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Adoção no Brasil

Ilustração: Marcos Garuti
Ilustração: Marcos Garuti

Adoção no Brasil

Segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), há atualmente, no Brasil, cerca de 6.400 crianças aptas para serem adotadas e 35 mil pessoas cadastradas para adotá-las. Quais os entraves da lei de adoção brasileira hoje? Quais os aspectos psicológicos e legislativos decorrentes dos longos processos burocráticos da adoção? Analisam o tema a psicóloga especialista em psicologia conjugal, familiar e adoção Cintia Liana Reis e a advogada e vice-presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família, Maria Berenice Dias.


As crianças excluídas

por Cintia Liana Reis

Adoção é uma palavra quem vem do latim adoptare e que significa acolher, cuidar, considerar. É uma das palavras mais bonitas e ricas em conteúdo interpretativo do dicionário. A adoção é uma atitude instintiva e complexa, plena de requinte humano e espiritual, em que se acolhe aquele que não veio de você, mas veio para você.

Sou psicóloga, trabalho com adoção de menores desde 2002, e tenho observado que as discussões avançam, aprofundam-se, combatem tabus e educam os mais preconceituosos. E isso se dá graças ao empenho das famílias adotivas, aos grupos de apoio à adoção, a alguns meios de comunicação que tratam do tema de modo responsável e aos militantes brasileiros, que vêm enfrentando desafios, levantando bandeiras, conscientizando a população e não desistem da luta pelas crianças abandonadas por suas famílias.

Mesmo com todas as dificuldades, tenho orgulho do meu país, o Brasil. Trabalho na Itália desde 2010 e, enquanto aqui se discute a aprovação da união civil entre pessoas do mesmo sexo, no Brasil algumas já adotam. Enquanto na Itália só os casais heterossexuais casados com no mínimo três anos de convivência comprovada podem adotar, no Brasil os solteiros também podem. Na Itália, a adoção é tão burocrática que os casais acabam decidindo realizar uma adoção internacional, que é custosa, quase igualmente lenta e trabalhosa.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) brasileiro é um dos mais avançados do mundo, entretanto falta aplicar o que está escrito. Há pessoas trabalhando muito para isso, mas também sabemos que o contingente de pessoal é insuficiente para um trabalho de excelência.

Procurando facilitar o cruzamento de dados entre adotantes e crianças à espera pela adoção, foi criado em 2008 o Cadastro Nacional de Adoção, o chamado CNA, que após seis anos de implementação ainda não funciona como deve. Em 12 de maio de 2015, a nova versão, chamada de Novo CNA, foi elaborada pela Corregedoria Nacional de Justiça e, embora esse sistema seja uma ferramenta de extrema importância, ele não funciona com eficiência razoável. Portanto, o novo CNA acabou trazendo ainda mais problemas e falhas, sem ter solucionado as deficiências do antigo.

Uma das mudanças foi que na prática se passou a encontrar “crianças para os pais”, o que fere diretamente os interesses da criança e vai de encontro ao que preconiza o ECA, pois a lei é inversa: devemos encontrar “pais para uma criança”. Do contrário, coloca-se em risco o princípio da absoluta prioridade dos direitos da criança e do adolescente.

Embora pareça que a dificuldade em concretizar uma adoção esteja somente relacionada à morosidade da Justiça e às burocracias, Karina Machado Rocha Gurgel, servidora da Vara da Infância e da Juventude do Distrito Federal (VIJ-DF) e mestre em Psicologia, desconstrói esse mito em seu artigo “A realidade sobre a espera pela adoção: a diferença entre o perfil desejado pelos pais adotantes e as crianças disponíveis para serem adotadas”. Baseada em dados coletados pelo Cadastro de Adoção do Distrito Federal, Karina demonstra que o perfil pleiteado pelos requerentes é inversamente proporcional ao perfil das crianças cadastradas para adoção: enquanto mais de 90% das famílias têm preferência por crianças de 0 a 3 anos, estas representam cerca de 8% das cadastradas.

Num artigo no jornal italiano La Repubblica, de 19 de dezembro de 2012, o presidente da Associazione Amici dei Bambini (Ai.Bi.), Marco Griffini, explica que são 168 milhões de crianças abandonadas em todo o mundo. Para entender esse número, “é necessário imaginar colocar em fila indiana, bem pertinho uma da outra: a linha humana que formam dá uma volta no mundo, é longa como a circunferência da Terra”.

Não quero causar desconforto, mas é necessário que todos se imaginem quando pequenos e/ou os seus filhos, numa instituição, sendo cuidados por pessoas desconhecidas, sem vínculos afetivos parentais clássicos, tendo um contato escasso com o mundo externo, com rotina impessoal, falta de autonomia, entre outras possíveis situações. A realidade é que crianças órfãs em todo o mundo vivem, muitas vezes, em situação de desamparo e sofrimento psicológico.

Talvez não se tenha resolvido ainda o futuro delas porque isso passaria pela tarefa de olharmos para as nossas próprias fragilidades, para a nossa criança ferida interna, pela necessidade de sentirmos certo desconforto no estômago. Mas não é virando as costas, fugindo da responsabilidade, que vamos modificar essa realidade. É mergulhando em nossa essência, tocando em nossa humanidade e reconhecendo a necessidade de mudar. A tarefa é de todos.

Em meu livro Filhos da Esperança, os Caminhos da Adoção e da Família e seus Aspectos Psicológicos, explico, entre outras coisas, por que todas as crianças são “adotáveis” e como se preparar para a adoção. Se não deve existir um modelo de família ideal para adotar, então por que achar que há um perfil de criança ideal para adoção? Seria cruel. Por que esperar por um bebê que ainda será abandonado se já há crianças precisando neste exato momento de pai e/ou mãe? Por que não pensar nelas agora?

Alguns adotantes fecham um determinado perfil: uma criança de até 2 anos, parecida com eles e saudável. Se não fossem tão rígidos e exigentes e conhecessem uma, duas ou três crianças fora daquele perfil idealizado e determinado, poderiam se encantar. Além de esperar muito menos tempo na fila, a adaptação poderia ser tão boa quanto com uma criança mais nova. Mais que a idade, é preciso existir identificação, empatia, e isso pode ocorrer com qualquer criança. Basta estar receptivo para esse encontro. Ademais, adotando crianças fisicamente diferentes, com uma etnia diversa, seria possível abrir mais uma porta para enfrentar o preconceito.

Trabalhar os próprios preconceitos e das pessoas ao nosso redor é o primeiro passo. Adotar crianças mais crescidas e irmãos, por exemplo, não significa necessariamente uma situação mais difícil. As adoções difíceis são aquelas feitas por adotantes muito exigentes, inseguros, imaturos, que não dão tempo à criança para ela se adaptar, não a aceitam e não a entendem, que demonstram uma postura ameaçadora de um possível novo abandono. Além disso, podem haver outras circunstâncias complexas, mas elas podem vir sempre acompanhadas de um grande aprendizado.

Educar um filho e cuidar dele, seja ele biológico ou adotivo, é trabalhoso, mas o que faz tudo valer a pena é o amor, a capacidade de ver o lado encantador e mágico, de entender essa dialética, de ver a riqueza desse aprendizado. Quem conhece o amor deve ser capaz de educar os filhos e o mundo ao seu redor, e só esse amor pode salvar tudo. Reafirmando um trecho de uma de minhas frases: “amar se aprende”.
 

Se não deve existir um modelo de família ideal para adotar, então por que achar que há um perfil de criança ideal para adoção? Seria cruel
 

Cintia Liana Reis de Silva é psicóloga especialista em psicologia conjugal, familiar e adoção. Foi perita do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, na Vara da Infância e Juventude de Salvador, e é autora dos livros Filhos da Esperança (Agbook, 2011) e Fina Presença (Agbook, 2012).

 

Filhos do abandono

por Maria Berenice Dias

Até o surgimento das técnicas de reprodução humana assistida, a gravidez era a única forma de se ter um filho. Para quem não tivesse um par ou não conseguisse engravidar, o caminho era a adoção – e até hoje muitas pessoas buscam na adoção uma maneira de formar suas famílias.

A ausência de políticas públicas de controle de natalidade, a falta de acesso aos métodos contraceptivos, a criminalização da interrupção da gravidez, entre outros fatores, trazem ao mundo filhos que acabam sendo abandonados. Inúmeras são as justificativas do Estado para se apropriar dessas crianças, e leis cada vez mais rígidas são editadas, na tentativa de “organizar” os vínculos parentais.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) instituiu o cadastro de adotantes e de adotandos, na tentativa de agilizar a aproximação entre estes dois polos: filhos à espera de pais e pessoas que os querem para filhos. No entanto, desde então, a tendência de muitos juízes e promotores foi transformar instrumentos facilitadores em uma ferramenta impeditiva da adoção.

A tendência sempre foi negar a adoção a pretendentes que não se encontrem cadastrados, bem como impedir a adoção consentida, a chamada adoção intuito personae, ou seja, quando a mãe escolhe a quem deseja entregar o filho.

Com o advento da chamada Lei da Adoção – Lei 12.010/2009 – a situação complicou-se muito. Instalou-se uma burocracia de tal dimensão que faz com que o tempo passe, as crianças cresçam e se tornem inadotáveis. Durante anos, amargam rejeições das infrutíferas tentativas de serem reinseridas na família biológica ou acolhidas pela família extensa. Somente depois tem início o moroso processo de destituição do poder familiar, que, de um modo geral, se arrasta por muito tempo, pois são esgotadas todas as vias recursais. Enquanto isso, a criança permanece literalmente depositada em um abrigo.

A imposição a um respeito irrestrito ao cadastro, muitas vezes, gera situações para lá de aterradoras. Para obedecer à ordem de inscrição, crianças são arrancadas de seus lares depois de meses ou até anos de convivência com as únicas pessoas que reconhecem desde sempre como pai ou como mãe. Permanecem, depois, invisíveis e incomunicáveis – sabe-se lá por quanto tempo – aguardando que seja feita a aproximação com algum candidato devidamente habilitado.

Por vezes, parece que se esqueceu que o ECA busca proporcionar a crianças e adolescentes vantagens para o seu desenvolvimento físico, educacional e emocional, sendo prioritária sua permanência no ambiente familiar. Nada, absolutamente nada, permite a retirada da criança do lar onde se encontra.  É fundamental primeiro averiguar o que atende ao seu melhor interesse.

A permanência de crianças em lares que não são de seus pais biológicos configura guarda de fato. E, nesta situação, não é permitida a expedição de mandado de busca e apreensão. Nesta hipótese simplesmente não é dispensada a realização de estágio de convivência (ECA 46 § 2º). A lei determina o acompanhamento por equipe interdisciplinar, que deve apresentar relatório acerca da sua permanência (ECA 46 § 4º).

A colocação em família substituta continua sendo admitida. Basta haver a expressa concordância dos pais, manifestada diretamente em cartório (ECA 166). Agora foi somente explicitada a dispensabilidade da assistência de advogado. O consentimento dos titulares do poder familiar precisa ser levado a efeito por escrito, devendo ser chancelado em audiência, após receberem orientações e esclarecimentos por equipe interprofissional (ECA 166 § 3º).

O respeito às listagens não é obrigatório. Tanto que o § 13 do art. 50 do ECA enumera as causas em que é permitida a adoção a candidatos não cadastrados, e o art. 197-E § 1º admite a quebra da ordem cronológica quando comprovado ser esta a melhor solução no interesse do adotando.

Desse modo, quando uma criança se encontrar sob a guarda de fato de alguém que não esteja habilitado, ou sem que tenha sido respeitada a ordem de inscrição, em vez de retirá-la de onde se encontra, o juiz deve determinar o seu acompanhamento por equipe interdisciplinar.

A providência excepcional do abrigamento e a entrega ao inscrito em primeiro lugar só cabem quando o laudo elaborado por essa equipe se manifestar pela conveniência da medida e quando essa for a melhor solução para atender ao interesse da criança.

O fato de a transferência da guarda ter eventualmente ocorrido sem a ancela judicial não pode gerar a penalização da criança. Se alguém deve ser penalizado, é quem eventualmente afrontou a lei, mas a pena não é a perda do filho.

Entre o medo e o dever, todos devem preservar o direito de crianças permanecerem no seu lar. Tornar obrigatória a observância do cadastro é de uma inconstitucionalidade flagrante por desrespeitar o princípio do melhor interesse e o sagrado direito à convivência familiar. Desobedecer a norma constitucional e desrespeitar as regras postas na lei é que pode gerar a responsabilização que juízes e promotores tanto temem, por cometerem verdadeiros crimes contra quem merece proteção integral com absoluta prioridade.

Quanto mais crescem, maiores são as dificuldades dessas crianças em serem adotadas. Pelo medo da rejeição, testam quem as quer adotar. Por isso – e infelizmente – muitas vezes ocorrem devoluções. Conclusão: chegam bebês e de lá saem quando atingem a maioridade. São jogados à vida, sem qualquer preparo para viver em sociedade.

De outro lado, o tempo de espera de quem deseja ter um filho é longo demais. Só o procedimento de habilitação demora mais do que o tempo de uma gestação. Nem acesso às fotos eles têm. Não lhes é dada a oportunidade de amar alguém fora do perfil sonhado.

Essa é uma realidade que ninguém vê. Afinal, as crianças estão guardadas, ninguém as conhece. Elas não têm voz, não têm como se rebelar, chamar atenção para o descaso a que estão sujeitas. Enfim, permanecem presas sem terem cometido crime algum. É necessário responsabilizar o Estado pelo negligente abandono a que submete o segmento mais vulnerável da sociedade: crianças e adolescentes que não têm família.
 

“Entre o medo e o dever, todos devem preservar o direito de crianças permanecerem no seu lar. Tornar obrigatória a observância do cadastro é de uma inconstitucionalidade flagrante” 
 

Maria Berenice Dias é advogada e vice-presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família.