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Fake news: nem verdadeiras nem falsas?

Questionado sobre como filtrar o intenso fluxo de notícias diárias, o prêmio Nobel de Literatura José Saramago respondeu ao cineasta João Jardim no documentário Janela da Alma (Brasil, 2001): “Para conhecer as coisas, há que dar-lhes a volta”. Em poucas palavras, o escritor português apontou a necessidade de mirar um fato sob a perspectiva de uma lente macro. Contudo, na época da filmagem não estava em voga o conceito de fake news. Tampouco era um tema importante para leitores, espectadores, ouvintes e internautas. Segundo a professora Lucia Santaella, coordenadora do programa de pós-graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), “a grande diferença agora é que passamos a sofrer os impactos de uma mudança de escala no acesso à informação que está se intensificando crescentemente em meio à avalanche ininterrupta de notícias que recebemos nesta era digital”. Ou seja, “nos novos contextos digitais de informação, a veracidade é socialmente construída a posteriori por meio de um processo democrático de participação colaborativa entre os próprios usuários da internet”, aponta o professor de Teoria da Opinião Pública na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) Massimo Di Felice, que participa do seminário Jornalismo: As Novas Configurações do Quarto Poder, neste mês, no Sesc Vila Mariana. Sobre este cenário, Santaella e Di Felice traçam análises e reflexões.

 


 

Desde o início de 2017, menções e discussões acerca das fake news (notícias falsas) tornaram-se moedas correntes de boca em boca. Notícias falsas costumam ser definidas como notícias, estórias, boatos ou fofocas que são deliberadamente criadas para ludibriar ou fornecer informações enganadoras. Elas visam influenciar as crenças das pessoas, manipulá-las politicamente ou causar confusões em prol de interesses escusos. 

Muitos comentadores têm chamado atenção para o fato de que a falsidade das notícias não é um fenômeno inteiramente novo, pois já existia desde o tempo dos gregos. A grande diferença agora é que passamos a sofrer os impactos de uma mudança de escala no acesso à informação que está se intensificando crescentemente em meio à avalanche ininterrupta de notícias que recebemos nesta era digital. 

Tradicionalmente, na era hegemônica da comunicação de massas, as notícias eram fabricadas em fontes restritas, relativamente confiáveis, na medida em que deveriam seguir práticas baseadas em códigos estritos de deontologia, ou seja, o conjunto de deveres, princípios e normas adotadas por um determinado grupo profissional. Nesse caso, a profissão de jornalista. A partir da emergência da internet, da cultura digital e das redes sociais, surgiram novos modos de publicar, compartilhar e consumir informação e notícias pouco submetidas a regulações ou padrões editoriais.

A internet e as redes sociais instauraram uma lógica inédita imensamente facilitadora para a publicação e o compartilhamento. Tal lógica atingiu seu pico a partir das mídias móveis, que permitem a publicação e interação de qualquer ponto do espaço, no momento que se desejar. Qualquer pessoa pode abrir um site, um blog ou um perfil em quaisquer plataformas que quiser. As mídias não são mais consumidas à maneira que foi consolidada pelas mídias massivas. O verbo, a imagem e o som, quase sempre juntos, são agora criados, compartilhados, aceitos, comentados ou atacados e defendidos das mais variadas maneiras, nas mais diversas plataformas, por milhões de pessoas.

 

Falsas e não tão falsas

As notícias procedem de variadas e múltiplas fontes e, muitas vezes, por falta de compreensão dos modos pelos quais as redes funcionam, por simples pressa, ou por confusão diante do acúmulo de informações, torna-se mais difícil saber se as estórias ou as notícias são confiáveis ou não. Uma vez que compartilhar é um dos apelos do funcionamento das redes sociais, geram-se aí as condições para a disseminação de falsas notícias e de boatos. Por isso, costuma-se dizer que as mídias sociais favorecem a fofoca, a novidade pela novidade, a velocidade da ação impensada e do compartilhamento leviano.

Contudo, o campo das notícias falsas não é tão redondo quanto se costuma postular. Há notícias falsas e notícias não tão falsas; portanto, há que se diferenciar as árvores dessa floresta. Existem, por exemplo, os chamados caça-cliques ou também iscas de cliques, histórias com chamadas e imagens sensacionalistas fabricadas especificamente para capturar a atenção do usuário na direção de sites propagandísticos com finalidades consumistas. O problema desse tipo de notícias é que, muitas vezes, elas não são precisas e até mesmo podem conter inverdades.

Outro tipo de notícia do elenco falsificador são as propagandas intencionalmente criadas para enganar ao promover pontos de vista tendenciosos, quase sempre para alimentar causas e programas políticos. Menos prejudiciais são as notícias paródicas produzidas para provocar o riso do entretenimento fácil. Rir é sempre bom, certamente, basta ver o caso dos memes no Brasil, uma criação popular crivada de imaginação visual. O problema se dá quando escorregam para o preconceito ou para a mentira. Nesse caso, o riso sadio se converte em riso cúmplice.

 

Armadilha da falsificação

Ainda há outro caso: o das notícias híbridas. Quer dizer, matérias muitas vezes corretas, mas atrapalhadas pela falsidade sensacionalista das chamadas. É bastante conhecida a força que os títulos e as imagens têm para capturar a atenção dos usuários das redes. Não é senão ao poder das imagens que se deve o enorme sucesso do Instagram. No caso dos títulos, quanto mais sensacional ele for, mais atração produzirá. Portanto, mesmo um jornalismo confiável pode cair na armadilha da falsificação.  

Diante dessas modalidades, o que se pode inferir é que a falsidade funciona em toda a sua potência porque as pessoas tendem irrefreavelmente a se recolher dentro das bolhas de seus preconceitos, tornando-se presas fáceis de interesses dos quais, por estarem retidas dentro de suas próprias cavernas platônicas, não conseguem se dar conta, dada a incapacidade de furar o bolsão de suas crenças fixas para enxergar algumas clareiras fora delas.  

A diferença crucial, entretanto, é aquela entre notícias passageiras que, embora falsas, produzem efeitos inócuos na realidade e notícias com o poder de produzir consequências sensíveis no rumo da vida social. Assim são as notícias propagandísticas de natureza política ou aquelas que visam promover o consumo conspícuo. O grande problema, nesses casos, encontra-se na invisibilidade do modo como, dentro das redes, os algoritmos funcionam. Empregados pelas poderosas companhias de tecnologia, têm seu design destinado a traçar com precisão o perfil do usuário, de modo a desenhar nitidamente a bolha a qual pertencem.

 

Não é mais uma mera questão de se demonizar o poder das redes, pois elas não fazem outra coisa a não ser nos devolver o retrato de nossas mentes, desejos e crenças

 

Educação como caminho

Trata-se de uma questão paradoxal, que pouco tem a ver com a ideia do Big Brother no famoso livro de Aldous Huxley, o grande irmão que nos vigia. Nas redes, não se trata mais de uma força superior inelutável que nos oprime e nos cega. Os algoritmos são baseados nas próprias escolhas que fazemos, desenham as predileções que exibimos nas redes. Portanto, não é mais uma mera questão de se demonizar o poder das redes, pois elas não fazem outra coisa a não ser nos devolver o retrato de nossas mentes, desejos e crenças.

Diante disso, o que fazer? Não posso ver outro caminho a não ser o da educação. Não apenas a educação na e para as redes. Para evitar as fake news já existem muitos sites checadores de notícias que, aliás, precisam ser visitados com mais frequência. Entretanto, quando digo educação, refiro-me à formação educacional no seu sentido mais amplo, aquela que é capaz de desenvolver a sutileza da sensibilidade, a arte do cuidado com a alteridade e a ética da curiosidade em relação às complexidades psíquicas e sociais que nos constituem como humanos.

 

Lucia Santaella é professora titular e coordenadora do programa de pós-graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). É autora de mais de 40 livros nas áreas de arte, semiótica, comunicação e mídias digitais.


 

 

 


A nossa época é marcada por uma profunda transformação da estrutura da informação que tem a ver com seus formatos, sua própria natureza e suas qualidades. Para compreender tal mudança é necessário, em primeiro lugar, distinguir claramente o contexto midiático do small data, isto é, da esfera pública moderna – jornais, televisão, rádio etc. – daquela do big data e das redes digitais contemporâneas. A primeira, caracterizada pela disseminação de informações por parte de algumas poucas centrais e empresas emissoras, e a segunda, baseada na produção descentralizada de informações em ampla escala produzida por todos os usuários.

Como mencionado por diversos autores que intervieram neste debate sobre fake news, as notícias falsas sempre existiram e, portanto, não devem estar ligadas unicamente ao advento das redes digitais. Mas há uma grande diferença no contexto da comunicação contemporânea em relação ao passado.

Nas arquiteturas informativas do small data uma notícia não verdadeira, publicada várias vezes nos jornais ou anunciada nos noticiários da tevê, em um contexto sem interação, tornava-se verdadeira e difundida como tal, até a sua própria correção, que, se acontecesse, deveria ser feita pelos mesmos canais que a consideraram verdadeira. Assim, houve falsos relatos e falsas notícias que foram corrigidos, em alguns casos décadas mais tarde ou, em muitos outros, ficaram sem ser desmentidos ou corrigidos. Em suma, no contexto midiático centralizado do small data, uma vez publicada, uma notícia falsa poderia ser desmentida ou corrigida somente depois de anos ou de décadas. Um mecanismo lento e, acima de tudo, pouco confiável.

Ao contrário, o que o digital e a possibilidade de interação de todos em tempo real no âmbito do big data produziram foi o aumento da quantidade de informações e da velocidade do tempo necessário para desmascarar uma notícia falsa. Assim, é possível afirmar que, em relação ao passado, a informação digital é “potencialmente” menos falsa do que aquelas divulgadas pelos jornais, TV e pela mídia tradicional, porque, uma vez divulgada, é imediatamente analisada e “pensada” pelas redes sociais digitais e por qualquer pessoa, que terá no próprio contexto digital instrumentos para aprofundá-la e verificá-la.  Um exemplo para todos, nesse sentido, é a enciclopédia coletiva Wikipedia.

 

O poder do clique

No contexto do big data, o “poder do clique” se torna o “deus exmachina” da informação. Se nos jornais e na mídia tradicional era uma equipe fechada numa sala a decidir a quantidade, a ordem e a importância das notícias, em um contexto digital será o número de cliques, ou seja, os usuários da internet, a decidir quais serão os tópicos, os artigos e os conteúdos de maior interesse.

Se na mídia de massa, isto é, no small data, a informação era selecionada e ordenada pelos grandes grupos de comunicação e distribuída para a população, em contextos digitais, os leitores tornam-se os editores que passam, assim, a perceber os fluxos informativos e o processo comunicativo.

Esse aspecto é muito importante para entender como o fenômeno das notícias falsas muda no contexto do big data e das redes digitais. Nestes as notícias já não saem mais prontas como na época da imprensa e da esfera pública nacionais, mas necessitam da intervenção de cada internauta, que, por meio do acesso digital à informação, pode modificá-la, expandi-la e repassá-la ou criticá-la e desmenti-la.

Esse novo contexto do big data e da qualidade digital das informações deve também nos levar a repensar a ideia de informação para além da dicotomia verdadeiro/falso. Em primeiro lugar pela óbvia consideração de que a natureza da informação e do jornalismo não pertencem às categorias do verdadeiro, mas de opinião e de interpretação. Em outras palavras, nenhuma notícia pode ser considerada objetiva e verdadeira em absoluto, pois , como é escrita por alguém, ela será sempre, inevitavelmente, um ponto de vista sobre algo.

Se as notícias não podem ser definidas nem como verdadeiras nem como falsas, qual seria então o estatuto, a natureza e a qualidade de suas proposições? A etimologia da palavra latina “fictio, fictionis”, ficção, (fiction em inglês) remete a um duplo significado: o da “simulação” e da “construção”. Se pega pelo seu segundo sentido, podemos encontrar uma saída apontando o processo de ficção como algo distinto tanto da qualidade do verdadeiro quanto daquela do falso.

A ficção seria uma construção, isto é, um processo narrativo construído. Desde esse ponto de vista, a natureza da informação na época do big data e das fake news não pertence nem ao mundo da verdade nem àquele da mentira, mas àquele da construção de relato e, portanto, da ficção.

 

A natureza da informação na época do big data e das fake news não pertence nem ao mundo da verdade nem àquele da mentira, mas àquele da construção de relato e, portanto, da ficção

 

Democracia e big data

Em outras palavras, nas redes digitais, devido à multiplicidade de dados, a contradição é a regra e a informação significará, cada vez mais, aprofundamento e dúvida, atividades estas acompanhadas pela facilidade de acesso à análise e verificação das informações via web. Se na época do small data a veracidade de uma informação era dada pelo carisma da fonte (as grandes empresas de mídia e o poder político), nos novos contextos digitais de informação a veracidade é socialmente construída a posteriori por meio de um processo democrático de participação colaborativa entre os próprios usuários da internet, ao mesmo tempo produtores, editores e leitores dos conteúdos. Nesse contexto torna-se impraticável a eleição de qualquer autoridade superior que possa editar ou, pior, decidir o que é verdadeiro e o que é falso.

O ministério da verdade existe apenas nas ditaduras. Um dos pré-requisitos da democracia, como N. Bobbio [filósofo e historiador italiano, considerado um dos grandes pensadores do século 20] nos ensinou, é a “falibilidade gnosiológica”, isto é, a natureza não confessional do contrato social democrático e das constituições. Segundo Bobbio, nas democracias a verdade não é estabelecida a priori, mas construída socialmente e a posteriori por meio do diálogo e da participação dos cidadãos. De forma análoga, o processo de construção dos sentidos e da divulgação das informações na época do big data vai ser finalmente interessado por um processo de construção colaborativa e a posteriori. 

A natureza das afirmações em ambientes digitais articulados por meio do big data será mais do que o pertencimento a uma natureza verdadeira ou falsa, o desenvolvimento contínuo de interpretações articuladas pela participação direta dos diversos cidadãos conectados. Já não temos mais verdades inquestionáveis, disseminadas de cima para baixo, como diria F. Nietzsche: “até que enfim o mundo tornou-se uma fábula”.

 

Massimo Di Felice é professor de Teoria da Opinião pública, na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP); coordenador do Observatório
de Pesquisa em Redes Digitais e Sustentabilidade
de Sapienza di Roma; coordenador do Centro de Pesquisa Internacional Atopos e diretor científico do Instituto
di Alti Studi Toposofia de Roma.

 

 

 

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