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Massimo Di Felice

Professor e pesquisador fala sobre o impacto da comunicação e das redes digitais nos relacionamentos, no meio ambiente e na política


Foto: Leila Fugii



Graduado em Sociologia pela Universidade de Roma “La Sapienza” (1993), doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (2001) e pós-doutor em Sociologia pela Universidade Paris Descartes V, Sorbonne (2012), Massimo Di Felice é professor da Universidade de São Paulo, onde ministra aulas na graduação e na pós-graduação da Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP). Autor de livros como Paisagens Pós-Urbanas – o fim da experiência urbana e as formas comunicativas do habitar (Annablume, 2009), Pós-Humanismo (Difusão, 2010) e Redes Digitais e Sustentabilidade – as relações entre o homem e o meio ambiente na época das redes (Annablume, 2012), o pesquisador tem estudado o ativismo digital e as implicações das tecnologias e das redes nas relações humanas na atualidade. Na entrevista a seguir, Massimo Di Felice comenta esses e outros temas.

 

Como as novas tecnologias têm modificado as relações sociais?
Há uma transformação qualitativa muito grande. Há autores que defendem que as novas gerações já são uma nova espécie, porque tudo o que fazemos já fazemos com a tecnologia e a conectividade. Essa teoria é questionada, visto que o homem sempre interagiu com a tecnologia, desde o fogo, as ferramentas, a escrita, a eletricidade, tudo. Mais próximo do que diz Bruno Latour, acredito que o que diferencia o homem do macaco é a tecnologia. Há uma beleza nisso, de ser uma espécie que está continuamente em transformação. É verdade que o ser humano criou a escrita, mas é verdade também que a escrita inventou um outro ser, que é o homem que conhece o mundo por meio da leitura. Com a eletricidade a mesma coisa. A tradição ocidental costuma pensar a natureza como algo externo e a tecnologia como um instrumento, mas na verdade nós somos e nos tornamos humanos porque esses elementos não são externos, e sim nos transformam ao mesmo tempo que interagimos com eles. Desse ponto de vista, devemos pensar uma nova ideia de tecnologia.

 

Essas novas tecnologias tornam certos estatutos contemporâneos ultrapassados, como a própria ideia de humanidade?
As narrativas que o Ocidente criou e as novas formas de conectividade hoje experimentadas vêm colocando em questão algumas categorias. Primeiro, a categoria do humano como centro do universo. Essa narrativa contribuiu para boa parte do conhecimento produzido, mas não é a única. Os Yanomami aqui no Brasil têm outra ideia do mundo, por exemplo. Se você perguntar a um Yanomami quem habita a floresta, ele vai responder que são as crianças, o rio, o peixe, a árvore, a cobra, os mortos, uma complexidade muito maior do que a ideia de sociedade que qualquer sociólogo do Ocidente produziu. Hoje, nós não podemos continuar a chamar de tecnologia um carro, um artefato produzido por um artesão e um smartphone. A nossa relação com os algoritmos, com os dados não é um fato técnico. Hoje, nosso cérebro está conectado à internet, que funciona como um cérebro maior, pelo qual construímos a nossa inteligência. Essa relação não pode ser definida apenas em termos técnicos. Esse conceito hoje, para a complexidade de interações que estabelecemos com os dados, é obsoleta. Não conseguiremos narrar a complexidade do que fazemos com todas as tecnologias digitais se continuarmos a chamá-las de técnica ou de ferramenta.

 

A tecnologia tem entrado também nos relacionamentos, inclusive nos amorosos, com aplicativos que aproximam pessoas. O que tem sido estudado sobre isso?
Sempre conto para os meus alunos o exemplo do smartphone com o gesto que fazemos com os dedos para ampliar uma imagem, o que cria uma nova sinergia entre a visão e o tato. Parece algo simples, mas ninguém das gerações anteriores associava o gesto com os dedos e a aproximação de uma imagem ou da leitura. No grupo de estudos que eu coordeno na USP, temos percebido que aplicativos de relacionamento têm criado novos tipos de sentir em rede. A sexualidade que está se desenvolvendo online é muito diferente da pornografia de gerações anteriores. Em gerações anteriores, havia uma pornografia do espetáculo, do assistir. Hoje, o sentir se dá entre pessoas, entre circuitos informativos, banco de dados, e que experimenta, portanto, um sentir que não é uma imitação do sentir que ocorre entre dois corpos, mas algo de outra natureza. Isso é interessante porque começa a surgir um sentir associado a uma dimensão tecnológica. Há uma externalização do corpo pela tecnologia. Eu vejo beleza nisso, em uma espécie conectada e que, mediante as interações, se reinventa. Precisamos estar à altura dessa nova espécie e desenvolver um tipo de conhecimento que seja capaz de se reinventar sempre. Esse é o desafio do conhecimento da nossa época, desenvolver um conhecimento que seja capaz de acompanhar a complexidade das mudanças que estamos vivendo.

 

Essa sensibilidade conectada repercute também em momentos de comoção coletiva, como os atentados de Paris e o desastre de Mariana, em 2015, entre outros?
Desde a eletricidade estamos mais conectados. Um século atrás, se houvesse acontecido um atentado em Paris, isso não tomaria tais proporções. Hoje, estamos muito conectados e isso faz com que o que antes era um acontecimento externo de outros países deixe de ser externo. A comoção passa a ser mundial. Nesse sentido, surgem esses momentos de sentir conectado. Nós sentimos em conjunto. A tragédia do avião do time da Chapecoense se torna uma tragédia mundial. Há uma sobreposição do espaço público ao espaço privado. Isso cria muitos desses acontecimentos globais onde há uma comoção geral, ou, no caso de protestos, há uma forma de indignação geral. A lógica que produz isso é a conectividade.

 

Isso tem um impacto em questões sociais e políticas?
Os Estados nacionais só foram construídos com o rádio, a TV e a imprensa. Antes desses meios de comunicação não havia possibilidade de criar estados-nação. Isso só ocorreu quando a população passou a ter acesso a informações de interesse nacional. A própria unificação linguística foi possível com o rádio e a TV. Então, se a eletricidade produziu formas nacionais de habitar, hoje nós estamos, por meio da conectividade, nos transformando em moradores da biosfera. As maiores questões da atualidade têm a ver com o clima, por exemplo, e com elementos que se tornaram parte das questões que determinam decisões da sociedade. Na polis grega o cidadão debatia e discutia sobre o bem-estar da população daquela cidade. Agora discutimos sobre formas mais inteligentes de adaptação ao nosso planeta.

 

No cenário político, isso também coloca por terra questões como a divisão entre esquerda e direita?
Em épocas anteriores, você encontrava a mesma bandeira e todos com um pensamento unificado marchando juntos, chamados por movimentos sociais e partidos. Hoje, há autoconvocações feitas pelas redes, na maioria dos casos sem líderes e que convocam pessoas variadas, da dona de casa ao estudante universitário, pessoas com valores mais de direita ou mais de esquerda. Um protesto, hoje, é um conjunto de diversos indivíduos manifestando espontaneamente o que pensam e que estão naquele momento compactuando com uma reivindicação. Nesse sentido, as lideranças tradicionais, que controlavam e manobravam o público, perderam poder e não conseguem mais mobilizar. Isso foi não só uma mudança tecnológica, mas também o enfraquecimento de uma visão ideológica do mundo. Isto é, perante algumas questões, hoje, ser de esquerda ou de direita não diz nada. Podemos ver isso na questão ecológica, por exemplo, ou na questão da migração, LGBT, do racismo. São questões perante as quais os cidadãos reagem de acordo com o seu nível de cidadania, e não ancorados em uma ideologia. O mundo se tornou muito mais complexo e a esquerda e a direita não conseguem narrar esse mundo. Por isso, as eleições têm surpreendido no mundo todo. Isso significa que a linguagem que temos para identificar a política está obsoleta. Já foi ultrapassada.

 

O ativismo na web é uma dessas transformações?
No mundo inteiro têm acontecido manifestações que nascem na rede, se reproduzem espontaneamente, sem líder, contra os partidos políticos e com formas de participação direta, o que demonstra o resultado de uma alteração tecnológica. Esses movimentos têm algumas características. São movimentos que nascem nas próprias redes, não são movimentos que já existem e migram para o digital. Ganham a rua, e ao ganhar a rua continuam conectados, continuam nas redes. São movimentos que nascem como forma espontânea de participação em contraposição aos partidos políticos tradicionais, e não querem as bandeiras dos partidos políticos tradicionais. O que significou a democracia até a TV não é mais a democracia da internet. A grande conquista do Ocidente foi a democracia com eleição de representantes e de projetos políticos para a gestão pública. Hoje, isso não basta mais, pois temos dispositivos que nos permitem ver em tempo real e opinar sobre qualquer assunto. O político hoje é muito mais o que ele deveria ser, que é um funcionário pago pela sociedade para administrar o bem-estar da sociedade. A rede deu força para a sociedade. Antes, o cidadão participava a cada quatro anos, e hoje é possível acompanhar o que acontece diariamente, em tempo real. 

 

Há experiências nesse sentido de participação direta?
Surgem formas de participação que alteram totalmente o que pensamos sobre a democracia partidária. Dentro do Movimento 5 Estrelas, o M5S, na Itália há um software chamado Rousseau, no qual o cidadão pode opinar e propor leis para serem debatidas no Parlamento. O 5 Estrelas é uma das experiências mais avançadas que conheço. É um movimento híbrido, que não é um partido político, embora participe das eleições. É organizado pelos cidadãos, que são os únicos que podem se candidatar. Cada cidadão não pode ter mais do que dois mandatos, devolve metade do que ganha para um fundo público, utilizado para projetos de startups e microempresas, e devolve o dinheiro que o governo italiano dá para o partido ao Estado italiano. É uma experiência ainda laboratorial, que pensa a democracia não como a democracia direta que conhecemos, mas sim utilizando uma tecnologia que permite um diálogo maior e experimentando formas de maior participação.
 


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