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Os maus modos solitários
Léo saiu do sofá e caminhou ao brechó chinfrim da primeira esquina de casa. Abaixou a cabeça na portinhola em arco e o alarme três vezes anunciou um filme triste. Atrás do balcão o queixo de uma velha articulava bom dia e nas três da tarde mancava o relógio da parede.
Léo passou por ternos sem corte na cintura, camisetas que seriam boas, talvez, pra faxina, uma saia florida meio larga mas que se custar cinco reais dá pra usar na dança afro, quanto custa, trinta, devolve a saia, anda mais e passa à arara dos vestidos de festa.
Cetim cetim paetê, renda, tule, brocado prata, brocado roxo, organza renda paetê. Veludo vinho chiffon dourado e uma enorme flor costurada na cintura enviesada de princesa. Pega no tecido que atrita na mão, pergunta o preço desse, a velha não sabe mas abre um caderninho e procura na lista a descrição da peça. Desce o lápis pelos itens da coluna Vestidos: noivado da Ediana Rocha, madrinha de Maísa Lopes, baile da escola naval, baile do fim da guerra, baile onde conheci o Charles. Esse é cem. Cem, senhora, mas quem vai comprar? É um tecido nobre, a velha torna a sentar sem mover o rosto. Eu dou setenta, e a velha pensa, o olhar baixo, as rugas, tantas, no nariz que se mexe incomodado pelo pó. Leva, mas não dou sacola.
Do brechó Léo vai direto à festa do Yvo, que passou no concurso, e marcou na sua casa um encontro à fantasia para os íntimos. Léo não era íntima pralém das três semanas do dia em que se viram a primeira vez, um dia difícil, a situação chata.
Ainda assim o vestido na mão, que não tinha sacola, pegou o ônibus e na padaria da frente do prédio de Yvo Léo pediu água, desceu ao banheiro e colocou seu traje afofado. A saída um pouco dolorida um pouco engraçada, os homens do balcão, boné e pão, olhando demais o chiffon chinfrim dourado. Compro ou não um cigarro avulso, e pediu um Marlboro light por favor, tem sozinho? Fumou antes de entrar no prédio, sentada princesa no canteiro da calçada.
Subiu de escada que não quis se olhar no espelho com a roupa embolorada de sebo, e nem deu tempo de arrumar o cabelo, um elástico faz um coque, pronto, é uma princesa pós-moderna, evocando numa só imagem os maus filmes de favela e a catedral de Viena em outros tempos mais ou menos sombrios.
A porta é aberta por um homem alto, a barba rente, o cabelo bagunçado propositadamente com uma pomada de efeito out of bed e portando uma roupa recém-rasgada, um cobertor de cadeia pendurado no ombro e olá, e ela se adiantou a cumprimentar os outros se escondendo de uma vista geral por trás de seus corpos. Disse oi como vai à mulher de bata branca e turbante na cabeça, que respondeu adorei sua fantasia e dá pra ver que eu vim de retirante? Dá sim. Só sem sapato que eu não consigo ficar ainda mais em festa assim vai que piso na comida e gargalhou sozinha. Léo não sabe responder e ao fundo vê um homem de ermitão, parece, um cajado e uma corcunda de velho Tirésias e no ato em que ela olha ele coloca uma peruca de cabelo longo e cinza. É Yvo. Que conversa com uma menina de pedrita e logo vê Léo, ali, o chiffon dourado.
Vem andando o cajado, simulando o manco, simulando a dor nas costas, a boca torta, a cara de fome. A distância é grande o apartamento é enorme. Léo segue em sua pose congelada, sem cara ou expressão, sem saber se fica ou se vai de encontro ao ermitão, talvez andando lentamente, talvez simulando uma princesa. Adorei sua fantasia ele diz com um beijo na bochecha suada. Eu não entendi a sua. Sou o Antônio Conselheiro e te aconselho rasgar esse vestido inteiro no constrangimento dos que não sabem que não sabem agradar.
Uma semana antes ou com duas semanas de incidências, três ou quatro apenas, Yvo convidou Léo para a festa à fantasia e avisou do tema. Ele disse o tema e depois disse você vem? E lá atrás disso era um domingo, Léo caminhava para a livraria, passar o tempo, o domingo sempre o dia mais lento pra quem não tem alguém, e no sinal da avenida um garoto arrastou o chinelo e pediu um real. Ela disse que não tinha ele disse eu duvido e aí ela disse não tenho mesmo juro e o menino tinha olho de vidro, Modigliani, um olho sem íris, sem córnea, um olho de todas as cores e nenhuma, esse menino puxou a bolsa que rodou no ar e para fora os recibos do débito, os cartões de visita grudados em chiclete, um celular com capinha de coruja, uma echarpe, um pente, um batom que manchou o pavimento, uma banana já meio podre e moedas, moedas de cinco dez e vinte e cinco, moedas de cinquenta, moedas de um real, um blush que já era.
Yvo passava em seu carro, estacionou uma roda em cima da calçada, tomou o menino pelo braço e da sua tela touch um nove zero em cinco minutos levou o garoto sem vista dali, levou assim, intransitivamente, e se sabe que Yvo, depois de fazer a ligação, se certificou de que tudo estivesse de volta na bolsa de Léo, cada papel do banco, cada chiclete aberto, cada grampo, longos e curtos. Obrigada. Por nada. Quer tomar alguma coisa você parece assustada. Não precisa mas pode ser. Sentaram num café ali perto e sem perguntar Yvo pediu um chá gelado para ele e um quente para ela. Mas perguntou seu nome, o que fazia, se passava ali sempre e fez ela jurar que tomaria mais cuidado, e deu o seu cartão de advogado caso precisasse de alguma coisa, qualquer, qualquer dia, e Léo olhou a logomarca Yvo & Breno associados.
No dia seguinte Léo nem mais pensava na vida, de tão sozinha, os três gatos, atapetando a casa de pelos que ela não tirava, não recebia mais visitas, que eram todas alérgicas, e ela dizia mas venha sim, toma um Allegra, e a pessoa respondia que o Allegra, nela, já não fazia mais efeito.
Bem, vou ligar, ela falou olhando pro espelho, vou ligar e ligou. Se viram no dia seguinte, comer uma pizza, a melhor da cidade, ele disse, ela concordou. No outro dia um filme no shopping, compraram o ingresso antes, pela internet, que o imax é uma loucura. Na ficção futurista ela questionou o futuro, não o dela, mas do mundo, se ia mesmo acabar ou se o fim seria impedido. Beijaram um ao outro na boca.
E foi assim, uns três ou quatro encontros.
E aí a festa à fantasia.
Onde a comida era nordestina, carne seca, mandioca, caldinho de sururu, cachaça, todos comendo com a mão os talheres proibidos, ao natural, dizia Yvo. E bebida só na caneca de alumínio, arroto obrigatório a cada gole, palavreado analfabeto nas conversas era isso que dizia o convite, alguns constrangidos, o Yvo se divertindo muito, mais com ele que com outros, elogiava Léo, linda no melhor do traje popular.
Mas o vestido apertado, o ar não chegando na barriga, parando no peito, no decote princesa, mas também não querendo rasgar, tinha e não sabia alguma pena do tecido. Olhou panorâmica a festa e resolveu ir, assim, sem se despedir, aproveitando que o Antônio Conselheiro forjava um ritual de macumba com a Pedrita.
Tomou o ônibus, desceu princesa e na esquina o brechó ainda aberto. Passou perto e a velha lá, o mesmo lugar, a mesma cara, o mesmo nariz incomodado pelo pó.
Léo não soube mas em mil novecentos e cinquenta o baile de formatura do primo da velha foi a festa mais badalada da cidade e foi onde conheceu o elegante Charles, que tirou a moça de dourado pra dançar e ela engravidou. Casaram antes da barriga despontar e guardou para sempre o vestido. Usava só quando comemoravam, ano após ano, até que morreu do coração o Charles e ela abriu o brechó.
Meses depois morreu a velha. Enterrada ao lado do marido, pelos próximos três anos, depois da exumação ele iria pra gaveta que o jazigo é muito caro para o filho, professor, e depois iria ela também para a gaveta. A mesma, se desse, misturados.
Na gaveta de Léo ainda mofa dourado o vestido misturado às meias sem par. Entre os homens ela conhece Zeno, com quem vive por um ano, e depois retorna ao seu antigo apartamento na rua do brechó, que fechou.
Carol Rodrigues nasceu no Rio de Janeiro e vive em São Paulo. Seu primeiro livro, Sem Vista para o Mar (Edith, 2014), é vencedor dos prêmios Jabuti e da Fundação Biblioteca Nacional na categoria Contos, em 2015. É também roteirista e produtora cultural.