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Outras paternidades

Ao superar o estereótipo dominante nas relações do núcleo familiar,
novas faces da figura paterna apontam rumos para uma futura geração

Foto: Divulgação

 

Ao longo de décadas, esta cena poderia acontecer em qualquer casa, a qualquer hora do dia: o bebê chora, mas a mãe é a única a alimentá-lo, trocar a fralda, dar-lhe um banho, acalmá-lo e, por fim, colocá-lo para dormir. Tarefas rotineiras que apenas se ajustariam, com o passar do tempo, às necessidades do filho: da infância à idade adulta. Da mesma forma, era comum ouvir: “mãe cuida, pai educa” – uma de tantas outras crenças cujo prazo de validade expirou nos últimos anos, em consequência de uma nova construção do conceito de pai. Mudanças confirmadas por inúmeras pesquisas que apontam a paternidade ativa e afetiva como fundamental para as novas gerações.

Segundo o relatório Situação da Paternidade no Brasil, divulgado em 2016, o pai é importante para o desenvolvimento intelectual e emocional das crianças durante todo o crescimento delas. Além disso, o pai tem um papel importante a cumprir como corresponsável, em conjunto com a mãe e outras pessoas que exercem a função de cuidadores.

Esses são alguns fatores que retiram o pai da função de coadjuvante na criação dos filhos. E essa mudança de paradigma vai impactar as novas gerações. “Dados globais indicam que 80% dos homens se tornarão pais biológicos em algum momento de sua vida, o que também se aplica ao contexto brasileiro”, aponta o mesmo relatório, realizado pela ONG Promundo Brasil, junto a outros realizadores e parceiros, como o Ministério da Saúde.

 

De pai para pai

Esse expressivo número de homens vai desempenhar algum papel relacionado ao cuidado na vida de crianças, seja como educadores, profissionais de saúde, tios, padrinhos, entre outras funções. Por isso, novas reflexões e discussões sobre esse assunto têm movimentado as redes sociais e outras plataformas na internet. Iniciativas como a do criador do site Paizinho, Vírgula!, Thiago Queiroz, expressam os anseios desses pais do século 21 ao cuidar dos filhos, derrubar preconceitos e dividir responsabilidades domésticas.

“Decidi mergulhar na paternidade e me descobri outro homem. Primeiro, questionei muitas coisas da minha masculinidade que eu tinha como certas. Comecei a perceber que eu podia, sim, me envolver afetivamente; também assumo outros papéis dentro de casa que eu não achava que um homem assumiria. É impossível não olhar com empatia e afeto para seu filho e isso não transformar tudo ao seu redor”, conta Thiago, que é pai do Dante e do Gael.

Para redefinir essa ideia do que é ser pai, Thiago teve que repensar a forma como foi criado, porém sem julgamentos. “Eu me diferencio em muitas coisas do meu pai. O contexto histórico também é muito diferente.

Meu pai não teve acesso a muitas informações a que tenho. Na criação tradicional que meu pai e, também, minha mãe tiveram, havia a questão do castigo, da recompensa... até a questão da alimentação, que hoje é bem mais saudável”, explica. “Muita coisa mudou. Não havia muitas demonstrações de afeto porque tem toda essa coisa de um ‘masculino’ que hoje a gente desconstrói. Tenho dois filhos, que abraço, beijo, falo que amo e estou muito perto deles. Esse vínculo afetivo é muito diferente daquele que tive na minha infância.”

Assim como Thiago, o ilustrador Victor Farat acredita que cada geração traz à tona o reflexo social do que viveu. “Muito do que meu pai fazia, ou meu avô, já não tem mais tanto sentido”, aponta. “Talvez o que esteja mais em evidência hoje para mim e para a grande maioria dos pais ao meu redor seja a necessidade de ocupar um lugar de cuidador tão próximo ou igual ao da mãe. Outro aspecto que podemos notar de diferente é uma abertura maior de escuta e diálogo empático com filhos desde muito pequenos, gerando outras experiências cognitivas de confiança e respeito na forma de educar.”

A fim de compartilhar dúvidas e reflexões sobre como é ser pai nos dias de hoje, Victor participava de um grupo no Facebook chamado Paternando. Até que várias reuniões e conversas com os participantes levaram à criação de uma página na internet que incluiria não só um blog, mas principalmente um podcast com o nome Balaio de Pais.

Há aproximadamente dois anos, Victor e outros pais discutem de maneira descontraída a dor e a delícia de ser pai. “Sempre trazemos para a conversa nossas próprias histórias e aprendizagens do dia a dia, e os episódios retratam essa observação da prática da paternidade que vivemos”, explica. “Tentamos não seguir cartilhas de ‘certo ou errado’ e constantemente questionamos atitudes normatizadas, se fazem sentido ou não para cada um de nós, no intuito de flexibilizar e abrir espaço para cada família se recriar a partir do que vive e não do que é imposto.”

 

Foto: Divulgação

Novas famílias

Para a psicóloga Vera Moris, além dessas reflexões emergentes sobre o protagonismo paterno, novas constituições familiares adicionam matizes à figura paterna. “Há diferentes formas de uma criança ser cuidada e, portanto, diferentes formas de paternidade”, afirma. “Não existe apenas a família tradicional, constituída por pai e mãe. Um homem adulto saudável, que deseja ser pai e que seja sensível às necessidades da criança pode cuidar dela.”

Coautora do livro Coragem de Ser: Relatos de Homens, Pais e Homossexuais (GLS, 2017), que aborda narrativas de homens que foram casados com as mães de seus filhos e que são homossexuais, Moris constata um emergir de diferentes paternidades: “Existe hoje não apenas o pai inserido no modelo heteronormativo de família tradicional (pai, mãe e filhos), mas também o pai singular (pai com filho, adotivo ou biológico) e o pai homossexual (numa relação homoafetiva ou não, podendo também ser adotivo ou biológico)”. E complementa: “Em algumas situações mais atípicas, podemos observar ainda homens, homossexuais ou não, que exercem essa função de pai (porque é a pessoa de apego da criança, que cuida e promove o desenvolvimento), como um tio, um padrasto ou até mesmo um avô”.

Para o assessor nacional de advocacy na Aldeias Infantis SOS Brasil (organização humanitária global que trabalha na defesa, garantia e promoção dos direitos de crianças, adolescentes e jovens), Fábio Paes, é urgente a visibilidade das diversas experiências de paternidade. “A abordagem da perspectiva do direito à paternidade pelos pais encarcerados, os pais adolescentes, os pais de todas as raças, os pais LGBTTRANS, como vieses de possibilidades de exercício do cuidado, acabou revelando uma reflexão. Demandando espaço para a urgência de discussão e implementação de políticas públicas que possam alterar essa realidade [de diversos tipos de paternidade]”, aponta.

 

Imagem:Pixabay

 

Desafios pela frente

O fato é que ainda há um longo caminho a ser trilhado por esses novos pais. “A construção da maternidade e da paternidade passa por um processo que vai desde a solidificação e implementação, garantia e controle de execução dos direitos já conquistados pelas políticas públicas à construção desse direito de conviver desde as primeiras horas com os (as) filhos(as), da educação, saúde, cultura, lazer, espaços e cidades adequadas, inclusivas e humanas que se desejam para eles”, complementa Fábio.

Da mesma forma, relata Thiago, do site Paizinho,Vírgula!, muitos preconceitos ainda precisam ser derrubados. “Essa nova paternidade não vem separada de uma nova masculinidade que não é tóxica, não oprime as mulheres nem prejudica e adoece os homens. Acho que a sociedade não está pronta para receber esse homem que chora, que tem fraquezas, que vai falhar também. O homem que se recusa a ser esse cara viril, que dá conta de tudo, não tem sentimento, que dá conta de trabalhar-crescer-prosperar-ganhar-dinheiro. Vejo isso no meu próprio trabalho. Quando eu falo, por exemplo, que vou sair mais cedo para levar meu filho ao pediatra, me perguntam por que a mãe não leva. Respondo: ‘Sim, ela vai levar e eu também. Vamos juntos’”, ressalta.

A partir desse novo caminho em que o pai não prioriza só o trabalho, nem a mulher é a cuidadora exclusiva da família, outra paternidade pode ser concebida. “O pai nasce quando a mãe do seu filho diz que está grávida. Ou, em outras configurações familiares, quando você se coloca disponível para criar. Se tornar pai não é uma opção para quem vai ter um filho, e assumir essa responsabilidade é o parto do homem. Segurar seu filho no colo pela primeira vez é um momento em que muitas fichas caem sobre o real papel do pai, mas o verdadeiro significado da paternidade vem de diferentes formas para cada um, e em momentos muito particulares. Uma verdadeira transformação para um homem”, arremata Victor Farat, do Balaio de Pais.

 

Imagem: Balaio de Pais

 

Ser pai é...

Ao longo dos séculos, o papel da figura paterna vem mudando


Século 17
Havia pouca manifestação de afetividade entre pais e filhos, principalmente porque, nesse período, assim que as crianças podiam prescindir dos cuidados das amas, elas já passavam à condição de adultos.

Séculos 18 e 19
Modelo familiar conservador, em que a mãe era a principal responsável pelas tarefas domésticas e ao pai cabia a responsabilidade pelo trabalho para prover as despesas da casa. A dependência em relação ao pai e sua autoridade eram estimuladas.

Século 20
Até as décadas de 1960 e 1970, a maior parte dos estudos sobre o desenvolvimento infantil não incluíam o pai, responsabilizando a mãe pelo sucesso ou fracasso na evolução dos filhos. A partir da década de 1980, estudos passaram a considerar a importância de um pai atuante e participativo. 

Século 21
Cada vez mais estudos comprovam que a figura do pai é importante para o desenvolvimento intelectual e emocional das crianças durante todo o crescimento delas. Além disso, o pai tem um papel importante a cumprir como corresponsável em conjunto com as mães e outros(as) cuidadores(as). Há a disseminação de grupos de pesquisa, apoio e discussão sobre paternidade, bem como conquistas na legislação:
• Guarda compartilhada – estabelece que o tempo de convívio do pai e da mãe deve ser dividido de forma equilibrada, tendo em vista os interesses do filho(s) ou da filha(s);
• Ampliação da Licença Paternidade (de cinco para 20 dias).

 

Realidades e desafios

Palestras, debates e podcast convidam público
a pensar sobre o que é ser pai na contemporaneidade


Qual a situação da paternidade no Brasil? E qual o papel da figura paterna nos dias de hoje? Essas e outras questões fazem parte do ciclo de debates Paternidades Atuais: Realidades e Desafios, no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc, no mês de agosto.

A programação convida pesquisadores e público a refletir sobre diferentes formas e possibilidades de vivenciar a paternidade na atualidade. Também acontecerão outras ações no Sesc Consolação, com destaque para a gravação de um podcast com o grupo Balaio de Pais, além de uma conversa com os cartunistas Rafael e Laerte Coutinho, programada para setembro.

“Falar sobre paternidades, hoje, é trazer ao debate tabus que precisam ser desconstruídos. É necessário refletir sobre nosso posicionamento diante de questões como as novas configurações familiares, a participação do pai nos cuidados com os (as) filhos(as) e as masculinidades, com intuito de contribuir para uma sociedade mais equitativa, diversa e democrática. Por isso, esse tema foi o escolhido pelo Sesc São Paulo para iniciar o Cuidar de Quem Cuida, que integra o Programa Espaço de Brincar (ações com, para e sobre bebês e crianças de 0 a 6 anos), e debater assuntos relacionados aos cuidadores envolvidos no universo da primeira infância”, explica a assistente da Gerência de Estudos e Programas Sociais do Sesc Rosana Abrunhosa.


SESC CONSOLAÇÃO
Conversa ao vivo com gravação do podcast Balaio de Pais:
participação de Victor Farat e pais do Coletivo Balaio de Pais. (Dia 30/8)
Paternidade entre gerações e outras questões: conversa entre os cartunistas
Paternidade Negra. (Dia 20/9)

CPF
Situação da Paternidade no Brasil: com Mariana Azevedo, membro da Coordenação Colegiada da ONG Instituto Papai, e Fábio Paes, assessor nacional de advocacy na organização Aldeias Infantis SOS Brasil. (Dia 6/8) Paternidade e Mundo do Trabalho: com o psicólogo Daniel Costa Lima, consultor independente
no campo de gênero, masculinidades, saúde dos homens e paternidade, e o economista Sergio Firpo,
professor titular da cátedra Instituto Unibanco no Insper. (Dia 8/8)
Paternidades Possíveis: com Thiago Queiroz, criador do site Paizinho, Vírgula!, e Rodrigo Bueno,
cartunista e criador da fanpage Diário Ilustrado da Paternidade. (Dia 13/8)
Abandono Paterno: com Ana Liési Thurler, autora de Em Nome da Mãe – O Não Reconhecimento
Paterno no Brasil (Mulheres, 2009), e Pedro Affonso D. Hartung, advogado e coordenador do Programa
Prioridade Absoluta do Instituto Alana. (Dia 15/8)
Paternidades e Diversidades: com Cristiane Cabral, professora do Departamento de Saúde, Ciclos de Vida e Sociedade da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP), e Vera Lúcia Moris, psicoterapeuta, consultora na área de família e coautora do livro Coragem de Ser: Relatos de Homens, Pais e Homossexuais (GLS, 2017). (Dia 20/8)

SESC BIRIGUI
Pai para toda vida: bate-papo sobre dinâmicas que abordam o papel dos pais na criação dos filhos e uma conversa sobre paternidade ativa com a consultora materna Larissa Godoi. (Dia 5/8)

SESC ARARAQUARA
Aproximações, contatos e criações: um convite a uma experiência criativa entre crianças e seus responsáveis, pensando a participação da figura masculina, as manifestações de afeto e a construção de vínculos, com a psicoterapeuta e educadora Marina Tezini. (Dia 25/8)

 

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