Postado em
Maciste
“Quem perde a mãe perde-a para sempre e nunca para de a perder. Quem perde a mãe perde para sempre e nunca para de perder.”
(O Filho de Mil Homens – Valter Hugo Mãe)
O
menino percebeu muito cedo que as coisas não seriam tão fáceis assim.
O menino não conheceu a mãe. Levou sete anos para descobrir que a mãe morrera no dia do seu nascimento. Primeiro porque o aniversário era comemorado cada ano em um dia diferente. Depois porque quatro vezes por ano visitava no cemitério o túmulo de alguém chamada Gladys Minna:
1 – finados
2 – dia das mães
3 – dia do aniversário
4 – dia da morte
1º de setembro era o dia, o dia em que ele nasceu.
O que era “Gladys Minna”?
Na oração que os mais velhos ensinaram para ele e que era recitada todas as noites, de joelhos na beirada da cama, tinha:
“... papai do céu, abençoai, papai, mamãe, mamãe Gladys e todos os meus irmãozinhos de casa.”
No começo até era motivo de contar vantagens, todos tinham uma mãe, mas o menino tinha duas. Mas um dia duas senhoras que cruzaram com ele na rua perguntaram se era filho da Doracy ou da Gladys. Doracy era a mulher que diziam ser sua mãe, mas Gladys era a mãe da oração. Que confuso o mundo do menino. Ele voltou correndo pra casa perguntando ‘praquela’ que julgava ser a mãe.
– A senhora não é minha mãe?
Ela gaguejou e por fim confessou: sua mãe chama Gladys.
– Aquela do cemitério?
A outra só concordou com a cabeça.
1º de setembro era o dia, o dia em que a mãe morreu.
O menino tinha que ser forte.
Alguns anos depois, o menino tinha 11 anos e assistia Maciste na televisão. Maciste foi um herói criado pelo cinema italiano. Foi o primeiro herói do menino. Domingo. Aquele semideus, uma fortaleza almejada pelo menino, vencia no “cabo de guerra”, doze cavalos, seis em cada braço. Era tudo que o menino precisava para continuar sendo o que era e o que queria ser. Ao final do filme, ele tirou a camisa e com seu corpo gordinho imitou o herói em suas poses e forças. Mas ao invés de invejado e admirado pelos familiares, todos se irritavam com ele. Por quê? Os irmãos o pegaram e lhe deram uns “petelecos”. Xingaram. Um gordinho super-herói. Bolinho. Barril de banha. Baleia. Maria da Breca (referência à inspetora de alunos gorda da escola). Naquela tarde, aquele Maciste de 11 anos decidira que não mais aceitaria aquele tipo de covardia e pegou a primeira coisa que suas mãos alcançaram e jogou contra os seus agressores. O Maciste do filme podia. O gordinho não. Ele arrebentou uma cadeira Luiz XV, estilo colonial. Valor no mercado atual, R$ 750,00. Suspensão. O tempo parou uma eternidade.
O pai veio em sua direção. O pai “amava” aquela cadeira.
Um búfalo enraivecido. O menino tentou correr. Estava de meias num chão de mármore e só patinava. Com as duas mãos o pai pegou uma pequena quantidade de cabelos logo acima das orelhas.
Levantou o menino e o lançou no chão.
Levantou o menino e o lançou no chão.
Levantou o menino e o lançou no chão.
No encontro com o chão pela terceira vez, o pai chutou suas costas, chutou sua bunda, chutou suas coxas e chutou suas costas de novo.
Onde estava o ar?
Depois o pai fechou a mão e acertou seu peito. Seu braço. A família assistia ao show, passiva. Tapas desajeitados tentavam atingir seu rosto. De cada dois pegava um. Depois, o pai voltou ao pequeno chumaço de cabelo na lateral da orelha. Aquilo chamava “costeleta”? O que importava? Levantou o menino pelas costeletas para descobrir seu rosto e, aí sim, acertar todos os tapas.
Para, pai. Para, pai. O menino tentava falar, mas a voz não saía. Pensou que alguém poderia pelo menos tirar suas meias para ele poder correr.
Os tapas não paravam.
Então, o menino decidiu fingir que desmaiava, levou mais alguns golpes e como não tinha mais reação a surra parou.
Hoje o menino está velho e não briga. Velho, ele tem medo de apanhar. Cresceu com medo. Cresceu com a certeza que qualquer um pode destruí-lo. Ele agora aniquila pessoas. Mata. Mata amigos que discordaram. Mata colegas de trabalho. Os parentes ele matou faz tempo. Bastam duas frases discordantes e ele rompe. Rompeu todos os casamentos. Rompe porque toda tentativa de individuação foi aniquilada.
Maciste não tem tradução literal. Para o menino--velho virou sinônimo de maciço, forte. Único. Peça única. Porque aquela surra o quebrou. Ele sempre se sentiu quebrado. Aos pedaços. Naquele dia, ele estava tentando ser maciço. Mas seu Maciste foi humilhado. Aniquilado.
Na mente da criança ele via a mãe e perguntava:
– Mamãe, a senhora morreu por minha causa?
Na sua mente a mãe respondia:
–Não, meu amor, eu não morri por sua causa, eu vivi por você.
Naquele domingo à tarde, o pai não bateu no menino que quebrou uma cadeira. O pai espancou o menino que matou a mãe.
Nelson Baskerville é ator, diretor e dramaturgo,
já recebeu diversas indicações e prêmios, entre eles o Shell de Melhor Direção 2012 pelo espetáculo Luís Antonio – Gabriela. Em 2013 foi indicado ao prêmio Shell na categoria
de melhor diretor pelo espetáculo As Estrelas Cadentes
do Meu Céu São Feitas de Bombas do Inimigo.