço de Brincar do Sesc 24 de Maio, meu desejo é fazer parte dessas memórias, acolher esses novos sentidos e novas configurações. Compor ativamente a mudança
que tenho visto na beira dos olhos dos pais que fazem questão de cuidar, interagir e brincar com
suas crianças.

 

Antonio Carvalho Costa é instrutor de atividades infantojuvenis do Sesc 24 de Maio, mestre em História
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

 

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