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Foto: Arquivo AE
Foto: Arquivo AE

 

Com 83 álbuns lançados e 150 milhões de discos vendidos, a dupla Tonico e Tinoco impulsionou a música caipira no país e se tornou referência para as novas gerações

Quando os irmãos João Salvador Perez e José Perez começaram a cantar, ainda meninos, nas primeiras décadas do século 20, não imaginavam que se tornariam a mais reconhecida dupla caipira do Brasil. No entanto, o futuro reservava o sucesso merecido aos pequenos violeiros. Com o tempo, Tonico e Tinoco – como ficaram imortalizados respectivamente João e José – conquistaram público e visibilidade numa longa e expressiva carreira, com números que confirmam a singularidade de sua trajetória. São 83 álbuns, 150 milhões de discos vendidos e 40 mil apresentações durante a carreira da dupla,, que chegou ao fim com a morte de Tonico. Em época pré-internet, o sucesso e reconhecimento se deram sem divulgação massiva, contando com a força da rádio e do boca a boca dos fãs.

O registro da primeira apresentação é dos anos 1940, na rádio localizada em São Manuel, no interior de São Paulo, o que deu visibilidade aos rapazes na Região Sudeste. Cantaram por anos na Rádio Difusora, Rádio Nacional (hoje Rádio Globo), Rádio Bandeirantes e Record.
 

Coração do Brasil

Conhecidos como a dupla coração do Brasil, os irmãos começaram a cantar bem cedo, Tinoco (nascido em 19 de novembro de 1920) com 3 anos e Tonico (nascido em 2 de março de 1917) com 7. A moda que impulsionou a relação dos dois com a música caipira foi “Tristeza do Jeca”, a primeira que aprenderam a cantar e que fazia parte da família. Cantarolada pelos pais em casa, já era um grande sucesso e até hoje não perdeu a vitalidade.

Quando crianças, participavam das missas na capela próxima à fazenda onde cresceram e rezavam o tradicional terço, que na época era acompanhado por um bailinho. Os meninos se apressavam na oração só para cantar no baile que vinha em seguida, no qual tocavam moda de viola, entre elas a canção “Velhas Cartas”, que não saiu do repertório. Mesmo depois de adultos voltavam à moda da infância. “Chico Mineiro” também era uma dessas músicas que não podiam faltar em seus shows.

De pai para filho, a música de Tonico e Tinoco chegou até Wilson Teixeira, um dos representantes da nova geração de violeiros do país. “O primeiro contato com a obra deles foi por intermédio do meu pai, que tinha muitos discos e me contava histórias sobre meu avô paterno, Antonio Barbeiro. Meu avô costumava hospedar duplas que vinham se apresentar no circo em Avaré e tinha uma grande paixão pela música das duplas do interior de São Paulo. Quando comecei a me interessar pela viola, a princípio já compondo meu próprio material e depois pesquisando sobre o cancioneiro caipira, essas lembranças vieram à tona e acenderam meu interesse pela obra de Tonico e Tinoco”, relembra o músico.
 

Valores culturais

A viola remete a instrumentos árabes, como o alaúde, de tamanho menor e arredondado, feito com ripas de madeira. Antes de ser incorporada à cultura brasileira, era parte da portuguesa, levada para a Península Ibérica devido à ocupação moura (711-1492).

Das mãos de jesuítas e colonos a viola foi se acalorando e adaptando à vida na então colônia, servindo para entreter os viajantes ou para a catequese. O instrumento ganhou versões brasileiras feitas pelos caboclos, que construíam réplicas das violas trazidas pelos portugueses. Nascia assim a viola caipira brasileira.

No século 19, chegou a ser apontada como o instrumento mais popular do Brasil. Posteriormente, os tropeiros foram responsáveis por levá-la ao interior de São Paulo, o que ajudou a fomentar a cultura caipira, tão associada à região.

Expressa em outras artes, como a literatura e a pintura, a figura estilizada do caipira materializou-se no personagem Jeca Tatu, lançado por Monteiro Lobato em 1918, no livro Urupês, e nos quadros Caipira Picando Fumo, de 1893, e Violeiro, de 1899, feitos por José Ferraz de Almeida Júnior.

O passar do tempo fez com que a música sertaneja se modificasse e fosse absorvendo influências – do eletrônico ao pop –, transformada por seus principais atores, duplas e jovens cantores que são os campeões de vendas de discos e os mais tocados nas rádios do país. “Quando Tonico e Tinoco tocavam intensamente no rádio e faziam sucesso, nos anos 1940 e 1950 sobretudo, havia críticos das elites culturais que os rejeitavam, pois não viam neles ‘valores culturais’. Há no ideal de que o tradicional deve ser louvado como ‘valor cultural’ um certo folclorismo que deseja que a música pare no tempo”, polemiza o doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) Gustavo Alonso, autor do livro Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira (Editora Civilização Brasileira, 2015). Para ele, apenas o olhar romântico sobre a questão “não quer lidar com o Brasil do presente e não consegue compreender as atuais transformações da sociedade e da música brasileiras”.
 

No teatro

De forte caráter simbólico foi a apresentação dos irmãos no Teatro Municipal de São Paulo, em 1979. Foi a primeira dupla sertaneja a se apresentar no local, para um público de 2.500 pessoas, num show de três horas de duração. Fôlego no palco que se estendeu durante toda a carreira.  O último show foi em Juína, cidade do Mato Grosso, em agosto de 1994, dias antes de Tonico morrer, ao cair da escada do prédio onde morava. Depois disso, Tinoco cumpriu a agenda de mais de 30 espetáculos em apresentação solo. Sem planos de aposentadoria, continuou na estrada até seus últimos dias, abreviados por complicações deixadas por um quadro de insuficiência respiratória, que o levou à morte em maio de 2012.

Para reverenciar a história de ambos, foi inaugurada, em 2004, a Casa Cultural Tonico & Tinoco, na cidade de Pratânia, no interior do estado de São Paulo. O acervo é composto de discos, objetos antigos, roupas, quadros, num conjunto de memorabilia que demonstra a relevância da dupla para a cultura brasileira.

As modas cantadas por eles não deixaram de ser revisitadas pelas duplas sertanejas. “Há nesta geração universitária (que há mais de dez anos alcançou o sucesso nacional) uma constante valorização das raízes e tradição ao mesmo tempo em que se radicaliza a modernização do gênero. Tonico e Tinoco são vistos como os pais da tradição”, contextualiza Alonso. O especialista destaca ainda que a dupla é mais lembrada pelos sertanejos de hoje do que pelos que começaram nos anos 1990: “Nos anos 1990, a imagem da dupla coração do Brasil não era tão louvada como é pela geração atual, mesmo que essa louvação seja mais discursiva do que prática. A morte de Tinoco, em 2012, teve muito mais repercussão do que a de Tonico, em 1994”.


Marcos de uma tradição

Grandes sucessos da dupla circulavam pelo rádio e em compactos simples, antes da popularização dos discos com várias faixas musicais

A carreira de Tonico e Tinoco teve grande impulso na época do compacto simples, ou seja, um disco de vinil com cerca de 3 minutos de gravação em cada face e uma só música de cada lado, identificado por uma numeração e sua rotação. O compacto simples de 78 rotações por minuto (RPM) era assim chamado por sinalizar o número de voltas que o disco dá por minuto enquanto toca na vitrola. Ele se destacava como suporte de reprodução sonora desde o início do século 20 até os anos 1950, quando a popularização dos LPs (introduzidos nos Estados Unidos em 1948) encerrou a predominância do formato.

“Tonico e Tinoco começaram a carreira antes da existência dos LPs e, assim como Luiz Gonzaga, tiveram seu auge entre 1945 e 1955, quando a produção discográfica circulava sobretudo pelo rádio e pelos compactos simples. Nessa época, os compactos nem capa tinham, o que dificulta nosso trabalho de pesquisa”, contextualiza o autor do livro Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira (Editora Civilização Brasileira, 2015), Gustavo Alonso.

Segundo o especialista, o primeiro grande sucesso da dupla foi “Chico Mineiro”, de 1946, de autoria de Tonico e Francisco Ribeiro, lançado naquele ano em um disco de 78 RPM.

Alguns marcos musicais na trajetória dos irmãos também ajudam a reconhecer sua importância no cenário da cultura brasileira:

• 1946: gravaram um compacto ainda em 78 RPM com a música “Chico Mineiro”, que foi o primeiro grande sucesso da dupla e ficou eternizada na história da música de raiz.

• 1956: ano de gravação de “O Menino da Porteira”, canção emblemática que a dupla popularizou e teve dezenas de regravações.

• 1960: lançada pela gravadora Philips a música “Moreninha Linda”, um clássico do repertório da dupla e um registro significativo em sua carreira.

• 1994: data de lançamento do último disco da carreira da dupla, ano em que morreu Tonico. Nesse disco, intitulado Coração do Brasil, Tonico e Tinoco gravaram ao lado de Chitãozinho e Xororó e Sandy e Júnior a faixa título e canções de seu longo repertório, passando adiante a bandeira da tradição.
 

*Fontes: Gustavo Alonso, doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e autor do livro Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira (Editora Civilização Brasileira, 2015), e Edvan Antunes, autor do livro De Caipira a Universitário. A História da Música Sertaneja (Editora Matrix, 2015).


Moda de viola

Músico Wilson Teixeira apresentou releituras das canções de Tonico e Tinoco

No dia 20 de março o Sesc Vila Mariana apresentou o show Wilson Teixeira Canta Tonico e Tinoco, parte da programação que visa promover a Praça de Eventos da unidade como um espaço de encontro, convivência e troca, permeado pela música. “A apresentação se insere num panorama que explora a diversidade da cultura brasileira no campo da música e promove a valorização da música regional e da tradição popular. Neste caso, em especial, valoriza-se também a sonoridade da viola brasileira e o universo musical caipira”, diz o técnico do Núcleo de Música Felipe Torres. O violeiro Wilson Teixeira foi acompanhado por outros músicos responsáveis pela percussão, baixo, entre outros instrumentos, o que favoreceu a interpretação das canções. “O show foi composto de releituras, recriações. Canto do meu jeito e com meu toque de viola. Esse é o grande barato de tocar esse repertório”, comenta o músico.