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Conversas sobre a vida

Ilustração: Marcos Garuti
Ilustração: Marcos Garuti

 

Conversas sobre a vida

por Juliana Santos

Antes mesmo de saber ler, gostava de estar em meio aos livros da estante de meu pai, e brincar junto àqueles textos e objetos que ainda não sabia decifrar, mas que na brincadeira eu acreditava que lia, que escrevia, quando na verdade desenhava alguns rabiscos e garatujas. Bem mais tarde, já na faculdade, envolvida com o trabalho de alfabetização de jovens e adultos, descobriria, com Emilia Ferreiro, que de fato naquele momento eu já estava dentro do processo de aprendizagem da leitura e escrita e formulava hipóteses do ler e escrever. Compreenderia que muito antes da decodificação das letras há todo um aprendizado dos elementos e códigos que envolvem as práticas da leitura. Aprenderia também com Paulo Freire que a leitura do mundo antecede a leitura da palavra, e que as duas andam juntas, sempre em conversas uma com a outra.

Os grandes mestres do tema da leitura nos ensinam que ler é um ato cultural. É algo aprendido e construído em sociedade. Dominar seu universo é extremamente importante para nós, que vivemos em uma sociedade da informação e do conhecimento, baseados na cultura escrita. Essa concepção da leitura como processo cultural evidencia, entre outras coisas, a importância do papel do núcleo familiar, mães, pais, tios, tias, avôs, avós, que na maioria das vezes, são os primeiros mediadores entre a criança e o mundo.

Em um país que ainda convive com altos índices de analfabetismo funcional, o tema da formação de leitores permanece essencial. Nessa seara, vemos hoje uma crescente valorização das ações de mediação de leitura, tendo como preocupação a formação de educadores e pais e a criação de vínculo entre o adulto, a criança e o livro. De maneira mais recorrente nos espaços culturais da cidade, encontramos cursos de narração de histórias para pais e educadores, mediações de leitura em acervos das bibliotecas e espaços alternativos. Na internet diversos sites disponibilizam seleções de livros e textos de literatura para crianças; pais criam blogs e outros canais de compartilhamento online de suas experiências literárias junto a seus filhos. A construção de significados e de sentido – que está intimamente ligada com a subjetividade e a história de vida de cada um – é o grande mote dessas iniciativas, ancoradas no prazer da leitura. E aí a narrativa literária, a fabulação e a poesia possuem um papel crucial.

“No fundo os livros são isto: conversas sobre a vida”, diz a pesquisadora colombiana Yolanda Reyes, que desenvolve um bonito trabalho sobre a leitura na primeira infância. Cantar uma cantiga, ler ou contar uma história, conversar com os bebês, abrem espaços para construções simbólicas, para o desenvolvimento emocional e afetivo da criança, para a participação no mundo por meio da linguagem.

Escritores ou pesquisadores da área, quando convidados a falar ou escrever sobre a importância da leitura, usualmente nos contam sobre o caminho que percorreram junto às palavras e à linguagem literária, deslocando-se até a mais remota infância. Em meio às vagas lembranças e impressões sobre os primeiros textos que os embalaram, aparece uma voz que canta uma cantiga de ninar, lê uma história, silencia outra, que convida a fazer parte. Um gesto que envolve, que protege, valoriza, se afasta, ou que convida a estar junto. Aparecem longas e breves viagens de aventuras, frustrações amorosas, cheiros, sentimentos. Apesar da singularidade de cada trajetória, sempre há vozes, gestos e palavras que permitem significar uma experiência, uma alegria ou uma tristeza, que ajudam a entender o mundo, a ordená-lo, para que assim cada um possa continuar um pouco mais forte.
 

Juliana Santos, formada em História e mestre em Educação, é assistente técnica de Literatura e Bibliotecas da Gerência de Ação Cultural do Sesc SP.