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Turismo e Ressignificação

Ilustração: Marcos Garuti
Ilustração: Marcos Garuti

Turismo e ressignificação

A atividade turística tem sido objeto de discussão por frequentemente reforçar preconceitos e estereótipos. Por outro lado, nos últimos anos, alguns estudos vêm abordando seu potencial de impulsionar a ressignificação de lugares por turistas e moradores. O turismo em favelas e em áreas que passaram por conflitos são práticas emergentes que retratam essa abordagem. Quais são as questões éticas envolvidas nesta área do turismo e da produção cultural? Discutem o tema a professora do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) Bianca Freire-Medeiros e o professor do curso de Lazer e Turismo da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da mesma universidade (EACH-USP) Thiago Allis.


Mudança de percepção

por Bianca Freire-Medeiros

No verão de 2007, O Estado de S. Paulo publicou uma matéria intitulada “O turismo em favelas deve ser incentivado?”. No dia 4 de fevereiro, o jornal divulgou, na coluna “A questão é”, a opinião de especialistas sobre o tema e o resultado da enquete. Do universo de leitores que se dispuseram a participar, apenas 21,13% disseram que o turismo na favela deveria ser incentivado, enquanto a grande maioria (78,87%) se posicionou contra a iniciativa. Essa oposição foi ilustrada por alguns comentários breves, porém muito eloquentes: “É institucionalizar a miséria. Praticamente colocar os pobres em jaulas para observação de quem quer que seja. Isso é indecente!”; “A insanidade chega ao seu extremo. [E] quais são as reais garantias de segurança que os governantes podem oferecer a essa ousada aventura?”; “Isso deveria ser motivo de vergonha e não de exploração. Deixem essas pessoas em paz!”; “Transformar pobreza em atração turística é falta de respeito com o favelado. Pousada então é uma aberração!”.

Indecente, insano, arriscado, desrespeitoso, inumano, aberrante – assim o turismo na favela era percebido, não apenas pelos leitores do Estado de S. Paulo, mas por muitos brasileiros. Desde então, porém, muita coisa mudou. A paisagem da favela agregou-se à tríade “carnaval, futebol e praia”, que, gostemos ou não, define o Brasil turístico na imaginação internacional. Sua circulação é garantida por produções televisivas e cinematográficas, tanto brasileiras como estrangeiras, que utilizam a favela não só como cenário, mas como parte fundamental da narrativa.

Apesar da divergência de opinião existente entre os que condenam a contemplação da pobreza e os que consideram o turismo em favela uma forma de inclusão social, essa é uma realidade consolidada. No Rio de Janeiro, onde a favela da Rocinha é atração há mais de duas décadas, a prática já faz parte do roteiro oficial da cidade. Crescem não só o número de agências de turismo receptivo que oferecem o passeio, mas também o número de grupos conduzidos a cada temporada. E, em paralelo, altera-se a postura dos três níveis de governo, que passam a encarar essa modalidade de turismo como capaz de engendrar desenvolvimento econômico e social nas favelas.

Em 2011, atuei como coordenadora executiva de um projeto de pesquisa intitulado “Turismo em Comunidades Pacificadas”, financiado pelo MTur e pela Fundação Getulio Vargas. Foram realizadas 40 entrevistas em profundidade com diversos atores envolvidos nas atividades turísticas ou por elas afetados diretamente (moradores, guias locais, comerciantes, agências de turismo e staff da Unidade de Polícia Pacificadora) e dois surveys, um com turistas estrangeiros (400 questionários) e o outro com turistas nacionais e estrangeiros no aeroporto internacional do Rio de Janeiro (amostra de 900 entrevistados). Do lastro de resultados gerados, há dois aspectos que me parecem interessantes de retomar, sobretudo quando iniciativas turísticas vêm deixando de ser uma exclusividade das favelas cariocas – vide Paraisópolis, em São Paulo – e já não são apenas os “gringos” os únicos interessados nesse tipo de experiência.

O primeiro aspecto diz respeito às polêmicas usualmente associadas ao turismo em áreas de pobreza, que, grosso modo, pode ser resumido na imagem do “zoológico de pobre”. A contrapelo das acusações de voyeurismo e exploração da desgraça alheia que recaem sobre os que consomem e vendem os tours em favela, os turistas que entrevistamos indicam que sua principal motivação é experimentar o que eles acreditam ser a “verdadeira cidade”, aquela que se esconde para além da vizinhança dos hotéis luxuosos e dos shopping centers. Há também a aposta, tanto por parte dos turistas quanto dos moradores das favelas visitadas, na capacidade do turismo em trazer desenvolvimento econômico e benefícios sociais ao local.

Outro ponto sobre o qual me parece interessante refletir tem a ver com os estereótipos que informam a ideia de favela que os turistas trazem consigo e os efeitos dos passeios na quebra ou reforço dessas percepções redutoras. Como forma de apreendermos essas tensões, apresentamos aos turistas uma lista equilibrada com palavras negativas e positivas, selecionadas a partir da literatura acadêmica sobre o tema, e solicitamos que escolhessem quatro opções que melhor representassem suas expectativas sobre a favela e, adicionalmente, em um momento seguinte, outras quatro opções que definissem a favela que haviam de fato visitado. O objetivo era, portanto, comparar o conjunto de representações preconcebidas (ou pré-adquiridas) pelo turista sobre o cotidiano e a vida na favela com a ulterior avaliação intermediada pela experiência turística propriamente dita.

No gráfico a seguir é possível visualizar a posição relativa dos itens mais mencionados pelos turistas nos dois momentos. Embora a pobreza tenha sido a palavra mais evocada, permanecendo na primeira posição em ambas as formulações da pergunta, deve-se destacar que no quadro geral a experiência turística teve um impacto esmagadoramente positivo sobre as impressões dos visitantes a respeito da favela. Isso porque, quando os turistas identificam os atributos que definem a favela por eles visitada (em oposição à favela genérica que eles trazem como representação), as menções aos aspectos negativos tendem a diminuir. Os atributos positivos, por sua vez, passam a ser mencionados com maior frequência.

As impressões associadas a atributos negativos, como “desordem” e “sujeira”, caem da segunda e terceira posições para a nona e sétima, respectivamente. “Desenvolvimento”, em segundo lugar, e “solidariedade” e “alegria”, em seguida, passam a ser as categorias positivas mais relevantes. Veja que ocorre uma redução bastante clara de uma percepção da favela como um espaço exclusivamente de pobreza e de fatores que remetem a essa condição. O mesmo pode-se dizer em relação ao “desespero”, ao “tráfico de drogas”, à “opressão” e à suposta existência de “pedintes”. Dos itens considerados de feição mais negativa, somente a “sujeira” e as “moradias precárias” não apresentaram grande variação, compondo de maneira coerente a imagem da favela que os turistas trazem consigo e a que levam depois do passeio.

De maneira geral, podemos dizer que o turista volta a seu país de origem levando uma imagem mais complexa e positiva da favela, fato que vai ao encontro da visão dos moradores de que a presença na favela ajuda a minorar e a reverter o estigma oriundo da cobertura midiática. Isso não quer dizer, obviamente, que inexistam agentes turísticos cuja maior – ou mesmo exclusiva – motivação seja auferir lucro, mas que a analogia entre turismo em favela e “safári” não dá conta da complexidade do fenômeno.
 

Bianca Freire-Medeiros é professora do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e coordenadora do UrbanData – Brasil. É autora do livro Gringo na Laje: Produção, Circulação e Consumo da Favela Turística (FGV, 2009).

 

Um caminho entre possíveis

por Thiago Allis

Não há hostilidade maior que as guerras. Os motivos são vários, por vezes mais explícitos; outras, nem tanto; ou, ainda, são negligenciados de maneira nefasta. O fato é que quando uma comunidade é invadida por conflitos de natureza étnica, religiosa, política ou uma combinação delas, os laços de convivência e sociabilidade são fragilizados, impondo uma urgência a populações inteiras: manter a vida! Basta ligar a televisão ou navegar pela internet para que apareçam imagens e relatos de conflitos mundo afora: as históricas e recentes contendas no Oriente Médio, em várias nações africanas e conflitos regionais em vários países do Sudeste Asiático são exemplos presentes e correntes, sem mencionar conflitos históricos em todos os quadrantes do globo.

No âmbito de um tema tão delicado e por mais que pareça insólito, as relações entre conflitos e turismo podem indicar caminhos interessantes – que, por razões compreensíveis, vêm sendo chamados de “turismo da fênix” (Phoenix Tourism, Paul Lynch e Senija Causevic) ou “turismo da paz” (Peace Tourism as a componente of peace building process, Rajib Timalsina). Para isso, é preciso reconhecer que, no oposto das hostilidades, o turismo floresce das relações de hospitalidade: não pode existir turismo sem o exercício da acolhida, nem que seja nas suas feições comerciais (aquela que fazemos em troca de dinheiro). Ainda que de maneira condicionada, isso implica reconhecer e aceitar o estranho, permitindo, assim, interações entre diferenças.

Mas, quando há a guerra e conflitos de toda ordem, que ambiente e espírito de hospitalidade podem sobreviver? E pior: quando os embates desenrolam-se por anos, gerações inteiras são formadas em ambientes hostis, produzindo e reproduzindo dramas pessoais no seio de grupos envolvidos – sejam eles agressores ou agredidos. Obviamente, os resquícios das guerras extrapolam a destruição material; eles habitam mentes e corações, que, de maneira muito íntima, perpetuam traumas de difícil superação.

De um ponto de vista bem pragmático, uma vez os conflitos apaziguados (seria utópico demais acreditar que conflitos são definitivamente resolvidos!), o turismo, com frequência cada vez maior, emerge como possibilidade de reconstrução de países e regiões. O argumento econômico é o mais explícito: o turismo, visto inicialmente como um atalho para o desenvolvimento, acaba entrando na pauta dos planos nacionais e nos discursos de líderes políticos locais e internacionais. Ministérios são formados, planos são desenhados, campanhas promocionais são filmadas, materiais publicitários são distribuídos, alguma infraestrutura é providenciada, até a qualificação de mão de obra é garantida... E a disputa comercial para “colocar o produto na prateleira” passa a fazer parte dos agentes envolvidos com o turismo local e internacional: pequenos (e por vezes grandes) empresários locais, políticos e gestores públicos (muitos até bem-intencionados e obstinados em suas tarefas), cadeias de distribuição internacional vão se articulando para conseguir vender algum novo paraíso.

Até aí, o script não varia muito, não fosse o fato de, no capítulo anterior da história de muitos desses países neófitos no turismo mundial, a desgraça ser a tônica da vida. Ora, então, como estruturar o “negócio da felicidade” (como Josep Chias, importante consultor internacional, chamou o turismo), que se estrutura em função do bem receber? Que prática (aprendida ou vivida) de hospitalidade comunidades pós-conflito poderão, conseguirão e quererão exercitar? E mais: ao tentar fazê-lo, quais os efeitos para si mesmas e para os grupos de visitantes que começarão a chegar para usufruir de seus recursos (paisagens litorâneas, diversidade cultural, riquezas naturais etc.)?

Pois essas são perguntas que, quase nunca, sequer são feitas. E isso é muito triste e perigoso, pois atropelam-se complexidades humanas envolvidas no processo de desenvolvimento turístico, no mais das vezes entendido de forma tecnocrática. Por suposto, o argumento, aqui, não é um desprezo à componente mercadológica do turismo, tampouco à necessidade de qualificação técnica e operacional para seu planejamento e gestão. Há, sim, que se ter em conta que, sem um cuidado com o fator humano, o turismo poderá estar a serviço do aprofundamento de mazelas correntes. Ou seja, aqueles conflitos que se buscam superar podem, na esteira do turismo, ser substituídos por outros – por exemplo, nas tensões entre expectativas e posturas entre visitantes e visitados.

Estudando o pós-conflito na Bósnia-Herzegóvina, Paul Lynch e Senija Causevic desenvolveram uma inspirada pesquisa focada no ofício dos guias de turismo daquele país. A linha condutora da pesquisa é uma crítica ao que se convencionou chamar de “dark tourism”, apontando um caminho que, sem apagar ou escamotear o passado de conflitos, pretende ensejar elementos para uma ressignificação também social, cultural, identitária aos países que lançam mão do turismo como estratégia de reconstrução. Daí, portanto, a ideia de um “turismo da fênix”.

Diante de elementos tão sutis, questões éticas emergem – particularmente importantes para aqueles elos da cadeia mais distante geográfica e afetivamente das regiões que viveram conflitos. Se um roteiro turístico, por exemplo, no Camboja – subjugado às agruras do ditador Pol Pot, responsável pelo genocídio de mais de dois milhões de pessoas – for concebido e desenvolvido com a mesma displicência das práticas turísticas “sol e praia”, é bastante provável que estereótipos e fetiches sejam o centro dos discursos e práticas. Que ajuda isso pode trazer para a superação dos conflitos? Uma possível resposta é: dinheiro. E, claro, ela não é desprezível. Contudo, dada a complexidade das relações humanas que compõem o turismo – ainda mais em locais fragilizados por histórias de conflito –, é preciso superar essa barreira, reconhecendo e valorizando, portanto, oportunidades e compromissos numa perspectiva do turismo pós-conflito.

Como se nota, é uma discussão que transita pelas sutilezas, buscando reconstruir entendimentos sobre o turismo em situações liminares – a dos conflitos, guerras, tragédias. Aos mais ansiosos por “casos de sucesso”, é preciso lembrar que promover o turismo pós-conflito – mais do que um segmento de mercado (ecoturismo ou turismo de aventura, por exemplo) – é um processo a ser incorporado nas estratégias locais. Por outro lado, mais do que niilismo, essa discussão é extremamente relevante se aceitamos que os conflitos estão latentes em qualquer sociedade, o que nos exige, como grupos civilizados que somos e queremos continuar sendo, um exercício contínuo de convivência com diferenças.

Vivemos tempos de animosidades de toda ordem: para que não tenhamos que elencar, cada vez mais, situações de turismo pós-conflito, é importante que – ainda que no campo do turismo – tentemos reconhecer que conflitos são parte da aventura humana. Não por isso precisamos rumar para a aniquilação da diferença. Afinal, melhor um mundo que avance na direção da hospitalidade – em todas suas formas, expressões e diversidades – do que nos entregarmos às vis e retrógradas hostilidades.


Thiago Allis é doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. É professor do curso de Lazer e Turismo da EACH-USP e foi docente na Universidade Nacional no Timor Leste.