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Na boca do cão

Ilustração: Werner Schulz

 

numa incerta manhã
o pai levou a filha à padaria
para comprar pão.
na padaria tinha um cão
pastor alemão.
a menina tinha dois anos de idade,
não tinha nada contra pastor
nem contra alemão.
o pai perguntou ao padeiro
se o cachorro mordia:
o padeiro disse que não.
mal sabia o padeiro que o cão
muda de humor,
morder ou não morder, é uma questão
que varia conforme a hora
do cão nosso de cada dia.
e antes que o pai e a filha se afastassem
com o seu pão 
o cão abocanhou a cabeça da menina
por alguns segundos minutos séculos
por toda a eternidade:
a cabeça dela ficou na boca do cão
o mundo talvez brilhando, lá
do lado de fora
e ela prisioneira, ali, na boca do cão
do caos nosso de cada dia.

a menina nunca se esqueceu
daquela escuridão
na boca do caos
na boca do cão


então a menina compreendeu
todos os nomes do medo.
passou a ter medo de tudo
de qualquer coisa que lhe parecesse
um arremedo daquele medo
uma metamorfose daquele incidente

tinha tanto medo que não chorava
não sentia nada
só se sentia apavorada
diante dos prováveis cães
  do silêncio
só pensava em assuntos caninos:
cão que não ladra, morde?
quem não tem cão, caça com o quê?
se o cão é o melhor amigo,
quem será o pior inimigo?

quando nasceu sua irmã pequena
a menina começou a latir.
“que coisa engraçada!”,
pensaram os outros;
mas não era engraçado,
era a expressão de seu terror,
era a esperança de se vingar
assumindo a máscara do agressor

a menina cresceu e adquiriu
um gosto peculiar:
não gostou da história de Jonas
que é engolido pela baleia,
não gostou do filme Tubarão,
nem simpatizou com Cães de Aluguel,
por causa do título;
simpatizou com certa canção
chamada eu não sou cachorro não;
na praia, não gosta de nadar
  de cachorrinho,
nem gosta de pensar no amor
   como um mar
que a tudo possa devorar

a menina decidiu tomar
como se fosse sua
a voz do cão:

(faz improvisos sobre uivos
e latidos)

a menina começou a pensar
em outros cães que a livrassem
de seu cão-assombração:
talvez um cão ancorado
nas águas da imaginação,
cuja não voz fosse 
a possibilidade de um grito

 

e a menina, movida a espanto,
transformou o cão em canto:
a menina movida a vida:
quando eu canto saio da boca
  do cachorro
o canto é um grito de socorro
que deixa de ser só meu
é como se eu cantasse
todas as dores do mundo
como se a felicidade
como se o fim do mundo
como se o sol que principia
como se o cão fosse somente
o guardião da alegria da cidade
o guardião da alegria
o guardião
somente
o cão


 

Geraldo Carneiro é poeta, tradutor, roteirista,
dramaturgo e ocupa a cadeira 24 da Academia
Brasileira de Letras. Já publicou Subúrbios da
Galáxia – Antologia Poética (Nova Fronteira, 2016),
Balada do Impostor (Garamond, 2006),
Por Mares Nunca Dantes (Objetiva, 2000),
entre outros.

 

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