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Toque clássico
Toque clássico
Luchino Visconti é um dos grandes diretores que ajudaram no reconhecimento da qualidade artística e do imaginário do cinema italiano
Na tradição do cinema italiano, o neorrealismo é o período marcado pelo florescimento de diretores emblemáticos e pela construção de uma filmografia desenvolvida a partir da década de 1940, numa articulação definida nas curvas do contexto político em jogo durante e após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Embora o marco oficial do movimento esteja atrelado ao filme Roma, Cidade Aberta (Roberto Rossellini, 1945), o registro do termo é atribuído a um comentário do cineasta Antonio Pietrangeli sobre Obsessão, adaptação do romance O Destino Bate à Sua Porta, do escritor norte-americano James M. Macain, feita por Luchino Visconti em 1943.
Aristocrata comunista
Visconti nasceu em 1906, em uma família abastada, de origem aristocrática. O pai era mecenas no teatro Scala, em Milão, e a mãe descendia de industriais. Sem problemas financeiros, mas descrente da ideologia que o cercava, aderiu ao pensamento político da esquerda e expressou seu posicionamento em seus filmes.
Contemporâneo de Vittorio de Sica e Roberto Rossellini, durante a carreira, dirigiu 18 filmes entre 1943 e 1976, ano de sua morte. Aos 36 anos estreou na direção com Obsessão (Ossessione), período também marcado por sua adesão ao Partido Comunista Italiano.
Além da formação política, outro fato considerável para sua obra foi a proximidade com o cineasta francês Jean Renoir, autor do drama A Grande Ilusão (1937). O longa evidencia os absurdos da guerra, motivo pelo qual Renoir ganhou a antipatia do regime nazista, em especial de Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Hitler.
Apresentado a Renoir pela estilista Coco Chanel, Visconti trabalhou como seu assistente em filmes como Toni (1934), Les Bas-Fonds (1936) e Une Partie de Campagne (1936).
Se Renoir ganhou a antipatia do governo alemão, Visconti não passou em branco aos olhos do fascismo italiano e da Igreja. Seu filme de estreia teve cenas políticas e sexuais censuradas e exibição proibida pela Igreja. “Visconti tenta aproximar-se do ambiente e personagens do proletariado, como é o exemplo de Obsessão, que conta a história do amor entre um vagabundo e uma mulher de estalajadeiro do Vale do Rio Pó, que acaba em tragédia”, explica o professor da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista (Unesp) João Eduardo Hidalgo. “Apesar de mostrar as paisagens da região, o roteiro e sua adaptação são muito literários e não têm a liberdade que o neorrealismo cinematográfico viria a propor. A pobreza é encenada e carece de uma verdade que vá além de uma mera observação distanciada, que é o lugar de onde Visconti está ao criar suas obras declaradas como engajadas.”
História e melodrama
Teatro e ópera também foram objetos criativos de Visconti, que dirigiu encenações em ambos os gêneros, além de seu trabalho no cinema, no qual testava as influências do neorrealismo.
A década de 1950 contemplou mudanças no neorrealismo, o que levou Visconti a outras vertentes e modos de fazer cinema. O uso da história e do melodrama ganhou força e se desdobrou em grandes filmes. Sedução da Carne (1954), Rocco e Seus Irmãos (1960) e O Leopardo (1963), este último premiado com a Palma de Ouro, no Festival de Cinema de Cannes. Na opinião do crítico Sérgio Alpendre, nos anos 1960 (com Rocco e Seus Irmãos e O Leopardo) Visconti atingiu o ápice da carreira, objetivo tateado desde Sedução da Carne. “Depois do auge, ele vivenciou o dilema dos maneiristas (ligados ao ideal artístico de refinamento) do cinema. Dominou o clássico e o moderno; então, o que fazer? ”, questiona.
Caminho autoral
O reconhecimento artístico de Visconti continuou em uma nova fase recheada de superproduções e atores famosos. Isso pode ser visto em O Leopardo, que tinha elenco estelar, com Burt Lancaster, Claudia Cardinale e Alain Delon (que havia sido intérprete de Rocco). O filme acabou sofrendo alterações formais e estéticas decididas pela distribuidora responsável pela circulação do filme internacionalmente, além da dublagem para a língua inglesa. A parceria com Cardinale se repetiu em Vagas Estrelas da Ursa, premiado com o Leão de Ouro no Festival de Veneza em 1965.
Na esteira produtiva, lançou Os Deuses Malditos (1969), espécie de ópera antinazista que dá forma a sua conhecida “trilogia alemã”: na sequência, dirigiu Morte em Veneza (1971), outra adaptação literária do diretor – agora inspirado no livro do alemão Thomas Mann –, premiada no Festival de Cannes, e Ludwig (1973).
O processo de Ludwig trouxe desdobramentos pessoais. Durante sua concepção, Visconti sofreu um colapso circulatório, fato que o impediu de estar à frente de sua obra, que foi lançada a contragosto, diferente de sua versão original (com quatro horas de duração).
A versão integral – que chegou ao público brasileiro apenas no ano de 2005, em DVD – foi conseguida graças a amigos do cineasta, que após a sua morte adquiriram os direitos do longa e o reconstruíram de acordo com a estética do diretor.
A saúde frágil de Visconti o deixou com dificuldades na fala e na locomoção. Mesmo assim, trabalhou em seu último filme, Violência e Paixão (1974), novamente com Burt Lancaster no elenco.
Contradição ou diálogo?
A origem aristocrata de Visconti e sua opção política não ecoam de forma controversa no todo de sua obra, segundo o professor de Filosofia Política da Universidade de Brasília (UnB) Alex Calheiros. “Acho um caminho fácil ver contradição como se essas visões não pudessem dialogar”, afirma. “As referências culturais são um bem de todos e vejo com muita sinceridade a aposta de Visconti em nos apresentar um mundo, assim como Proust, a que não temos acesso.” O professor diz ainda que reconhecer essa tentativa não de conciliar dois mundos distintos, mas de criar um painel político e estético de seu tempo, é um grande desafio interpretativo: “Conciliando, aí, sim, dimensões paradoxais, uma visão desencantada do mundo e uma exigência por transformações reais na sociedade”.
Conta-se que o cineasta, antes de morrer, assistiu a todos os seus filmes – exceto Violência e Paixão –, na companhia da amiga e roteirista Suso Cecchi d’Amico. Visconti tinha planos de adaptar o clássico literário Em Busca do Tempo Perdido, do escritor francês Marcel Proust. Mas a vontade não caberia em um longa-metragem. A ideia era produzir dois filmes.
Olhar crítico
Veja o que nomes importantes da crítica já disseram sobre Luchino Visconti
A Terra Treme (1948)
O tema do filme nada deve à guerra. Trata-se de uma tentativa de revolta dos pescadores de um vilarejo siciliano contra o jugo econômico do armador local. Não é a primeira vez que o cinema utiliza atores não profissionais, mas até então eles nunca tinham sido tão perfeitamente integrados aos elementos mais estéticos do filme. Visconti vem do teatro; ele soube comunicar a seus intérpretes, para além da naturalidade, a estilização do gesto, que é o ápice da profissão do ator.
por André Bazin – Revista Esprit – 1948
Violência e Paixão (1974)
No conjunto da obra do diretor italiano este é o filme anti-heroico por excelência, cujo personagem principal é um intelectual de posses, colecionador de obras de arte. O filme trata daqueles momentos em que se sabe que algo de decisivo vai ocorrer em breve e que, por isso mesmo, se é forçado a passar de um patamar a outro, quando então somos tomados pela rememoração de acontecimentos importantes da nossa vida pessoal. Uma meditação final sobre uma vida que está se extinguindo.
por Gilda de Mello e Souza – Entrevista publicada no livro A Palavra Afiada (2014)
Universo criador
Luchino Visconti concentra naquela outra realidade nascida da tela branca, a transferência de seu espírito para a imagem. E de ponta a ponta existe a imagem que eu sou. Que você é. Que é o mundo, suas paisagens e circunstâncias. Visconti não despreza a palavra nem o teatro. O drama está no palco que Visconti constrói para armar os alicerces de seu universo.
por Glauber Rocha – Trecho de artigo publicado no livro O Século do Cinema (2006)
Obra-prima restaurada
Referência da cinematografia italiana, Rocco e Seus Irmãos foi exibido em sessões exclusivas no CineSesc
“Ele vive de pão e cinema.” Essa frase faz parte de um dos diálogos que acompanhamos em Rocco e Seus Irmãos, clássico da cinematografia italiana que esteve em cartaz no CineSesc em sessões durante os meses de julho e agosto.
A exibição trouxe para o público a versão restaurada pela Cineteca di Bologna no laboratório L’Immagine Ritrovata, em associação com Titanus, TF1 Droits Audiovisuels e The Film Foundation. A produção de Luchino Visconti foi lançada em 1960 e recebeu o Prêmio Especial do Júri do Festival de Cinema de Veneza.
Desde então, a história de Rosaria Parondi e seus filhos Rocco, Simone, Vincenzo, Ciro e Luca faz parte da lista de filmes que todo cinéfilo deve assistir.
Ao trocar o cotidiano na Sicília pela promissora e industrial Milão, cada irmão começa a enfrentar desafios pessoais que resultam em uma degradação geral do núcleo familiar diante de um novo modelo de sociedade em formação.
O diretor contou com a estrela do cinema francês, Alain Delon, como o personagem que dá nome ao filme e com a trilha sonora composta por Nino Rota, autor de músicas ouvidas em outros clássicos, como Oito e Meio (1963), de Federico Fellini, e O Poderoso Chefão (I e II – 1972, 1974), de Francis Ford Coppola.
Para completar a programação, foi oferecido o curso O Cinema de Luchino Visconti – Entre o Neorrealismo e o Operístico, ministrado pelo crítico Sérgio Alpendre. O calendário de cursos do CineSesc é renovado mensalmente com atividades práticas e teóricas que abordam diferentes gêneros e vertentes do cinema, do clássico ao contemporâneo.
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