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Sobe o Som


A canção brasileira é particular. Reverenciada, foi alvo de debates acalorados em uma série de festivais competitivos dedicados a ela. O primeiro aconteceu em 1960, promovido pela TV e Rádio Record, no qual se reuniram compositores e músicos de todos os cantos do Brasil, mas sem muita repercussão. A febre dos festivais foi inaugurada pouco tempo depois, em 1965, com a competição transmitida pela TV Excelsior, da qual saiu vencedora “Arrastão”, interpretada por Elis Regina.

Ainda em setembro de 1960, o Rio de Janeiro criou um festival de tema específico, bem caro à história da música: o amor. “As Dez Mais Lindas Canções de Amor” foi uma iniciativa de uma loja chamada O Rei da Voz e da gravadora Copacabana. Quem se consagrou no evento foi Ary Barroso e a sua “Canção em Tom Maior”, na voz de Ted Moreno. Embora vencedor, Ted Moreno não conseguiu fazer a carreira deslanchar. Já as músicas “Poema do Adeus”, de Luiz Antônio com Miltinho, e “Ternura Antiga”, de Ribamar e Dolores Duran com Lucienne Franco, outras duas entre as dez eleitas, se projetaram através do tempo.

Os festivais são mesmo um capítulo à parte da história da cultura nacional e representaram um dos espaços de resistência à censura promovida pela ditadura militar nos anos 1960 e 1970, mas a origem da canção brasileira é muito mais antiga. Ela remonta o período colonial (ainda no século 16), com evolução gradativa que culminou nas modinhas – sucesso nos salões brasileiros do século 19.

O gênero se expandiu e criou desenlaces próprios, tanto para compositores, como para cantores e pesquisadores. Músico, linguista e pesquisador do tema, Luiz Tatit diz que a linguagem da canção disseminada atualmente, caracterizada por ele como “dinâmica, progressiva”, e responsável por gerar “novos gêneros e modas, veio à luz com a chegada ao Brasil dos aparelhos de gravação e das emissoras de rádio”, existindo como produto de uma atividade profissional a partir da década de 1920 (veja boxe Não Se Perca).

Detalhes e elementos

A simplicidade passa longe quando a missão é associar letra, melodia e harmonia, cernes da canção. Na opinião do compositor Eduardo Gudin, na MPB transparece a potente interação entre melodia, harmonia e letra. “Principalmente na questão harmônica, tanto nos compositores antigos como nos atuais”, compara.
Os anos 1930 e 1940 carregaram discussões relativas ao canto. O escritor Mario de Andrade não poupou esforços no período para estudar a música brasileira. Em Música e Jornalismo (Edusp, 1993), encontramos uma compilação de críticas e crônicas do autor publicadas no jornal Diário de S. Paulo, de 1933 a 1935. Com uma produtividade impressionante, antes de se ligar ao Diário, Andrade foi, por um longo período, crítico de arte no Diário Nacional, de 1927 a 1932. Os números indicam que nesses cinco anos, sua produção textual se aproximou de 700 artigos, sendo mais de 400 sobre música.

No livro Pequena História da Música (Nova Fronteira, 2015 – e-book), Mario afirma que os elementos formais da música, ou seja, o som e o ritmo, são tão antigos quanto o homem, equiparando a respiração humana e o batimento cardíaco a funções rítmicas. Já a voz é identificada pela produção do som. Ele faz coro ao maestro e compositor alemão Hans von Bülow, ao dizer que o ritmo é fundamental na organização da vida humana.

Foto de Tom Jobim. Instituto Antônio Carlos Jobim

Variações e diversidade

A década de 1950 é reconhecidamente um período de diversidade: samba, samba-canção, samba blue, termo cunhado para um tipo de samba produzido sob influência do som produzido pelos standards norte-americanos (Nat King Cole, Bill Evans). A intérprete que se destaca no samba-canção é Dolores Duran. De 1957, “Por Causa de Você” tem letra de Duran e música de Tom Jobim. A composição foi regravada por Frank Sinatra em parceria com Jobim em 1969 e se transformou em “Don’t Ever Go Away”.

Gudin recorda outra rede de relações entre expoentes da música brasileira. Cita a ligação “evidente” entre a obra de Anacleto de Medeiros, Chiquinha Gonzaga, Pixinguinha e Noel Rosa com a música de Tom Jobim, Chico Buarque, Caetano Veloso, Baden Powell, Paulinho da Viola e outros mais atuais.

“Existem alguns pontos marcantes de elementos novos que se agregaram a nossa música em momentos importantes. Exemplo disso é o estilo de Johnny Alf e o violão de João Gilberto na bossa nova”, continua Gudin. O compositor também menciona o primeiro disco de Milton Nascimento, Travessia (1967), e o som autoral do violonista Guinga.

A Tropicália é vista como um instrumento da desconstrução do gênero, pois agregou elementos visuais e performáticos, fazendo uso de pastiche e paródia nos arranjos, bem ao estilo de intervir a alterar o que estava em voga, tendo exemplos nos discos Caetano Veloso (1968), Muito (Caetano Veloso, 1978) e na releitura de Gilberto Gil para “No Woman, no Cry”, de Bob Marley, intitulada “Não Chore Mais” (Realce, 1979).

 

Foto de Baden Powell. Dieter Hopf

Polêmica e reconstrução

Um dos expoentes dessa geração de compositores, Chico Buarque deu fôlego à discussão sobre o fim da canção. Em entrevista para a Folha de S. Paulo (2004), declarou que Noel Rosa foi responsável pela formatação do gênero nos anos 1930, o qual foi remodelado pela bossa nova e, nos anos 1990, teve no Rap a “negação da canção tal como conhecemos, [...] o sinal mais evidente de que a canção já foi, passou. [...].
Provocando o mesmo efeito de fogo em terreno seco, a entrevista de Chico Buarque ainda reverbera, enquanto a canção brasileira segue altiva, sendo construída e reconstruída pelas inovações tecnológicas que acompanham o universo musical, sem deixar escapar a sua síntese: melodia, harmonia e letra: “No rap, é como se a canção chegasse a sua raiz, pois é alguém falando, com algumas organizações de métrica. O rap quer passar mensagens e, para isso, é necessário aproximar-se ao máximo da fala”, pondera Tatit. Em sua visão, os desafios das linguagens musical e literária não passam pela cabeça do letrista ao compor: “A preocupação essencial do cancionista é criar compatibilidade entre melodia e letra e não produzir poemas ou peças musicais independentes entre si. Um bom letrista quer sempre chegar a uma boa letra – passível de ser cantada por uma melodia – e não a um poema autônomo", enfatiza.

Não se perca!

Para Luiz Tatit, a canção sofreu intervenções que até hoje conduzem
sua evolução estética: a bossa nova e o tropicalismo. Siga os passos:

 

Ela existe
Sobretudo a partir da década de 1920 é que podemos dizer que a canção existe como produto de uma atividade profissional que foi se alastrando com o progresso técnico, até uma caracterização completa da linguagem nos anos de 1950 (já tínhamos então as canções mais ritmadas no canto (marchinhas, sambas carnavalescos...), as mais passionais (sambas-canções, boleros...) e as que explicitavam sua origem oral (sambas-de-breque ou de ditos coloquiais).

Construção e desconstrução
Quando a linguagem da canção brasileira já estava bem constituída, ela sofreu duas intervenções que até hoje permanecem como dispositivos de regulagem de sua evolução estética: a bossa nova, que lhe trouxe critérios de triagem para eliminar excessos melódicos ou linguísticos, e o tropicalismo, que, ao contrário, promoveu a mistura de tempo e de espaço, de conduta e até de revalorização da própria bossa nova (sua antípoda).

Mistura contemporânea
Essas intervenções estão vivas até hoje, quando novos artistas dizem que pretendem com suas obras depurar de algum modo a sonoridade brasileira (gesto bossa nova) ou, inversamente, misturar o rock com o forró, com o gospel, com uma pegada “rap”, num gesto tropicalista. 

Acabou?
O rap, aliás, motivou declarações sobre o fim da canção (pensava-se em canção como formas conservadoras, típicas da sigla MPB) e foi o gênero que mais próximo chegou do âmago criador da canção: nossa própria fala cotidiana (não há oralidade sem melodia e letra). Seus recursos foram incorporados na linguagem cancional e podemos dizer que só agora a formação dessa linguagem se completou.

 

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