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A força do documentário
Importante plataforma para discussão e reflexão de novas ideias, os documentários hoje têm passado por mudanças que atingem a produção audiovisual. Com a internet, sites, YouTube, Netflix, Vimeo e ITunes, o acesso ao conteúdo aumentou e o volume de produção também. Como essa linguagem tem sido palco de inovações e tem trazido à tona temas, personagens, discussões e ideias? Discutem o tema as documentaristas Claudia Priscilla e Joana Mariani.
O Tempo dos Sujeitos
por Claudia Priscilla
“O observador faz parte da observação”, essa célebre frase – ora atribuída a Einstein, ora a Merleau Ponty, ou ainda a Heisenberg – serve como ponto de partida e inspiração para este breve texto sobre o documentário hoje. A partir desse pensamento posso afirmar que quando estou atrás da câmera também faço parte do que estou filmando e, como parte do processo, não tenho o controle absoluto sobre o que está sendo documentado. Na captação de imagens temos o que pensamos e o que não pensamos. Temos o cálculo e o imprevisto. Temos o desejável e também o indesejável, o desconhecido. Fazer documentário equivale a um ato de liberdade. Sim, corremos riscos.
Se, como diretora, não tenho controle total do que estou filmando é porque estou diante de corpos vivos e atuantes (que desempenham um papel social e também diante de uma câmera). Fazer um filme é olhar para o outro e ser contaminada por ele. Muitas vezes mergulhar em realidades distantes das quais me encontro, um ato que exige disposição de escuta. Estabelecer relação entre mim – ou nós (equipe) – e o outro. O ato de fazer documentário só pode acontecer de forma coletiva, já que a troca e o diálogo existem na conjugação do plural.
A primeira vez que percebi que “o outro” pode alterar meu olhar foi durante a pesquisa para meu primeiro longa-metragem, Leite e Ferro. Minha ideia era realizar um documentário sobre uma instituição carcerária que abrigava mulheres que pariram no cumprimento de suas sentenças e estavam presas com seus bebês para o aleitamento. No primeiro dia de visita (ainda em fase de pesquisa) conheci Luana, que se encontrava pela segunda vez no CAHMP (Centro de Atendimento Hospitalar à Mulher Presa). Lembro que fiz duas perguntas e ela falou por duas horas. Ali soube que o filme era outro, que o filme teria que girar em torno dela. Estava encantada com as fabulações de Luana e queria dividir isso com o mundo. A personagem – objeto/sujeito – roubou o filme.
Num outro filme, Olhe pra Mim de Novo, que dirigi com Kiko Goifman, a intensidade da troca com a personagem foi ainda maior. A discussão do documentário gira em torno de Sillvyo Lucio, um homem trans, que nasceu no sertão nordestino. Decidimos incorporar a geografia da região e trazer outros personagens para o documentário, transformando-o em um roadmovie. Para sua realização, convidamos Sillvyo para viajar conosco e ser o interlocutor dos encontros com outras personagens. Nas estradas, em trânsito, juntamente com a personagem, foi construído um filme. O risco: todos juntos numa mesma van.
Existe um diálogo entre tela e espectador, o sentido do reconhecimento do outro. A experiência do cinema nos permite tanto ser homens ou mulheres, transcendendo a rigidez das normas com que vivemos. O espectador tem o desejo de estar na tela, não sabe quem ele é, não tem certezas absolutas, ele é atravessado pela dúvida. A quebra da rigidez moral e do binarismo a que estamos submetidos cotidianamente faz com que a sala de cinema seja um lugar de novas experiências, em que o singular – não o extraordinário que interessa aos meios de comunicação – pode ser compartilhado.
No cinema podemos ser Luana (Leite e Ferro) e compartilhar de sua cela na penitenciária ou nos lançarmos nas estradas com Sillvyo Lucio. O documentário é uma importante plataforma para discussão de mudanças sociais e culturais. Um espaço que contribui, de forma direta, para a reflexão de novas ideias. Questões tabus que não devem ser comentadas podem, por meio das obras cinematográficas, pautar calorosas discussões nos lares mais conservadores do país. Ou, na melhor das situações, nos cafés depois das salas de cinema. O olhar detido do documentarista cria o espaço de resistência, joga luz em pequenas histórias para falar de temas universais.
Temporalidades
Se por um lado temos as notícias do último segundo nas redes midiáticas com uma visão massificada, o documentário traz a experiência do tempo e se distancia da espetacularização. Ao se afastar do imediato, da urgência, a experiência espaço/tempo no documentário joga luz – e a mantém – em personagens comuns, e também muitas vezes incomuns, possibilitando que elas reinventem a própria vida a partir de seu imaginário, da própria reflexão sobre o cotidiano.
Se fazer cinema documentário é buscar aquilo que existe de “real” no tema abordado, precisamos de tempo para assumir um compromisso com o que nos escapa, precisamos de tempo para que premissas estabelecidas sejam derrubadas, precisamos de tempo para um olhar atento diante do “outro”. Só o tempo pode aproximar os atores desse jogo – observador e observado.
As personagens de um documentário podem ser invisíveis aos olhos das grandes empresas de comunicação. O registro de velhos em uma pequena cidade no Nordeste brasileiro, sobreviventes de uma chacina na Baixada Fluminense, crianças que crescem nos bordéis em Calcutá, mulheres trans que cuidam de idosos judeus ortodoxos em Israel. Essas pessoas nunca serão destaque nos maiores meios de veiculação de conteúdo, na televisão ou na internet. O documentário é espaço reservado para retratar, dar visibilidade a esse “tipo de gente”, pessoas com histórias ordinárias.
Corpos
Meu interesse como documentarista sempre apontou para realidades distantes da minha. Talvez essa seja a forma que encontrei para dedicar meu tempo a outras vivências, tentar entender a vida em outros corpos. Isso não é meramente jogo linguístico, me interesso, e muito, por corpos, e a maior parte do meu trabalho reflete isso.
O início foi o curta Sexo e Claustro, que retrata a vida de uma ex-freira lésbica mexicana – um mergulho no universo de uma mulher que teve um corpo cerceado por dogmas religiosos. Depois veio Phedra, que conta a história da atriz cubana e mulher trans. A partir desse filme veio a descoberta dos corpos fluidos, que carregam contradições e não respeitam as fronteiras impostas culturalmente. A esses corpos comecei a dedicar meu olhar… E assim foi feito Vestido de Laerte e Olhe pra Mim de Novo. A Destruição de Bernardet, meu mais recente filme, no qual divido a direção com Pedro Marques, também retrata um corpo. O corpo velho de Jean Claude Bernardet, que saiu do lugar de conforto e partiu para novos desafios. O maior crítico de cinema vivo, aos 70 anos, se transformou em
Acredito que faço cinema quando meu corpo se mistura a todos esses outros corpos. O velho documentário faz todo o sentido em tempos da rapidez da internet, dos webdocumentários, da Netflix etc. O tempo do olhar. O tempo dos sujeitos.
Claudia Priscilla é cineasta e documentarista, tendo realizado roteiro e direção de Leite e Ferro (2010), Olhe pra Mim de Novo (2011) e A Destruição de Bernardet (2016), entre outros.
Em movimento
por Joana Mariani
Costumo dizer que o diretor que acha que dirige documentário está lutando contra a própria natureza do gênero. É o documentário que dirige o diretor, e é daí que vem a força do seu conteúdo. O ponto de vista do diretor, como narrador de uma história, estará sempre presente, mas acredito que ele não deva se sobrepor à voz do que está acontecendo. A construção da linguagem e da narrativa se dá de forma orgânica, desde a pesquisa até a ilha de edição. Encarando dessa forma, o processo criativo é extremamente transformador. As intenções e ideias iniciais se tornam somente o ponto de partida para uma trajetória cheia de surpresas a serem descobertas. Conforme nos aproximamos da realidade, somos invadidos por ela. Percebemos que ela fala por si só, e cabe então aos documentaristas saber ouvir.
Foi assim durante a produção do Marias, que começou a ser filmado em 2009 e foi lançado no final de 2016. No início do projeto, a minha intenção era retratar a fé e a devoção à Maria na América Latina, mas depois de percorrer diversos países, de visitar as festas e de me aproximar dos devotos marianos, o filme foi se transformando em um relato muito mais abrangente: sobre o simbolismo e o poder feminino. Apesar das diferenças históricas e culturais entre os países, encontrei na fé em Maria uma semelhança. Essa semelhança estava justamente na devoção como um ato de fé no feminino. Consciente ou inconscientemente, todos os entrevistados buscavam em Maria o acolhimento de uma mãe, a compreensão, o colo. Concluindo: em 2009, decidi que iria fazer um filme sobre a fé e a sua importância para os povos latino-americanos. Em 2016, lancei um filme sobre a importância dos valores femininos para esses povos.
Claro que cabe ao diretor fazer o recorte de seu interesse. O empoderamento da mulher é um dos temas mais discutidos e levantados atualmente. Fiquei extremamente envolvida pela possibilidade de falar sobre isso pela religião. Vivemos em um país e um continente que tem arraigado o machismo. Na América do Sul, a mãe é o arrimo da maioria das famílias, mas, dentro das sociedades, ela está subordinada ao seu marido. Ao investigar e observar a devoção oferecida a Maria, minha tentativa foi colocar luz à importância das mulheres. Além disso, trazer à tona os valores femininos – estejam eles presentes em mulheres, homens, ou em uma imagem adorada –, valores que estão sendo atropelados pela agressividade dos tempos atuais.
O gênero documental permite e estimula o diálogo. É essa característica que mais me interessa. Levantar questões em vez de se preocupar em formular respostas. Acho que o espectador deve ficar numa posição ativa e construtiva, para tirar suas próprias conclusões a partir da realidade apresentada: seja ela uma questão histórica, um relato biográfico ou a documentação de algo que ainda está em curso. Novamente, isso não exclui o ponto de vista do diretor, mas permite que o retrato seja mais abrangente e representativo. Por meio do diálogo e da representatividade, acredito que o documentário tenha um poder de transformação muito potente e importante.
Minha experiência com o Marias nesse sentido foi muito rica, pois a religião é um tema que carece de conteúdos que a questionem. Esse não era meu objetivo, mas foi algo que aconteceu naturalmente pela relação com o público. Fui abordada por pessoas extremamente religiosas que adoraram o documentário e, na mesma medida, por pessoas sem crença alguma que também gostaram. A meu ver, isso foi fruto do processo, da forma como cada cena foi construída. Sem ofender ou enaltecer, o retrato foi fiel aos mais diversos tipos de manifestação de fé. Sem julgamento de valores, sem críticas.
Além de todo documentário ter esse grande potencial como formato, o público se manifesta de forma cada vez mais ativa e autônoma em relação ao que está assistindo. Os novos formatos de exibição permitem que o espectador tenha poder de escolha sobre o que vai assistir. Apesar de isso diminuir o público nos cinemas, acho que é um movimento que tem muitos aspectos positivos. O acesso ao conteúdo aumentou e o volume de produção também. O que mudou foi a forma pelas quais os conteúdos são consumidos. Eu frequento cinema, mas sempre fui uma consumidora voraz de DVDs – gosto de assistir a filmes mais de uma vez –, e os DVDs de hoje são o Netflix, o ITunes, os canais por assinatura, o celular. Temos inúmeras telas para que um produto audiovisual seja visto. Isso aumenta o consumo de produtos audiovisuais e, por consequência, aumenta também a sua produção.
Como produtora do mercado audiovisual, penso que precisamos dimensionar o lançamento dos filmes considerando as janelas de exibição mais curtas. Antes um filme saía do cinema e respeitava janelas longuíssimas: seis meses para chegar às locadoras, mais seis meses para chegar às lojas. Outro ano para poder passar em uma TV por assinatura, e mais 18 meses para chegar à TV aberta. Hoje, em menos de dois meses, o filme que estava em cartaz nos cinemas está disponível em plataformas como Net Now, Netflix e Apple TV. O conteúdo vai até o espectador, e ele pode escolher não só o que vai assistir, mas também quando e onde.
No caso de Marias, o filme foi lançado nos cinemas com a venda para o Netflix já realizada, e com uma janela acordada bem curta (cerca de um mês). Dessa forma, aproveitamos toda a mídia do lançamento em cinema, que contou com uma pré-estreia no Corcovado, com show de Maria Gadu aos pés do Cristo Redentor, mapping de projeções na estátua e outros eventos. Isso tudo gerou curiosidade no espectador para que ele assistisse ao filme no cinema ou, no caso de ele sair de cartaz rapidamente (fato cada vez mais recorrente aos documentários), que pudesse encontrá-lo logo na plataforma que desejasse. Como a relação com o público mudou, as estratégias de lançamento também precisam se transformar. E documentários se encaixam muito bem nessa nova dinâmica.
O mundo está caminhando de forma cada vez mais rápida, temos cada vez mais oferta de informação, material audiovisual principalmente. Precisamos acompanhar esse movimento com consciência. Se você quer tratar de um assunto que considera relevante, o importante é que ele atinja público, independentemente da forma como vai chegar a esse público. Há menos de 20 anos, o consumo diário desse material era oferecido apenas nas salas de cinema e pelos canais de televisão aberta. Hoje temos TV aberta, TV por assinatura, Canais de TV na internet, sites, YouTube, Netflix, Vimeo, apenas para citar algumas maneiras de assistir a um documentário. Junto com a tecnologia de exibição, a tecnologia de captação também avançou para câmeras digitais de qualidade similar à da película, a preços acessíveis, e até mesmo câmeras de aparelhos celulares. Proporcionalmente, quantidade traz qualidade. Então, podemos dizer, de forma geral, que hoje se tem mais acesso a produtos com qualidade.
Defendo o lado positivo dessa nova forma de produzir e consumir audiovisual. Sou uma de suas praticantes como diretora e como espectadora. Acho que o que importa é a narrativa – uma história bem contada, que prenda o espectador do início ao fim. Mas isso não me faz descartar a felicidade de assistir a um bom filme na tela grande, na sala escura. A emoção no cinema é outra, e nunca deixará de ser.
Joana Mariani é produtora, diretora e roteirista. Produziu filmes como O Cheiro do Ralo (2006), Fabricando Tom Zé (2007) e Trinta (2013) e, no ano passado, estreou seu primeiro documentário, Marias.