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O Coração do Problema

Ilustração: Marcos Garuti
Ilustração: Marcos Garuti

O coração do problema

por Mariana Ianelli


“Ao entardecer desta vida, examinar-te-ão no amor.”
São João da Cruz (Ditos de Luz e Amor, 58)


Vendo talvez com outros olhos, se envolvendo no ponto central da questão, no ponto fulcral da questão, no coração do problema, invertendo enfim os termos, arrostando-os sem espelho, quem sabe de uma vez visse o difícil do mais simples: a questão do centro, a questão do fulcro, último juiz de quem escreve mas escreve e esquece o coração.


Catedral

Uma nave toda branca onde entramos e damos com a imagem da avó a nos ver como nos vemos nela: arrepanhando postais, folhetos, bilhetes de trem, mapas, cascas de outono, lamelas douradas, poemas, numa caixa igual a tantas em que vimos aquelas mãos diligentes vasculharem, se perderem. Miudezas. Sim, miudezas, mas juntas catedral tão sólida.


Calafrios

É o pico da vertigem quando te calam com uma arma. Quando te aparece o rosto lívido do morto, e é o rosto lindo de uma criança. Quando um terceiro te revela que era o amigo, ao longo de anos, que te trapaceava. Quando não te falta a vez mas te falta a voz no centro de algum momento importante. Quando já é tarde para chegar aonde alguém te esperou com ânsia de amor. Esses invernos súbitos, internos, que acontecem aos que apesar de tudo ainda são movidos por alguma reserva de inocência. Calafrios desses que sente uma alma, apesar de toda malícia, ainda recém-chegada a certas armadilhas deste mundo.

O tempo de cada coisa

E há o tempo de cada coisa acima e debaixo do céu: da órbita da Lua ao redor da Terra, da floração do hibisco amarelo, da vida de uma libélula, dos dias sem conta de uma prisão perpétua. E há o tempo adormecido dos bisavós nos netos, décadas nos anéis internos de uma sequoia, milênios no perfil profundo dos rochedos. E há o tempo de uma nota a encontrar outra nota e fazer música, o átimo de uma asa escapando à boca da leoa, o enquanto de dois olhos sustendo outros dois olhos, e o quanto dura a ponte ígnea entre o instante e recordá-lo.


Dia de cura

Acordar e ver no ventre o corte enfim cicatrizado. De leve correr os dedos sobre a pele nova. Um chacoalhar de cabeça e o fantasma dispersando-se feito poalha. O muro do cativeiro posto abaixo e uma luz de sábado flechando a vista libertada. Alguém te colhendo nos braços num resgate improvisadamente bíblico e tua alma também colhida nesses braços. Como um céu sem nuvens, um dia sem dor de abandonado. Um dia de cura. Um dia de milagre.


Um pacto

Tão perto e, ainda assim, fora de alcance. Antes e depois separados por pouco e, no entanto, uma garganta sem fundo abaixo desse fino rasgo. Como se fosse possível recuar um nada, não deixar que se rompesse o chão, que tivesse se rompido, que a palavra final tivesse sido dita e o dedo apertado o gatilho e o rosto querido perdido de vista, como se um pacto com o tempo fosse exequível, uma oferta de décadas em troca do momento mínimo em que o-acabado-de-acontecer ainda não tivesse acontecido.


Lugar do pensamento

Se o vissem à luz do dia, a este amor, diriam que era coisa de outro mundo, assim indecente, livre, guloso de vida. Punham-lhe sombras, os amantes, vestiam-no com cores frias, para que passasse por comum e não lhe deitassem olhos larápios em cima. Nem a morte os vencia: se um dos amantes faltasse a este amor, um dia, ambos sabiam aonde ir, sabiam em que lugar do pensamento ainda se encontrariam.


Entre dois mundos

Uma descida às catacumbas e de um sono milenar desperta o vírus. Alguém arromba o quarto dos fundos e liberta os fantasmas de uma família. Lady Macbeth invocando a noite espessa, fazendo jorrar a tinta com que a tragédia será escrita. Lacres violados, tumbas saqueadas, esconjuros nutrindo bocas de abismo, e a paz, a paz se eclipsa.


Bens do mundo que estão desaparecendo

As pirâmides do Egito, as águas do Mar Morto, o pato-mergulhão, o macaco-dourado, o morcego-cinza, as calotas polares, a voz de Leonard Cohen, os amarelos de Van Gogh, os livros manuscritos, as tribos isoladas da Mongólia, da Etiópia, da Sibéria, da Namíbia, o lobo-vermelho, os pandas-gigantes, o jacaré-da-China, libélulas, borboletas, besouros e abelhas de todo o planeta, artistas autodidatas, marfim em elefantes vivos, os rostos dos santos e dos anjos nas iluminuras de um saltério do século 13, a honra, a paciência, a solicitude, os gorilas-das-montanhas, o jacarandá, o pau-brasil, os awá-guajá do Maranhão, as esculturas de Nínive, os manguezais do Quênia e da Nigéria, os bens inegociáveis, insubornáveis, incorruptíveis, o leopardo-persa, o tucano-de-bico-preto, os dragões-de-komodo, a pintura de cavalete, as palavras conciliatórias e mãos que vêm em socorro, prestimosas, abertas, estendidas.

 

Mariana Ianelli é poeta, autora de inúmeros livros, entre eles, Fazer silêncio (Iluminuras, 2005) e O amor e depois (Iluminuras, 2012).