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Jogo de espelhos

Federico Fellini continua a encantar amantes do cinema com seus personagens fortes e caracterizações oníricas da sociedade europeia da segunda metade do século 20


Fotografia de Tazio Secchiaroli © Coleção David Secchiaroli, Milão
Federico Fellini ensaia com Marcello Mastroianni durante a filmagem de A Doce Vida, 1960
 


De tão celebrado tornou-se adjetivo ou, dividindo opiniões, grife. Independentemente do lado escolhido nessa equação, o verbete felliniano está no dicionário do cinema e representa a obra e o estilo pessoal de Fellini em mais de 20 filmes, tendo A Doce Vida e Oito e Meio como ícones.

De Rimini, onde morou do nascimento, em 1920, até os 18 anos, Federico Fellini mudou-se para Roma como estudante de Direito, e na cidade fez-se fabulador e contador de histórias, trabalhando como jornalista, cartunista e colaborador em roteiros, entre eles Roma, Cidade Aberta (1945, Roberto Rossellini). Mulheres e Luzes (1950) foi sua estreia na direção (codirigido por Alberto Lattuada), ainda na fase do cinema do pós-guerra, inserido na aba do neorrealismo italiano.

Em 1952, a comédia de costumes Abismo de um Sonho o deixa sozinho na cadeira de diretor. No ano seguinte foi a vez do autobiográfico Os Boas Vidas, parcialmente filmado em sua cidade natal. A Estrada da Vida (1954) e Noites de Cabíria (1957) abriram o caminho na indústria norte-americana, a qual, para ele, sempre foi sinônimo de cinema. As duas produções ganharam o Oscar de melhor Filme Estrangeiro e destacaram o talento de Giulietta Masina, esposa do diretor de 1943 a 1993, ano da morte de Fellini.

Eu no espelho

Os anos 1960 escancararam transformações artísticas, e Fellini, na onda do cinema moderno europeu, lançou A Doce Vida (1960) – a assinatura da força em preto e branco expondo sua produção autoral e se contrapondo ao que se fazia em Hollywood. No filme, a sociedade do espetáculo é antevista e suas faces exacerbadas são mescladas à decadência e à frivolidade que parece não esmorecer, apenas adaptar-se a novos contextos. Oito e Meio (1963) traz Marcello Mastroianni como personagem principal e recurso dramático de Fellini, o autor-personagem. Em cena o ator é sobreposto à figura do diretor, confundindo e provocando o público. Oito e Meio é chamado pelo crítico e professor de Cinema, Sérgio Rizzo, de filme-marco, “o primeiro a trazer o nome do próprio Fellini no título original (Fellini 8 ½), cujo narcisismo se traduz no fato de que seria o ‘oitavo e meio’ filme do cineasta”.

Rizzo destaca a habilidade de Fellini ao estruturar a obra, o que nos dá a impressão de acompanhar a construção do filme, “um truque extraordinário e muito imitado desde então”, pontuando a realização do filme em conjunto com roteiristas que acabaram se tornando colaboradores mais próximos de Fellini. “O jogo de espelhos instaurado por Oito e Meio coincidiu com a eclosão do cinema moderno e da valorização do cinema autoral, funcionando como um emblema daquele período”, acrescenta.

Na memória

Amarcord (1973) é outro exemplo do espelho do cineasta, misturando realidade e sonho ao trazer a espetacularização da política, a família, a igreja, a escola – instituições representadas tendo em vista as relações de poder estabelecidas entre elas. O relato da infância por meio de Amarcord oferece a possibilidade de se aproximar do início da vida do cineasta. De que forma cresceu, quais as memórias fundamentais para o desenvolvimento de sua personalidade. A verossimilhança faz com que, em seus longas, Fellini imprima um estilo, mostrando-se um bom observador social e das atitudes dos homens diante das mais distintas situações. Fellini provoca o encantamento ao narrar suas recordações e recriar fatos que só existiram em seu imaginário. O título do filme dá pista para a memória, a qual sempre tem espaço em sua cinebiografia. Do dialeto italiano, Amarcord significa “eu recordo”. No livro O Século do Cinema (2006, edição esgotada), Glauber Rocha escreve que o diretor entrou no cinema pela porta da magia, chamando-o de documentarista do sonho. “Fellini filma o seu interior refletido no espelho de sua encenação”, registrou o cineasta brasileiro.

Entre fases

Fellini desenhou seus filmes entre o cinema do pós-guerra e o moderno europeu, reafirmando sua caligrafia no cinema de autor, com estilo e temas identificáveis, como se mais ninguém pudesse ter dirigido suas obras. Se no início recebeu influência de Roberto Rossellini, de acordo com a editora do site cinemaclassico.com, Carla Marinho, Fellini é mais lembrado pelos filmes que transbordam seu estilo, com obras tão premiadas como imitadas. “O Fellini que conhecemos é uma mistura de sua vida pregressa como desenhista e da capacidade notória de extrair as particularidades de seus personagens”, explica. “Ele dizia que para encontrar personagens e até atores bastava olhar ao seu redor, andar em um trem e encontrar pessoas interessantes.”

Identificado com o cinema de autor, seja pelo dilema do cineasta com bloqueio criativo, seja por personagens envoltos por suas memórias, seja pela infância revista em flashbacks, no final da carreira a produção do diretor foi ligada ao desgaste e à crise do conceito que simbolicamente ajudou a glamourizar. Sérgio Rizzo relaciona tal declínio ao andamento da longa carreira de Fellini. “Temos os parceiros habituais de trabalho, os temas, as transformações da Itália (e por extensão da Europa) e do cinema italiano (e por extensão do europeu)”, afirma. Para o crítico, é algo relativamente comum esse tipo de desgaste na obra de grandes criadores. “As exceções são diretores que, ao contrário, atingem seu ápice nesse período crepuscular”, completa.

Sob o crepúsculo ou luz intensa, os personagens de Fellini se reproduzem e seu estilo serve de inspiração, num movimento influente, facilmente identificado na história do cinema. O autor ainda está lá.


Personas instigantes

Mulheres, artistas de circo e personagens que esbarram no comum habitam a obra felliniana


Nascidos direto do imaginário de Fellini, os personagens representam um a um seu universo. Caricaturista habilidoso, colocava todos no papel. O desenho era uma de suas obsessões criativas e estava registrado em seus storyboards. Em texto publicado na Cahiers du Cinéma em 1957, o crítico francês André Bazin destaca a importância desses personagens. Segundo Bazin, eles nunca se definem pelo caráter ou sequela psicológica, mas por sua aparência. Veja alguns exemplos:

Mulheres
Obsessões femininas povoam seus filmes. A Saraghiva (8 ½) não seria a mulher da tabacaria de Amarcord ou a granjeira de A Cidade das Mulheres? O imaginário se metamorfoseia num repertório visual ao qual o diretor recorre incansavelmente para compor seus filmes.

Circo e suas figuras
O diretor se inspira no circo e seu desfile de figuras, como os personagens do filme O Palhaço (1970). Giovanne, o vagabundo perverso ou a freira anã que reveza seus dias entre o circo e o asilo. São caricaturas vivas que o diretor filma com deleite.

Fonte: Tutto Fellini (Edições Sesc São Paulo e Instituto Moreira Salles, 2012)


Cenas em conexão

Diferentes atividades na programação têm o cinema como ponto de partida

Entre maio e julho o Sesc Ipiranga recebe atividades da mostra Contaminações, focada em obras literárias e suas relações com outras manifestações artísticas. Federico Fellini esteve na programação com Oito e Meio, acompanhado de bate-papo com o escritor Ignácio de Loyola Brandão, que contou ao público como foi influenciado pela obra.

Já o Centro de Pesquisa e Formação (CPF) recebeu o curso Federico Fellini, do Neorrealismo ao Cinema Alegórico, ministrado por Carlos Pereira Gonçalves, professor do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo e da Universidade de Santo Amaro (Unisa).

No mês de junho a programação de audiovisual reserva: Cine Debate, com exibição do filme Divinas Divas e conversa com a diretora Leandra Leal, e o curso Sociedade Black Mirror – parte 2, com: Cristiano Maciel, Raquel Recuero, Mariana Valente, Francisco Rômulo Ferreira, Luiza Baptista da Silva e Jaime Ginzburg.